A vinda da Corte
para o Brasil
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - O regresso de Marialva desfez todas aquelas
tristes ilusões. A pobre corte recai no seu pavor. É indescritível o pânico em
toda Lisboa. Dava-se o exército francês a marchas forçadas já em território do
reino.
Ninguém mais pensou senão em fugir.
Tratou-se imediatamente com os ingleses outra vez
como amigos e pediu-se-lhes tudo quanto
em transe tão angustioso só se tinha o direito de esperar da misericórdia de
cristãos"...
No dia 23 (novembro de 1807) recebeu-se a notícia de
que, com efeito, os franceses haviam transposto a fronteira; e de que também os
seus aliados de Espanha, por vários pontos, tinham entrado no país.
No dia seguinte, expediram-se ordens para o embarque
imediato das pessoas da corte, e de todos que quisessem acompanhar a Família
Real. Fixou-se a partida para o dia 28, devendo o embarque ser feito até à
véspera, pois calculava-se que o inimigo só poderia entrar em Lisboa depois de
29.
Transferiu-se logo o Príncipe-Regente do palácio de
Mafra para o da Ajuda; e cuidou-se de arranjar tudo que dentro de três dias
tinha de ir para bordo.
No dia 25, publicou o Príncipe um manifesto ao povo
português, dando as razões que o forçavam a transferir provisoriamente para o
Brasil a sede da monarquia, e procurando confortar a alma da velha pátria, com a
esperança de que em breve estaria de volta. Aconselhava coragem, e ao mesmo
tempo muita prudência com o inimigo, "de modo a não tornar mais funesta
ainda aquela calamidade".
Ao espalhar-se em Lisboa a notícia de que a Família
Real ia mesmo partir para o Brasil, caiu a cidade em consternação. "Grupos
numerosos (desde o dia 25) apinhavam-se nas praças e ruas. Uns pediam
misericórdia; outros vociferavam em desespero... Gritos e lágrimas partiam de
toda parte. Muitos, não vendo mais pátria, nem rei, nem amigos, procuravam
incitar a multidão a armar-se e defender-se, e expelir do solo pátrio os
franceses a ferro e fogo. Noite e dia os mesmos lances, o mesmo espetáculo de
vergonha e desolação". Chegava a todo instante das províncias cópia inumerável
de foragidos, que apavorados pensavam em ficar livres dos inimigos refugiando-se
em Lisboa. Não havia mais governo, nem polícia. Era como se, de um momento para
outro, se tivesse destravado e abatido todo o edifício social.
2 - Chegou o momento em que não era mais possível
prorrogar a partida, pois soubera-se no dia 26 em Lisboa que Junot pernoitara a
25 em Abrantes, a 22 léguas apenas da cidade.
O embarque teve de efetuar-se no dia 27.
Houve, então, um desvario geral em Lisboa. O povo em
alvoroços, agrupado pelas praias e cais, que se estendem Tejo abaixo até Belém,
assistia ao embarque de bagagem — caixas, fardos, volumes imensos — levando a
fortuna da terra, objetos de valor, obras de arte, raridades, relíquias históricas.
Grande número de fidalgos e pessoas importantes pela
posição e pela fortuna, seguiam o destino daqueles bens e riquezas. Soldados,
marinheiros, oficiais de terra, tomavam o mesmo rumo.
"Dir-se-ia o exílio de uma nação inteira diante
de bárbaros invasores do lar e da pátria."
O Príncipe-Regente e o infante de Espanha, D. Pedro
Carlos (primo de D. Carlota) chegaram, num coche, ao cais de Belém sem
acompanhamento de um só criado ou guarda; nem mesmo encontraram pessoa alguma que
os recebesse oficialmente, pela confusão com que tudo se efetuara. Tiveram
apenas como saudação os gritos do povo que ali estava consternado.
O cais achava-se em lastimável estado, devido às
chuvas dos dias anteriores; e os príncipes o atravessaram carregados por dois
cabos de polícia que por acaso ali apareceram. Confundia-se neste momento o
pranto do Regente cora o do seu povo. Apertava em convulsões a mão de quantos dele
se aproximavam. Dizia adeus a todo o mundo com a voz comovida e entrecortada de
suspiros.
Ao seguir a galeota para bordo da nau Príncipe Real, não se descrevem as cenas
tocantes que se deram, tanto em terra, entre os que ficavam, como a bordo da
galeota e da nau.
Já se havia embarcado o Regente, quando chegou ao
mesmo cais D. Carlota Joaquina com os filhos; e dali, com o seu séquito, foram
em demanda da nau Rainha de Portugal.
O Príncipe D. Pedro de Alcântara demorou-se com seu
aio no meio da multidão, à espera da rainha sua avó.
3 - Cenas pungentes dão-se no instante em que D.
Maria I chega ao cais, acompanhada de suas damas. Começou a rainha a gritar
como louca, em grande acesso do seu mal, não querendo embarcar. Considerava-se
como arrastada ao suplício, num horror de quem vai para o patíbulo. Parecia a todos
que através da alucinação, de que padecia, raiava a luz que se não tinha
apagado no seu coração, e que a incitava a não despegar-se da pátria, preferindo
sujeitar-se à sorte dos seus súditos... Com muito custo, conseguiram as damas
levá-la até a galeota que a transportou para a nau Príncipe Regente. Outras princesas, com D. Maria Francisca, viúva
do Príncipe do Brasil, tomaram a nau Princesa
do Brasil.
Grande número de titulares, e os ministros de
Estado, e demais personagens de primeira plana, com sua famílias e comitivas,
acomodaram-se em outras embarcações. "Ao passarem por entre as massas
curiosas, alguns recebiam sinais de estima; outros, que a multidão detestava,
ouviram palavras desagradáveis e injuriosas... Alguns houve que, temendo as
iras do povo, preferiram seguir para bordo à sombra da noite, às escondidas.
Alguns regimentos de linha, que tiveram ordem de
embarcar, recusaram obedecer, e debandaram".
Cerca de quinze mil pessoas, "das primeiras
famílias do reino, das mais abastadas e das de mais valimento, deixaram,
naquele dia ominoso, terras de Portugal, fugindo aos horrores de que a invasão
francesa as ameaçava, e procurando abrigo seguro nas plagas longínquas da
América".
Poderia a esquadra ter partido mesmo no dia 27 à
tarde, pois a ansiedade de sair era grande sob o pavor que as notícias da invasão
espalhavam.
Os fortes ventos contrários, porém, não permitiram
isso nem na manhã de 28, como se pretendeu.
Os horrores que se passaram a bordo, sob a iminência
de se ver a cada instante chegar o inimigo a tempo de impedir a saída, não se
descreve. Mais de quarenta horas de angústia padeceram ali no porto os
exilados, até que na manhã de 29 puderam os navios levantar âncoras e descer
vagarosamente o Tejo.
4 - No dia 30, às 9 da manhã, entrava Junot em
Lisboa, para só avistar, a sumirem-se no oceano, as últimas velas da frota...
Compunha-se de uns 26.000 homens o exército francês.
Contava Junot seguro o golpe que se incumbira de vibrar. A marcha, porém, das
suas tropas, não foi tão fácil como ele imaginara. O frio, as chuvas e a
escassez de recursos foram os grandes obstáculos com que teve de lutar. Só
mesmo a tais entraves deveu a corte portuguesa aquela fortuna de ter podido, à última
hora, valer-se do expediente da fuga.
Ao cabo de muitos trabalhos e sofrimentos, viera
Junot (tendo perdido uns 5.000 homens) entrar em Portugal no dia 20 de
novembro, pela estrada da Beira.
Estava o exército invasor em condições tão
deploráveis que "bastaria um simulacro de resistência para
destroçá-lo"... No dia 25, depois de refeito em Abrantes, prossegue Junot,
a marchas forçadas, para Lisboa, na grande ânsia de impedir a saída da corte. E
não fosse o obstáculo das cheias do Tejo, que o obrigaram a parar dois dias sem
poder transpor o Zezere (afluente do Tejo) teria ele certamente conseguido
apanhar a Família Real. E ainda depois de haver, a custo, passado o Zezere,
encontrou, caminho de Lisboa, inundados os campos da Golegã.
No dia 28, estava ele em Santarém, a poucas léguas
da capital portuguesa.
Nesse mesmo dia, seguido apenas de um regimento de
granadeiros e de um batalhão de linha, destacou-se do grosso das forças,
pondo-se em marcha precipitada sobre Lisboa.
A pequena distância da cidade, encontrou um
destacamento de cavalaria real. Era talvez — observa um autor — "a
primeira força armada que lhe aparecia"...
Esse piquete logo se pôs sob as ordens do general
invasor, e serviu-lhe de guia.
5 - No dia 30, como se disse, pela manhã, entravam
os franceses em Lisboa. O primeiro cuidado de Junot foi correr à bateria do
Bom-Sucesso, e em seguida à fortaleza de São Julião, no intuito de impedir a
saída das naus. Fazendo disparar a artilharia da fortaleza, conseguiu ainda o
chefe invasor apreender alguns dos navios mercantes que tentavam escapar
"nas águas da esquadra. Sobre as fortalezas, os monumentos, e os edifícios
públicos, e nos mastros dos navios de guerra que tinham ficado no porto, mandou
incontinenti que se alçasse a bandeira das águias francesas"...
Voltando da barra para a cidade, sem dissimular o
seu imenso despeito, cuidou sem perda de tempo, o general inimigo, de fazer
ocupar os vários edifícios públicos. Nomeou logo empregados para os arsenais e
outras repartições da marinha e da guerra; para o tesouro e a recebedoria das rendas.
Fez arrecadar a prata e todos os objetos de valor da patriarcal e das igrejas
mais ricas. Sequestrou "os bens e propriedades da Coroa, os patrimoniais da
casa real, e até os particulares dos fidalgos e outras pessoas que haviam
fugido com o Regente. Incorporou às suas as tropas portuguesas. Fixou
contribuição de guerra para as várias cidades do reino".
Ao mesmo tempo que os franceses, ocupavam divisões
do exército espanhol as outras porções do território português, para o norte e
para o sul.
6 - Enquanto, como bandos de abutres em sanha,
abatiam os franceses e os espanhóis sobre a mísera terra, navegava a frota
conduzindo para a América a Família Real, com o que havia de mais valioso
naquela corte desmantelada.
Imagina-se como andaria agora aquela gente, perdida
na imensidão do oceano. Dá-se principalmente D. João como de alma em luto,
comovido até o pranto ao afastar-se da pátria. Não podia desprender das terras
que iam ficando "os olhos marejados de lágrimas". Sabia que deixava o
"seu povo entregue à tirania de estrangeiros, o seu reino sob as plantas
de inimigos inclementes, as fortalezas do Tejo cobertas com a bandeira
imperial, os bens e os direitos dos seus súditos à mercê dos invasores, e o
escarmento e a ruína e a devastação em toda aquela terra que o seu coração abandonava"...
Pouco a pouco, "foram desaparecendo o rio, as
praias, as montanhas de Sintra", até que se perdeu de vista a linha da
costa, e se afundou no oceano.
Logo no primeiro dia uma refrega dispersou
momentaneamente alguns navios. Serviu, no entanto, este revés, para dar aos
prófugos a medida da sua grande fortuna; pois, se não tivessem saído pela manhã
de 29, teria o temporal forçado os navios a permanecer no ancoradouro... à
espera dos franceses.
7 - Depois, monótonos correram os primeiros dias da
viagem. Pôde-se então notar quanta imprevidência e descuido tinha havido nos
aprestos necessários para tão longa derrota. Insuficientes, e de má qualidade,
eram os víveres. Chegaram os ingleses a fornecer à esquadra o mais que puderam,
e ainda assim, sem melhorar as condições de todos os navios. Faltavam acomodações
para o maior número dos exilados, e até para as senhoras. Era excessivo o
número de passageiros em cada embarcação, sendo muita gente obrigada a dormir
no tombadilho. A imensa desordem com que se se fizera a distribuição das
bagagens, punha o maior número de passageiros em grandes embaraços, pois raros
eram os que levavam no próprio navio as suas roupas e demais artigos de uso.
Ao cabo do nono dia de viagem, desencadeou-se uma
tempestade, que tomou proporções assustadoras, e afligiu cruelmente os viajantes.
A noite separou a frota, que até então andara unida
e à vista.
Quando o tempo serenou, já muitos navios não
apareciam. "Fizeram-se sinais entre os presentes, e transmitiram-se ordens
para se procurar os que faltavam. Moderou-se e regularizou-se a viagem,
combinando quanto às alturas por onde se deveriam todos encontrar, a fim de
unidos, prosseguirem a derrota. Avistou-se, a 11 de dezembro, a ilha da
Madeira, como um ramalhete de flores no seio dos mares"...
Só dali a um mês é que de novo se avistou terra, e
já no continente americano.
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