Napoleão e a
Monarquia Portuguesa
1 - Havendo imposto a sua política à Rússia (tratado
de Tilsit, 1807) cuida o Imperador de completar o isolamento da Inglaterra,
fechando-lhe ao comércio os únicos portos que ainda lhe estavam abertos na
Península Ibérica. Submetida a Espanha, intima o ministro francês ao governo de
Lisboa: a declarar guerra aos ingleses no prazo de vinte dias; e fechar os portos
do reino e das respectivas colônias ao comércio inglês; a pôr os seus navios de
guerra sob o comando da esquadra francesa; e, finalmente, a sequestrar todas as
propriedades de ingleses existentes em território português, e a prender os
súditos do rei da Inglaterra residentes ou de estada em Portugal.
Compreende-se a extremidade em que se viu a corte de
Lisboa, sob o peso de exigências e imposições tão descabidas e absurdas, e que
tanto humilhavam a nação. A própria corte de Londres reconheceu que Portugal não
tinha meios de conjurar tais embaraços, e foi a primeira a sugerir e facilitar-lhe
expedientes com que, ao menos, evitasse os maiores males, e sobretudo, o
naufrágio da própria monarquia, exposta aos furores daquela tormenta.
Havia muito mesmo que o ministro inglês em Lisboa,
prevendo este transe, insinuava ao Príncipe Regente, a conveniência de
transferir para o Brasil a sede do governo. Aliás, não era nova essa ideia,
pois desde os primeiros tempos se havia pensado em transladar para a América a
sede da monarquia. É de crer que no espírito do próprio Marquês de Pombal
andava em gestação um grande plano neste sentido. E agora, na fase em que entrou
Portugal com a política de Bonaparte, o estadista, que mais nitidamente fundamentou
o projeto da mudança da corte para o Brasil, foi D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
No momento, porém, a que se chegara, contestando
nota do residente em Londres, dizia logo Canning que a esquadra inglesa estava
preparada para transportar a corte para o Brasil, "em vez de fazer ao
reino a guerra aparente que se lhe propunha".
Está-se vendo tudo. O que se pretendia em Lisboa era
ter o reino poupado por uns e por outros; e para isso, enquanto se obedecesse
ao Imperador, precisava-se das boas graças da Inglaterra.
2 - Propunha-se, portanto, ao governo de Londres,
que não fizesse caso da adesão que se ia fazer ao bloqueio continental; que
fingisse mesmo hostilidade aos portugueses, de modo a que o senhor supremo se
convencesse da sinceridade dessa adesão. Ora, a Inglaterra toleraria decerto
essa dubiedade escandalosa, mas não se tornaria comparsa consciente na comédia.
É o que explicava lorde Canning ao governo
português.
Via-se de todo indeciso, nas suas aflições, o
espírito da pobre corte. Nem as premuras daquele instante lhe deixavam calma
para refletir nos expedientes a tomar. Naquela extremidade, o que todos querem
é evitar as maiores desgraças, impedir os desfechos mais tremendos.
Depois de se haver entendido com o governo inglês,
publicou o Príncipe Regente o decreto de 22 de outubro de 1807, ordenando que
se fechassem aos navios provenientes da Inglaterra, e aos que a ela se
destinassem, todos os portos do reino, "visto como (explicava) o governo
português havia por bem aceder à causa continental, unindo-se a Sua Majestade o
Imperador dos Franceses, e a Sua Majestade Católica, com o fim de contribuir
para a aceleração da paz marítima".
Com semelhantes recursos não fazia mais a corte
portuguesa senão complicar a situação desesperadora em que se via.
O governo de Londres tomou esse decreto, ou simulou
tomá-lo, como formal declaração de guerra. O ministro inglês retirou-se
imediatamente de Lisboa (mas ficou a bordo de um dos navios da sua nação); a
esquadra britânica foi logo hostilizando navios portugueses, de alguns dos
quais se apoderou; e tomou conta, outra vez, da ilha da Madeira.
O curioso é que quando a Inglaterra assim recebia a
adesão de Portugal ao sistema do Imperador, deliberava este em Paris, de
conluio com a Espanha, sobre a sorte do reino e os destinos da monarquia.
Segundo o tratado secreto de Fontainebleau, de 27 de
outubro de 1807 (entre Napoleão e a Espanha), era Portugal dividido em três
porções — norte, centro e sul —. O Norte, sob o nome de Lusitânia Setentrional,
compreendendo as províncias de Entre-Douro e do Minho, com uma população de
cerca de 800.000 almas, teria como capital a cidade do Porto. O Sul,
compreendendo as províncias de Alentejo e de Algarves, com 400.000 habitantes,
formaria o principado dos Algarves. O Centro, que era a parte mais importante,
era constituído pelas províncias da Beira, de Trás-os-Montes e de Extremadura,
com 2.000.000 de almas.
3 - No mesmo tratado já se fazia a distribuição dos
três quinhões. O reino da Lusitânia Setentrional seria dado à rainha Maria
Luísa, em troca da Etrúria, que ficava incorporada à França. O principado dos
Algarves pertenceria ao famoso Príncipe da Paz (Godoy). O centro, ou Lusitânia
do Sul. ficaria sob o domínio e proteção direta do Imperador, podendo este dar-lhe
o destino que mais conveniente lhe parecesse, e até restituí-lo à dinastia de
Bragança, se assim viesse a entender.
Ao mesmo tempo, ordenava o governo imperial que se
retirasse de Paris, dentro de dois dias, e do território francês, no espaço de
quinze dias, o ministro português D. Lourenço de Lima. De Madrid era igualmente
despedido o Conde da Ega.
Ao ser notificado de medidas tão excepcionais e tão
estranhas (isto é, da despedida dos ministros, pois o tratado continuara em
absoluta reserva), sentiu-se em Lisboa que a catástrofe se aproximava.
Julgou, no entanto, ainda o governo de D. João, que
poderia conter a refrega acedendo afinal a todas as imposições do Imperador: a
8 de novembro decretava a prisão de todos os ingleses que se encontrassem no
reino, de residência ou de passagem; bem como o sequestro de todas as
propriedades de ingleses existentes em Portugal.
E, enquanto se fazia isto, tudo se ia explicando ao
governo de Londres.
Não seriam decerto estes os processos mais próprios
para recomendar, no juízo da Europa, e dos próprios povos entre os quais se
via, a causa de Portugal. Os ingleses compreenderam o que tinha de doloroso
aquele aperto; e não era tanto de indignação, mas de dó e piedade o sentimento que
o Príncipe Regente inspirava em Londres.
Tanto assim que lá não se pensou agora em desforço
ou represália: antes o que se quis e resolveu foi amparar na triste conjuntura
o velho aliado, que publicamente rompia a aliança, mas que em reserva procurava
conservá-la.
4 - As sugestões, que desde muito se faziam lá de
Londres, da retirada para o Brasil, tornaram-se agora instantes, à vista do
perigo, que só o Príncipe Regente parecia não ver claro, na ilusória esperança
com que se obstinava na sua estúrdia política de ficar ao mesmo tempo com o Imperador
e com os ingleses.
Lorde Strangford (o ministro inglês), que não tinha
(proforma) residência oficial em Lisboa, mas que vivia sempre da esquadra para
terra, e vice-versa, punha em ação todos os recursos da sua lógica no sentido
de fazer vingar naquela corte apavorada o único alvitre que parecia sensato e o
único possível em semelhantes apuros.
Vê-se, pois, D. João, entre os dois partidos que se
haviam formado na corte, o dos ingleses e o do Imperador. Compreende que o
caminho que lhe indicava Lorde Strangford é o mais seguro; mas também sente que
é o mais estranho, arriscado e aventuroso. Com que coragem havia ele, que tanto
amava a quietação dos retiros, a normalidade serena da sua vivenda afastada de
arruídos e livre de perigos, com que coragem havia de sair da sua paz e
afrontar o desconhecido?
Demais: no fundo daquela compleição moral subsiste
uma força que os males da vida e do ofício não tinham conseguido reduzir, antes
pareciam aumentar: o instinto da terra, a afeição pelo seu povo, tudo isso que
o prendia ao velho Portugal, e de modo tão íntimo que nunca lhe teria passado
pela mente a existência fora daqueles ares.
Torturava-lhe a alma aquela ideia de fugir da
pátria, abandonando tudo à impiedade de estrangeiros.
A essa irredutível repugnância de D. João, pelo
proposto alvitre, tem de atribuir-se o caráter de precipitação que teve a
retirada, quando é certo que a transferência da corte para o Brasil era a única
medida de salvação, a única mesmo capaz de robustecer a monarquia periclitante
e renovar o espírito da nacionalidade.
5 - O Príncipe, no entanto, não era homem para
entender essas coisas, nem para arrojar-se a tão temerárias amplitudes. Com a
sua timidez e ânimo apoucado, resistiu obstinadamente, emperrou-se como uma
criança até o derradeiro momento, quando o abismo esteve à vista.
Chegou a parecer que ele tivera, nas vésperas da
catástrofe, uma como súbita vigília de consciência, ou heroísmo reacionário, de
natureza galvanizada pela desgraça; e que então se levantara, intrépido e
clamante, para afrontar o vendaval que rugia. Disseram mesmo que ele próprio é
que teve, não se dirá a resolução, mas a veleidade, de não sair da pátria, e
esperar de pé firme as injunções do destino. Pensou-se então em providências
destinadas a acautelar a sorte da dinastia. Entre as medidas, em que se
confiava para isso, esteve a de se mandar para o Brasil o Príncipe D. Pedro, herdeiro
da coroa. Enquanto ele se pusesse assim em segurança, recolher-se-ia a corte a
Peniche, onde ficaria sob a proteção da esquadra.
Aventou-se, pois, cora o mais vivo entusiasmo este
plano de fazer seguir para a América o Príncipe da Beira. E cuidou-se mesmo de
dar-lhe execução.
As condições em que se ia fazê-lo eram difíceis. Nem
se pode imaginar a situação aflitiva em que se encontra o reino; e ainda menos
o que se passa em Lisboa naqueles dias.
Começa o êxodo dos ingleses, em consequência do
decreto de 22 de outubro. Com isso sofreu o comércio subitamente uma depressão
medonha. Os ingleses levaram a maior parte da moeda metálica. Todas as coisas encareceram
extraordinariamente, sobretudo os artigos do consumo geral. O papel-moeda
emitido pelo governo, e que era o único meio circulante, depreciou-se quase na
terça parte. Cessou o trabalho e todo o movimento industrial.
E no meio de tudo isso, o terror da invasão
francesa! "A todo instante viam-se os inimigos nas fronteiras".
Como era possível, em tais apertos, organizar a
expedição que devia conduzir ao Brasil o Príncipe D. Pedro?
6 - Isso tudo não era menos que uma vitória do
partido que o Imperador já fizera em Lisboa. E para coroá-la, chega neste
momento de Paris o embaixador D. Lourenço de Lima.
Era este homem agora, "um instrumento" de
que a diplomacia imperial, de conluio com a astúcia de Godoy, se servia para
preparar o golpe de força contra o reino.
Enquanto o Imperador, com o seu gesto olímpico o
despedia, procurava-o Talleyrand para insinuar-lhe o que estava no interesse da
França, isto é, a desnecessidade da retirada da corte portuguesa, segundo se
espalhara já por toda a Europa. Fez-lhe ver como a aliança com o Imperador era
mais vantajosa para Portugal do que a política dúbia que estava seguindo a
corte portuguesa. Persuadiu-o de que nada havia de hostil no governo de Paris
contra a família de Bragança; mostrou-lhe mesmo como as negociações para um
ajuste de paz e amizade prosseguiram não obstante o rompimento dos dois
governos, contentando-se Napoleão com um simples simulacro de sequestro de bens
dos ingleses, sem nada exigir contra a soberania e integridade do reino.
Tudo isto bem se podia ver que não passava de
manobra ardilosa com que se queria retardar a saída da corte para a América,
até que as tropas francesas chegassem a transpor as fronteiras, a caminho de
Lisboa.
E D. Lourenço de Lima, que, em Paris, andava sempre
quase completamente alheio ao que se urdia pelo alto, deixou-se agora engodar
de todo pelas manhas do famoso chanceler; e pode-se dizer que aparecia em Lisboa
quase como um emissário do Imperador.
7 - Com muito afã foi D. Lourenço de Lima agindo
sobre o espírito da corte; e nada lhe custou acentuar as disposições em que
viera encontrá-la, sendo no seu esforço ainda secundado pelo Conde da Ega,
embaixador em Madrid, e que o astuto Godoy igualmente sugestionara no sentido
da política imperial.
Num instante, se não se viu inteiramente modificada
aquela atmosfera de aflições em que estava a corte, atenuou-se pelo menos
aquele terror que suspendia a vida geral.
As notícias trazidas pelos dois embaixadores (Lima e
Ega) confirmavam, pois, as tendências do partido francês, e fixou-se no ânimo
de toda a corte a esperança de que ainda era tempo de tudo salvar
conciliando-se as boas graças do senhor supremo.
Acreditaram todos que, rompendo de verdade com os
ingleses e dando cabal execução aos decretos do Imperador, estaria Portugal perfeitamente
livre da procela, e nem mais necessário seria mandar D. Pedro para o Brasil.
Andava assim às tontas a corte dolorosa. Agora, o
grande inimigo está do outro lado da Mancha. Remetem-se de uma vez os
passaportes a Lorde Strangford. Põe-se em pé de guerra todo o exército.
Removem-se para a guarda da costa as tropas que guarneciam as fronteiras.
Talvez não se contasse em França e na Espanha com
tantos disparates assim tão depressa...
O entusiasmo em Lisboa foi ao ponto de fazer-se logo
partir, apressadamente, com destino a Paris, o Marquês de Marialva, encarregado
de dar contas ao Imperador do modo, como se cumpriam no reino as suas ordens; e
até munido de plenos poderes para entender-se com ele no sentido de selar-se
por uma aliança de família o pacto de perpétua amizade que se queria fazer com
o império...
Mas, o Marquês de Marialva, mal transpusera os
Pireneus, via-se obrigado a retroceder espavorido, e reentrara no reino
sentindo atrás de si o tropel dos invasores!
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital
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