Artigo publicado no ano de 1939, na revista "Carioca". Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Machado, Eça e Camilo
Certa noite, íamos, eu e o portentoso Monteiro Lobato, pela Rua Paissandu. Visitamos Rosalina Coelho Lisboa e rumávamos para a Rua Roso, a ver Coelho Neto. Conversávamos de literatura e tocamos em Machado de Assis. Referia- lhe eu a tremenda discussão minha, dias antes, em casa de Neto, contra um grupo de antipáticos a Machado. Lembro-me de que era denso o grupo. Defensores, apenas dois, eu e Alcides Maia. No bate-boca, foi grande escândalo haver eu dito ser Machado superior a Anatole France. Ainda nisso, corrobora Alcides minha tese e fechara-se o tempo.
Eu falava e Lobato ia concordando com as minhas vistas. De repente, parou, voltou-se, fitou-me nos olhos e disse: “Olhe, quando me apresentam qualquer literato, entro logo em palestra e vou descambando rápido para Machado. Se o homem não gosta de Machado, deixo-o de mão; está julgado. Se gosta, vou puxando pelo bicho até ver onde chega o seu gosto e admiração. Machado é o meu aferidor de gostos literários”.
Assim, quando me cai nas mãos um livro como do Sr. general Liberato Bittencourt, negando, a pés juntos, valor qualquer ao nosso incomparável escritor, sinto em tal livro ominoso sacrilégio.
Ultimamente, com centenário, todo o gentio da fazenda botocuda vem destilando muita coisa errada e até coisas feias sobre o relembrado mestre.
Para não faltar às homenagens com meu concurso humilde, bem quisera eu mostrar um aspecto, inapreciado ainda, penso eu, do seu gênio.
Propunha-me escrever sobre Machado de Assis cronista e analisar essas excepcionais páginas de A Semana, escrínio de ouros raros, trabalhados por exímio artífice.
Nas crônicas, Machado se declara, talvez,
mais, que nos contos e romances. Suas declarações são mais diretas, menos
veladas pela esfumatura da arte. Sentimos-lhe melhor o pulso, embora seja ele
mesmo, o mesmo desses romances da fase áurea.
A quase absoluta falta de tempo veda-me emitir, por ora, meus conceitos sobre as crônicas, de originalidade tal, que separa Machado de quantos cronistas há no mundo, sagrando-o único no gênero.
Atendendo à solicitação do Centro Carioca, e para ser breve, procurarei dar minha opinião sobre Machado de Assis num paralelo curto, sintético, segundo pede o Centro.
Os três sumos romancistas, em língua portuguesa, penso eu, são Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Machado de Assis.
É muito usual hoje, entre os que pouco o leem, desmerecer do Camilo, romancista, pera mim, que o li todo, e releio sempre, Camilo não teve ainda um crítico, o analista que lhe aponte as múltiplas facetas e faça ressaltar, com todas as tintas, o multicor da sua obra no romance. Como estilista é sem par.
Tem lugar aqui
o meu protesto contra alguém que, há pouco, pelo semanário Dom Casmurro, privilegiava Eça de Queirós como criador do estilo em português. Ajuntava o articulista hever Eça conseguido o seu estilo plástico e rico
aprendendo-o nos franceses. Naturalmente
achava o autor e o acha ainda, ser mais plástica a
língua francesa do que a portuguesa. Aliás, todos os brasileiros, menos eu, proclamam isso,
contra a mais evidente das evidências.
Não! Em Camilo Castelo Branco, língua e estilo são mais copiosos, mais vibrantes, mais vibrantes que no Eça. Vamos ver o em que Eça passa Camilo.
Camilo, Eça e
Machado de Assis são os três maiores
gênios no romance em português
porque, mais profundamente do que outros,
desceram à vasa humana, revolveram-na
para examiná-la, trazê-la à tona, ver-lhe as causas de fermentação e, perante a humanidade estarrecida, manifestar quaisquer reações do seu juízo, da sua mente, do seu
sentir ante a decomposição moral contraprovada
e exposta.
Camilo espiou o abismo, testemunhou mazelas, viltas, sacrifícios e heroísmos, a injustiça humana sob espectros hediondíssimos, e indignou-se. Toda a sua vasta obra é um incomplacente anátema, a revolta latejante contra a chatice engalanada e a filância sobreposta ao mérito. Seu maior romance, o mais significativo e um dos mais plangentes em qualquer literatura, é Coração, cabeça e estômago. É o seu grito mais estrídulo contra um Portugal que mata corações, esmaga cérebros e galardoa estômagos.
Camilo afigura-se-me um gigante irritadíssimo, daqueles do Palmeirim ou do Imperador Clarimundo, enfurecido contra uma ralé vil de pigmeus, a destroçá-los, trucidante, com sua clava apuada.
É grande; mas, tanta cólera, para nós outros, é incompreensiva. Soa-nos a intolerância. A humanidade, magoadíssima, requer enxalmos, não castigos.
Eça de Queirós sondou a turba humana, suas exigências, seus afãs, seus preconceitos seculares, e, longe de zangar-se, mirou-lhe apenas o inominabilíssimo ridículo, e riu-se; riu-se como em A Relíquia, a bandeira despregadas, ou, como em A Cidade e as Serras, educadamente, da civilização pulha e tola. Fez o seu flagrante mordacíssimo. Expôs à risota pública, sem compaixão, Acácios e Pachecos, Condes de Abranhos e Amaros, as Titis e os Tópsius, a fidalga portuguesa atoleimada e ignara.
Meus amigos! tudo isso é parvo e sórdido. Essa roda sorna só merece mofa, escárnio, mais escárnio, uma gargalhada viva do Minho peco à Sagres desmantelada.
Machado de Assis, esse, palmilhou devagarinho vilas e becos, ruas tortas e morros, conversou com a miséria, apalpou as dilacerações humanas, viu tipos, viu tragédias, viu recônditas infâmias, viu quedas, decadências, abjeções e servilismos, viu Capitu e Ezequiel traindo, viu Rubião descer até a surraiada dos moleques, viu a shakespeariana tragédia de Tonica, a impotência de Pestana, o ódio dos irmãos gêmeos, viu tudo isso, e, nem se indignou, nem gargalhou. Teve, para a miséria humana, um sorriso de tristeza e, sobretudo, de compreensão. Dos três escalpelistas foi o mais alto, o mais profundo, o mais humano, precisamente porque nunca desfeiteou a Humanidade.
Camilo tagantou-a, o Eça cuspiu-a; Machado aceitou-a. Dom Casmurro acaba o seu relato com aquela frase de profundo desalento. Fora traído pelos dois seres mais queridos, a esposa e o amigo íntimo. Compunge no mais alto grau; mas Dom Casmurro não se mata, não empeçonha Ezequielzinho, não apostrofa, não se maldiz. Admite a Humanidade como é, sem maltratá-la.
Esse incomparável espírito de compreensão infunde em Machado um sentimento excepcional de equilíbrio, menos seguro em Eça, muito menos em Camilo.
Vede o estilo dos três. Camilo, para azorragar, tem verbo inflamadíssimo, desbragado muitas vezes, insolente, variadíssimo nas zurridelas, com férreas asperezas coruscantes. Ouvimos-lhe ranger a pena pelo papel seco e espirrar-lhe tinta a cada arranhadela exacerbada.
Em Eça, o estilo foi fagueiro, retilíneo, estrada larga, sem destemperos, mais igual, com pena deslizante em linho liso e caro. Saltitam fac cias, há canções francesas pelo meio. O narrador põe à frente da caleça uma solteirona inglesa com seu cãozinho ao colo e, para cocheiro, trepa o Pimentinha, obeso, a vibraro pingalim nobre nas ancas das pilecas magras.
A palavra silva, rufa um tambor algures, e não te espantes se na curva próxima, assomar o Raposinho agitando uma camisa de mulher.
Em Machado de Assis, a pena encurva-se para dentro, como respeitosa, talvez envergonhada, certamente comovida. Vai devagar, com cautelas de enfermeiro, não se aflija o doente grave. Fala baixinho, aos gaguejos, melhor, aos balbucios, medindo, comedindo, sem dizer tudo, num inexaurível sentimento de piedade. O estilo é conciso quanto possa, de harmonia calma, sem violência alguma; todavia, de insuperável riqueza com chispas pelas frases, achados a cada instante, novidades raras, só possíveis, talvez, numa língua, como a nossa, de inexcedíveis recursos em qualquer gênero. Dos três, Machado é o único sobrepairante à humanidade. Os outros dois nela se agitam, vivem dela, compartem dos seus transes ou dislates.
Machado, não. Sobrepõe-se a tudo. Julga naturais, desmandos e parvoíces; têm sempre apelo suas sentenças. Ele recusa-se, até a emitir opiniões definitivas. Para cada uma destas, tem sempre um mas, um pode ser, a pressuposição de um possível erro. Não culpa ninguém: acolhe a todos numa infinda piedade, numa resignação comovedora, não por franqueza, mas por compreensão. E por essa real compreensão, Machado paira acima de Anatole France. Este crimina, acusa por vezes, tenta destruir. Machado é um deus humano, sofre com os homens, perdoa com os deuses; sobretudo, aceita as coisas como são, sem declarar contudo irremediável o mal, deixando viva uma esperança, apelando para as forças próprias da humanidade. Machado, é bem certo, não confia nos remédios: religião moral, sistemas sociais; porém, não desespera deles, nem de qualquer, na secreta antevisão de um destino menos mau, pelo porvir adiante.
Dos três, o mais fulgente é Camilo, e assombra-nos; o mais divertido é o Eça e rejubila-nos; o mais pungente é Machado, mas suaviza-nos.
Camilo fez libelos; Eça, folhetins; Machado, apenas uma crônica serena.
Tal serenidade exalta-o, singulariza-o, humaniza-o, mormente assim supervalorizada pelo estilo e pela linguagem.
JOSÉ OITICICA
Revista "Carioca", 15 de
outubro de 1939.
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