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A 17 de fevereiro de 1787 nasceu José Clemente Pereira, no lugar de Adem, vila de Castelo-Mendo, comarca de Trancoso, bispado de Pinhel, em Portugal. Seus pais, José Gonçalves e D. Maria Pereira, confiaram sua educação literária a um seu tio sacerdote, o qual habilitou-o nos preparatórios necessários para matricular-se na Universidade de Coimbra, onde obteve o grau em Direito e Cânones.
No tempo da invasão dos franceses na Península, José Clemente alistou-se no batalhão acadêmico que então se organizou em Portugal e de que foi comandante José Bonifácio de Andrada e Silva. Na carreira das armas não tardou muito que sua coragem e aptidão o tornassem conhecido muito vantajosamente, pelo que foi elevado a capitão e comandante de uma das guerrilhas que mais dano causou às armas francesas. De Portugal passou a atacar os franceses em Espanha, debaixo das ordens do duque de Wellington, fazendo parte do famoso exército anglo-luso, que tanto concorreu para a primeira queda do Império, dando em suas armas o mais terrível golpe e obrigando-os à evacuação da Península com grandes perdas e inúmeras derrotas.
Nesse exército militou por muito tempo; viu com a espada na mão a abdicação de Fontainebleau, e ouviu de sua pátria o eco da queda inesperada do mais assombroso astro do século. Já não era preciso pelejar. A paz universal tinha tornado inútil a espada do jovem guerreiro. José Clemente deixa a Europa em 1815 e vem para o Brasil começar uma nova carreira, em que tantos louros e tanta glória o esperavam. Desconhecido na segunda pátria que abraçou, viu-se obrigado a recorrer à advocacia para viver, e assim passou até 1819, tempo em que, graças a seu mérito pessoal e reputação adquirida, foi nomeado juiz de fora, encarregado de criar a vila da Praia Grande, hoje cidade de Niterói, que com efeito criou alinhando e medindo com suas próprias mãos ruas e praças, e edificando uma capela que servisse de matriz e que hoje já não existe.
Além disto, abasteceu de água a nova vila, e tantos outros serviços lhe prestou que a Câmara Municipal reconhecida dedicou-lhe em 1840 uma rua que denominou de São José. Com verdadeiro entusiasmo recebeu, a 26 de fevereiro de 1821, a notícia de que o povo se reunia para jurar fidelidade à Constituição que as Cortes estavam fazendo, e sem perda de tempo a Câmara de Maricá, onde se achava, fê-la prestar e tomar juramento, e ordenou luminárias, Te Deum e outras públicas manifestações de regozijo popular de que ele mesmo estava sinceramente possuído.
A 30 de maio desse ano entrou em exercício no lugar de juiz de fora da corte, e por esse tempo foi eleito presidente da Câmara Municipal, da qual recebeu, assinado por seus colegas, um documento em que se manifesta admiração e reconhecimento pela energia e coragem admiráveis que desenvolveu no dia 5 de junho, opondo-se destemidamente aos oficiais dos batalhões portugueses que, insurgidos e armados no largo do Rocio, queriam que se jurasse a Constituição portuguesa e se desse ao príncipe D. Pedro uma junta de nove membros que assistissem a seus despachos, o que era coagi-lo a fazer única e exclusivamente o que fosse da vontade de Avilez. Ainda como presidente da Câmara desta corte, foi ele quem suscitou a ideia e levou a execução a célebre representação de 9 de janeiro de 1822, e possuído de amor e santo zelo pela causa de sua nova pátria, penetrou acompanhado de seus colegas no palácio de Bobadela, onde encontrou o príncipe que devia mais tarde ser o primeiro imperador brasileiro, recostado ao trono de seu pai. Ali falou-lhe com tanta força e eloquência dos perigos iminentes a Portugal e ao Brasil se Sua Alteza Real partisse como exigiam e urgiam os portugueses, que este, tocado de suas razões acedeu aos desejos ardentes do povo brasileiro e deixou escapar de seus lábios esse famoso FICO que foi o fiat lux, a aurora aventurosa de uma nova era de esperanças para o Brasil.
Nesse dia escreveu-se no livro das leis eternas o fato mais tarde realizado de nossa independência, e José Clemente, que foi um dos mais ardentes corifeus dessa causa santa e gloriosa, é somente por este, quando mesmo outros títulos não tivesse, credor de nosso profundo e eterno reconhecimento; tanto mais que essa sua dedicação no momento em que Portugal mais se empenhava recalcar a cabeça do gigante que ensaiava esse brado de morte, que lhe queriam sopitar antes que reboasse em todos os ângulos do mundo, atraiu-lhe o ódio e a vingança portuguesa que não eram por certo mui fáceis de afrontar sem riscos e perigos, e que muito fizeram sofrer. Dado aquele primeiro passo, José Clemente não soube mais descansar. Na corte trabalhava com empenho e sofreguidão, já propondo ao príncipe a reunião de uma assembleia geral das províncias do Brasil, já animando-o e incutindo-lhe a ideia de lançar a primeira pedra fundamental do Império da Santa Cruz; e fora da corte comunicava-se com muitos independentes como o coronel Fontoura em Montevidéu e outros em várias províncias, merecendo por tudo isto uma portaria do príncipe D. Pedro, em que lhe fazia ver o desejo que tinha que não se aproveitasse ele de uma licença que como juiz de fora tinha alcançado, porque Sua Alteza, em vista de seu patriotismo e dedicação, não podia prescindir de seus valiosos serviços.
O Ipiranga ouviu soar esse brado glorioso de um príncipe magnânimo que deixa a pátria e um trono fortalecido por muitos séculos, por um povo a quem ama e a quem quer dar a mão como anjo de salvação. O Brasil não é mais uma pobre colônia, o riso de satisfação que se debuxa em todos os semblantes, e a legenda, Independência ou Morte, que se lê nos laços que trazem todos o indivíduos, dão prova ao mundo que chegou o dia de levantar-se gigante o império americano.
Resta somente aclamar Imperador o príncipe que por nós tudo sacrificou e confeccionar uma Constituição que sirva de base a seu Governo; e é ainda José Clemente quem dirige a famosa circular de 17 de setembro de 1822 em que se exige um juramento prévio de manter e defender a Constituição tal qual no-la desse a Assembleia Constituinte e Legislativa. Mas assim como seus serviços a Portugal prestados em sua mocidade foram depreciados e esquecidos, assim tudo o que fez pelo Brasil foi interpretado e comentado por seus inimigos de modo que viu-se José Bonifácio na portaria de 11 de novembro tratá-lo e a seus amigos de facção oculta e tenebrosa, de furiosos demagogos e anarquistas que ousavam, temerários, com o maior maquiavelismo caluniar a indubitável constitucionalidade do Imperador e de seus mais fiéis ministros. Mudou José Clemente de ideias, ou foi infamemente caluniado? Seja como for, na devassa que se seguiu à deportação foram pronunciados por demagogos José Clemente e muitos de seus partidários mais notáveis; mas este homem que foi desterrado por demagogo recebe a 17 de fevereiro de 1824 a dignitária do Cruzeiro juntamente com Labatut, general da Independência, e sendo essa a segunda vez que se distribuiu aquela condecoração.
Nas primeiras eleições para deputados foi eleito pelo Rio, por São Paulo e por Minas, e por esse tempo foi pelo imperador elevado a intendente-geral da polícia, e depois chamado para o Ministério, em que, conciliando as funções de ministro e de intendente, prestou a esta cidade relevantes serviços. O Código Criminal que hoje nos rege é obra sua refundida por Bernardo Pereira de Vasconcelos, e o Comercial de 1847 deve a ele como relator da comissão que apresentou o projeto primitivo em 1834 o ter passado no Senado, embora com grandes alterações. A província do Pará considerou-o digno de representá-la na câmara dos senadores, e mandou seu nome na lista tríplice para um dos lugares daquela corporação. Sendo escolhido pela Coroa, tomou assento entre os anciãos da pátria e sustentou sempre ali o prestígio de seu nome.
Agora acompanhe-se o ilustre brasileiro em outra fase de sua vida e ver-se-á que o homem político, que tanto pugnou pela independência do Brasil, em nada avulta mais que o homem da caridade que concebeu o plano e realizou a construção dos dois mais belos e mais úteis edifícios desta corte, onde o pobre que sofre do corpo e o que sofre do espírito acham remédio e cura para seus males. Com efeito, José Clemente Pereira, deputado geral, senador do Império, ministro da Justiça e duas vezes da Guerra, não vale mais, e talvez nem tanto quanto José Clemente, provedor e fundador dos hospitais da Misericórdia e Pedro II, que rivalizou com os primeiros do mundo e são eles mesmos em seu gênero os primeiros da América. Na construção e direção desses hospitais não poupou o provedor coisa alguma que pudesse ser útil à humanidade pobre a quem dedicara os últimos quinze anos de sua vida. Consultou a Academia de Medicina sobre o local que nem por isto foi bem escolhido, procurou para dirigir o serviço sanitário das enfermarias os médicos e cirurgiões mais notáveis, e conhecendo os grandes serviços que na Europa prestam as irmãs de caridade de São Vicente de Paula, chamou-as ao Brasil e proveu delas os seus dois hospitais. Sabe-o Deus se com isto prestou ou não um serviço ao sofrimento, mas em todo o caso suas intenções eram puras e suas vistas da mais sublimada caridade.
O Rio de Janeiro lhe deve nessas duas obras monumentais que levaram à mais remota posteridade o nome e a glória de José Clemente, uma dívida de coração que não lhe pode pagar, porque a caridade é de Deus e só ele tem o poder de remunerar aqueles que sacrificam a vida do mundo por essa mais sublime das virtudes. Este grande homem, este grande vulto duplamente amado e respeitado dos brasileiros, deixou a peregrinação da vida em 1854, no meio de lágrimas e bênçãos de uma população de infelizes que perderam nele um pai sempre solícito em minorar-lhes os sofrimentos e as misérias.
O senhor D. Pedro I nomeou-o desembargador, dignitário do Cruzeiro, intendente da polícia, ministro do Império, grande dignitário da Ordem da Rosa, e ocupou-o em mais duas repartições ministeriais. O senhor D. Pedro II nomeou-o ministro da Guerra em 23 de março de 1841, senador em 31 de dezembro de 1842, conselheiro de estado em 14 de setembro de 1850, e primeiro presidente do Tribunal do Comércio em 4 de setembro do mesmo ano.
Foi eleito deputado à assembleia-geral por Minas, São Paulo, e quatro vezes pelo Rio de Janeiro, senador por Alagoas uma vez, duas pelo Rio de Janeiro e uma pelo Pará por onde foi escolhido. Enfim, e como a prova mais saliente de seu merecimento pessoal e de suas virtudes, recebeu José Clemente do senhor D. Pedro II a maior honra que um monarca pode despender com um súdito. Sua Majestade mandou elevar-lhe uma estátua no Hospício de Pedro II, defronte da sua que ocupa uma das salas daquele grande edifício.
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Fonte:
S.A. Sisson: Galeria dos Brasileiros Ilustres (1861). Iba Mendes Editor Digital, 2014.
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