A poesia de Cesário Verde
Texto publicado originalmente no jornal "A Federação", em edição de 1926. Transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2018)
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Cesário Verde foi-se aos 33 anos, com
a mocidade no espírito, com a inteligência em flor e com o coração
transbordando de bondade. Porque dizem que Cesário Verde era de uma bondade sem
exemplo em poetas que fazem timbre de ser originais e atípicos.
Ele viveu tempo suficiente para ter
deixado uma obra vasta — e apenas deixou um livro.
Há homens assim: idealizam mais do que
produzem. São geralmente os que têm uma concepção exagerada de arte, o que para
mim não passa de falta de imaginação, de “vis” criadora. O artista é todo
nervo, vibração, impressionabilidade e, portanto, fecundo. Tudo para ele é
motivo de arte, e os temas lhe acodem a cada passo, a cada volver de olhos, a cada
vibração que o sacode. Não há futilidade que a seus olhos não tenha facetas inéditas, e a sua
superioridade está precisamente em descobrir nas coisas mais vulgares aspectos
sempre novos.
Assim, quando o tempo sobrou o
trabalho, não admito o pretexto de
ser artista requintado para
desculpar a obra restrita, embora ótima.
Mas com Cesário Verde isto pouco
importa.
O seu valor é indiscutível, e é
preciso que ele fosse realmente extraordinário, para poder ter sido admirado
até ao fanatismo, como foi, por dois dos escritores mais amargos, violentos e
parcos de elogios que já floresceram
e escreveram em terras de Portugal — Fialho
de Almeida e Silva Pinto.
O primeiro,
quando foi convidado por um amigo para prefaciar o livro póstumo do poeta,
assim abre o prefácio — que não chegou a concluir:
“A folha que você requer sobre Cesário
Verde não pode ter em si um estudo técnico donde a talhe doce ressurja essa
personalidade que foi na minha vida literária um dos poucos altares a que
genuflecti com fervor cristianíssimo.”
Por quê? perguntarão.
Fialho di-lo, linhas adiante: “Se te
contar que há quatro noites redijo notas para elucidar este prefácio, sem que
até agora nenhuma explique cientificamente o sonho por onde eu visionava o seu talento, farás
ideia talvez da fascinação que esse extraordinário rapaz lançou no meu juízo, e da angústia rude que o teu pedido
derrama, amigo, num infeliz prosternado e a dizer como na missa: — Senhor!
Senhor! eu não sou digno... Certo, não sou, para exprimi-lo na luminosidade
austera dum mármore, donde tivesse chama o seu gênio, e a sua benevolência
cesárea, riso e voz — no sou, decerto, porque a minha pena é violenta, porque a
minha língua é grosseira...”
Assim, Fialho se julgava indigno de
escrever sobre o poeta, que, pela sua vida e o seu engenho, só merecia encômios
do uma pena habituada a só traçar coisas doces, suaves e excelsas.
E Fialho, de fato, não terminou o
prefácio — de que foi encontrada, depois de sua morte, apenas uma dezena de
tiras entre os seus inéditos.
Silva Pinto, que pôs ombro em publicar
o Livro de Cesário Verde, diz ele: “É indispensável ter conhecido
intimamente Cesário Verde para conhecê-lo um pouco. O que apenas lhe ouviram a
frase rápida, imperiosa, dogmática, mal podem imaginar o fundo de tolerância expectante daquele belo e poderoso
espírito.”
E na sua admiração pelo poeta, o
terrível panfletário dos Combates e
críticas, ao vê-lo morto,
exclama, coberto de lágrimas: “Ah, santo! ah, meu santo! Ah, meu puro e meu
grande! Ah, meu forte, — forte, bom, generoso, nobre, sempre bom — e todavia
sempre justo!”
Cesário Verde apareceu na literatura
portuguesa, quando, como diz
Fialho, na sua linguagem única, “a mocidade coimbrã fruiu na Ciência Nova de Vico e nos trabalhos de Hegel, de Kant e do
Ficht, as diretrizes filosóficas da sua insubordinação contrarromântica; o
primeiro acendera-lhe curiosidades para os assuntos de sistematização histórica, para a ciência das origens, ensinando-lhe a dissecar,
através dos mitos e das lendas, o caráter de certas civilizações e raças
recuadas; e quanto aos restantes, se é certo haverem ginasticado os cérebros
para as cogitações da crítica científica, determinaram nas gerações acadêmicas
duas correntes quase antitéticas: uma impregnada da nebulosidade metafísica,
soante de germanismo, de que foi representante e nevropata Antero, o agremiou
em si o maior número; outra, positiva, que
reverberava Comte através das vulgarizações
pacientíssimas de Littré, e do que foi chefe poucos anos depois o beneditino Teófilo Braga. No campo da arte, franceses como
Hugo, Michelet, Balzac o
Flaubert, trouxeram às influências da nova geração modelos de poesia,
história e romance, sobre que descalcar, como é costume entre portugueses, as exuberâncias literárias que
lhes iam brotoejando das leituras.
Hugo, apesar de ultrarromântico incorrigível,
era para esses revolucionários coimbrãos, o semideus; os seus vazios sibilinos, o seu visionismo
do crepuscular, a sua aptidão de voz
enorme, as suas fúrias do estilo
comprazendo-se na repetição, na
imagem, na antítese, eram o delírio dessa mocidade que se dizia
naturalista.”
Dizia-se naturalista, começando por
criar um estilo aberrante da naturalidade, e a si mesmo se chamava original, imitando servilmente os modelos importados da França.
Pois bem, Cesário Verde apareceu por esse tempo, espantando, pela sua
originalidade, os próprios que se tinham
em conta de mais “originais”. O
original Guerra Junqueiro macaqueava Baudelaire, refletindo no seu
alexandrino a técnica, o linguajar e o anticlericalismo do relampejante
alexandrino de Guilherme Braga... Cesário Verde surgiu inédito e original, sem
imitar qualquer poeta de Portugal ou de França.
Ele é Ele, e único.
Inteligência inquieta o curiosa,
iluminada por uma extensa cultura, esse
lavrador-poeta se preocupa com todos os problemas que interessam os intelectuais
do seu tempo: “as vitórias da Justiça absoluta — da Justiça iluminada e serena; as vistorias do Trabalho, da Razão, da Ciência, da Sinceridade, do Amor: os homens reconciliados,
esclarecidos; a Natureza convertida em Progresso, Deus explicado,
o Futuro iluminado, a Vida possível, a Mulher fortalecida, o Homem abrandado, as lutas suprimidas, o concerto da Terra desentranhando-se em harmonias
reconhecidas, a Bondade convertida em
norma, os Direitos e os Deveres
suprimidos pela Igualdade” — enfim, uma
Humanidade perfeita, vivendo, num mundo melhor, o mesmo sonho de Beleza e Pureza.
Em terno de tudo isto girava o espírito inquieto de Cesário Verde, lavrador e homem prático. O poeta, porém, este se comprazia em voejar sobre as coisas ambientes, correr os bairros, as ruas o ver a vida que passa a seu lado, em suas sublimidades e os seus grotescos
sem lhe perder um só detalhe.
E nisso é inconfundível.
Quem não conhece aquela
luminosa aquarela que ele
intitulou Num bairro moderno.
Abro com estas quintilhas:
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
E assim vai ele descrevendo ou antes aquarelando, a tintas exatas, a vida flagrante do bairro, a essa hora antemeridiana, quando para uns o dia ainda não começou e para outros a faina já vai de cansaço e cuidado no repasto.
O impressionismo de Cesário Verde é
sempre de cores vivas e reais e do um naturalismo vívido e sem falhas.
Veja-se, por exemplo, este trecho do Ave Maria:
Nas nossas
ruas, ao anoitecer,
Há tal
soturnidade, há tal melancolia,
Que as
sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me
um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece
baixo e de neblina,
O gás
extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os
edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma
cor monótona e londrina.
Batem os
carros de aluguer, ao fundo,
Levando à
via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em
revista, exposições, países:
Madrid, Paris,
Berlim, Sampetersburgo, o mundo!
Semelham-se a
gaiolas, com viveiros,
As edificações
somente emadeiradas:
Como morcegos,
ao cair das badaladas,
Saltam de viga
em viga, os mestres carpinteiros.
Voltam os
calafates, aos magotes,
De jaquetão ao
ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a
cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos
cais a que se atracam botes.
E evoco,
então, as crônicas navais:
Mouros,
baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no
Sul, salvando um livro a nado!
Singram
soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da
tarde inspira-me; e incomoda!
De um
couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num
tinido de louças e talheres
Flamejam, ao
jantar, alguns hotéis da moda.
Num trem de
praça arengam dois dentistas;
Um trôpego
arlequim braceja numas andas;
Os querubins
do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em
cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os
arsenais e as oficinas;
Reluz,
viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume
negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com
firmeza, assomam as varinas.
E assim por diante.
Por vezes, surpreende-se-lhe um
galanteio, cuja poesia é mais para se imaginar que se ver no verso, como no De tarde:
Naquele
"pic-nic" de burguesas,
Houve uma
coisa simplesmente bela,
E que, sem ter
história nem grandezas,
Em todo o caso
dava uma aguarela.
Foi quando tu,
descendo do burrico,
Foste colher,
sem imposturas tolas,
A um granzoal
azul de grão-de-bico
Um ramalhete
rubro de papoulas.
Pouco depois,
em cima duns penhascos,
Nós acampamos,
inda o Sol se via;
E houve talhadas
de melão, damascos,
E pão-de-ló
molhado em malvasia.
Mas, todo
púrpuro a sair da renda
Dos teus dois
seios como duas rolas,
Era o supremo
encanto da merenda
O ramalhete
rubro de papoulas!
De resto, aprofundado bem, vê-se que
Cesário Verde, mesmo verificando é sempre o lavrador imbuído de vindimas e de
searas fartas. O extraordinário poema Nós, melhor que nenhuma outra
produção sua no-lo revela sob este aspecto. Leiam-se estas quadras:
Fecho os olhos
cansados, e descrevo
Das telas da
memória retocadas,
Biscates,
hortas, batatais, latadas,
No país
montanhoso, com relevo!
Ah! que
aspetos benignos e ruais
Nesta
localidade tudo tinha,
Ao ires, com o
banco de palhinha,
Para a sombra
que faz nos parreirais!
Ah! quando a
calma, à sesta, nem consente
Que uma folha
se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e
feliz com o teu lunch,
Nos ajudavas,
voluntariamente!...
Era admirável
– neste grau do Sul! –
Entre a rama
avistar teu rosto alvo,
Ver-te
escolhendo a uva diagalvo,
Que eu
embarcava para Liverpool.
A exportação
de frutas era um jogo:
Dependiam da
sorte do mercado
O boal, que é
de pérolas formado,
E o ferral,
que é ardente e cor de fogo!
Em agosto, ao
calor canicular,
Os pássaros e
enxames tudo infestam.
Tu cortavas os
bagos que não prestam
Com a tua tesoura
de bordar.
Destarte, ia Cesário Verde narrando em
quadras magníficas os seus cuidados e afazeres rurais. Nas ruas e nos bairros,
entre tudo
o que via e observava, nunca deixava de ver e notar frutos e hortaliças.
o que via e observava, nunca deixava de ver e notar frutos e hortaliças.
E rota,
pequenina, azafamada,
Notei de
costas uma rapariga,
Que no xadrez
marmóreo duma escada,
Como um
retalho da horta aglomerada
Pousara,
ajoelhando, a sua giga.
Depois, vem a nota original, nunca
como que alucinação da vista:
Há colos,
ombros, bocas, um semblante
Nas posições
de certos frutos. E entre
As hortaliças,
túmido, fragrante,
Como alguém
que tudo aquilo jante,
Surge um
melão, que lembrou um ventre.
Ora, aí têm.
Foi ele o poeta das usinas, do
movimento rueiro, da azáfama dos cães e das gares, do operário, do ruído das
máquinas, e tendo falecido em 1886, fazia Cesário Verde, de criação sua, sem nenhum
modelo, em versos límpidos e de ritmos estranhos,— o futurismo que Martinetti inventou, e que faz girar a
bola à petizada “originalíssima” da Pauliceia e alhures...
ZEFERINO
BRAZIL
Jornal “A Federação”, 25 de fevereiro de 1926.
Jornal “A Federação”, 25 de fevereiro de 1926.
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