O Tiradentes
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
---
1 - É o Conde de Resende, o
mais acabado tipo do tiranete colonial, que vem dirigir toda a ação da alta
justiça contra os inconfidentes. Assumira ele o governo no dia 9 de junho de
1790.
Já estavam prontos os autos
das devassas. Concluídas, porém, as diligências para a formação da culpa,
teve-se de esperar ainda muitos meses pelo juiz e adjuntos da alçada. Só pelos
fins de 1790 é que chegaram do reino esses juízes. Integrou-se, então, o tribunal,
fazendo o Vice-Rei outras nomeações que se tornaram necessárias.
Levam-se ainda mais de seis
meses em novos interrogatórios e acareações. Até que enfim, no dia 21 de
outubro (1791), foram vinte e nove réus notificados da acusação,
assinando-se-lhes, a cada um, o prazo de "cinco dias para dizerem de fato
e de direito".
Nomeou-se para os defender, o
advogado da Santa Casa de Misericórdia, Dr. José de Oliveira Fagundes, que
seria também curador dos três réus falecidos na prisão.
A defesa é um documento muito
curioso daqueles tempos. Resumia-se em confessar tudo o que se apurava das
devassas, isto é, que alguns dos réus tinham com efeito "conversado sem
horror" sobre a conjuração; mas que não havia um sequer que se tivesse
feito criminoso tentando por em prática o planeado levante.
Mas bem se vê que tudo era
inútil. A justiça real já estava perfeitamente orientada, e sabia o que tinha
de fazer.
Na noite de 16 para 17 de
abril (1792) foram onze dos pronunciados transferidos para a cadeia pública. Os
juízes, reunidos, gastaram todo o dia 18 e grande parte da noite em lavrar o
acórdão.
No dia 19 (uma quinta-feira),
pela manhã, entrava na prisão o escrivão da alçada; e no meio de grande
silêncio e de todo o aparato que se deu à cena, fez grave, pausadamente a
leitura da sentença.
Como "primeiro
cabeça" da projetada revolução, foi o réu Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes, condenado à forca, "devendo a sua cabeça ser levada à Vila
Rica, e exibida num poste alto no lugar mais público da vila; o corpo seria
dividido em quatro pedaços, que seriam expostos nos sítios onde tinha tido o
réu suas "práticas infames", no caminho das Minas; a casa onde ele
morara em Vila Rica seria arrasada, e salgado o lugar onde estivera, para que
nunca mais ali se edificasse; e no mesmo chão se levantará um pilar, que
recorde as culpas e o castigo do abominável réu. Os bens do réu seriam
confiscados, e seus filhos e netos declarados infames".
2 - Os réus Francisco de Paula
Freire de Andrada, José Alvares Maciel, Inácio José de Alvarenga Peixoto,
Domingos de Abreu Vieira, Francisco Antônio de Oliveira Lopes e Luís Vaz de
Toledo Pisa foram condenados às mesmas penas, só não se lhes esquartejando os
corpos. — Mais quatro réus (Salvador Carvalho do Amaral Gurgel, José de Resende
Costa, pai, José de Resende Costa, filho, e Domingos Vidal de Barbosa) seriam
também enforcados, não se lhes mutilando, porém, os corpos, nem arrasando as
casas, mas confiscando-se-lhes os bens, e declarados infames os filhos e netos.
Pena igual à destes teve Cláudio Manuel da Costa, que se suicidará na prisão.
Tomás Antônio Gonzaga (com mais quatro) foi condenado a degredo perpétuo, e a
confiscação dos bens.
Outros réus tiveram a pena de
degredo temporário. Dois réus houve que tiveram de sofrer, além da de galés, a
pena de açoites: não, no entanto, pelo crime de conspiração, mas pelo de falso
testemunho.
Alguns dos pronunciados foram
absolvidos.
Havia cinco padres implicados
na conjuração: o cônego Luís Vieira da Silva, o vigário Carlos Correia de
Toledo e Melo. o padre Manuel Rodrigues da Costa, o padre José da Silva de
Oliveira Rolim, e o padre Lopes de Oliveira.
Estes não figuram na sentença;
pois, de acordo com as instruções da corte, deviam ser processados à parte. Não
se sabe que pena tiveram, nem mesmo se chegaram a ser julgados aqui. Foram
remetidos para Lisboa: e lá ficaram quatro anos na fortaleza de São Julião da
Barra, tendo, ao cabo de algum tempo de prisão, falecido o último deles. Os
sobreviventes passaram depois para diversos conventos. Mais tarde foram sendo
postos em liberdade. Três deles voltaram ainda ao Brasil. O padre Manuel
Rodrigues da Costa, que a todos sobreviveu, "foi um dos mais ardentes
promotores da nossa independência em Minas. Por aquela província foi eleito para
a Constituinte, e depois para a legislatura de 1826". Veio a falecer nonagenário.
3 - Mas voltemos às
solenidades da alçada. Vem agora a farsa do tribunal sinistro, com os seus
escarmentos sacrílegos. Cerrando a torva catadura, fará tremer a pobre alma da
terra, vencida e apavorada.
Tinham desde muito, aqueles
juízes, a carta de clemência com que a majestade desagravada se antecipava a
conter a impiedade dos algozes. Mas o espetáculo de onze execuções, com todas
as pompas daquela infanda justiça, devia ser um bom sinal e aviso naquele
crepúsculo, em que se agitavam consciências à espera da manhã.
Para isso prepara-se tudo. A
lúgubre encenação vai ser de efeito maravilhoso.
A sentença havia já caído
sobre aquelas almas, lançadas fora do mundo. Já se haviam tomado todas as
providências para a cerimônia da execução daquelas onze criaturas humanas,
"que não vivem mais porque estão entre a vida e a morte".
Na rua, pela frente da cadeia,
passam a todo instante, furtivamente, algumas pessoas do povo, impulsionadas,
talvez, menos de curiosidade que desse instinto de misericórdia que nunca morre
no coração dos humildes. Essas pessoas veem de soslaio, e ouvem, passando, o
que vai de horrível "naquela câmara ardente".
Já no Largo da Lampadosa se
erguia "uma forca nova, de grossos madeiros, e de altura desmarcada, como
convinha para indicar a gravidade do crime".
De tudo isso "resultava
um terror universal"...
Pela manhã de 20 de abril,
depois de terem ouvido missa os condenados, "abriram-se com estrondo as
portas da prisão, e apareceu o escrivão da alçada com a ratificação da
sentença".
Novos embargos, logo depois,
são também recusados.
Era admirável a coragem com
que aqueles juízes se apraziam de ver os desventurados contorcendo-se nas
amarguras daquele tormento dantesco!
Esperava-se ainda pelo último
recurso — o da Irmandade da Misericórdia — quando, pela meia hora da tarde, se
encaminha de novo, apressadamente, para o oratório "aquele mesmo ministro
(o escrivão do tribunal) que tantas vezes tinha levado para ali resoluções de
morte. A aceleração de seus passos causou grande alvoroço. O seu rosto vinha
como transfigurado; e ninguém poderia fitar os olhos nele sem sentir a terrível
majestade da justiça real. Abriu os autos e leu: "Sem embargo dos
embargos, que não recebem por sua matéria, vistos os autos, cumpra-se o acórdão
embargado".
Nada mais havia a esperar.
Aquelas palavras "caíram sobre os condenados como garras de abutres. Um
mortal suor os banhou, e tragaram a última gota de fel...".
4 - Fez então, o ministro, uma
pausa, como se saboreasse a expectação daqueles mortos... E depois, leu uma
carta régia. Era essa carta, da rainha, datada de 15 de outubro de 1790: já
estava, portanto, no Rio, havia dezoito meses. Tudo o que se fazia, pois,
destinava-se a amargurar os míseros condenados, e a produzir escarmento entre o
povo.
À vista dessa carta régia,
lavrou-se novo acórdão, que o escrivão leu em seguida: "Em observância da
Carta da dita senhora, novamente junta, mandaram que se execute inteiramente a
pena da sentença no infame réu Joaquim José da Silva Xavier, por ser o único
que na forma da dita carta se faz indigno da real piedade da dita senhora.
Quanto aos mais réus a quem deve aproveitar a clemência real, hão por comutada
a pena de morte na de degredo perpétuo".
Ouvidas estas palavras, um
vasto alarido se fez, dentro e nas vizinhanças da cadeia.
É indescritível o que se passa
então. A cidade inteira sentiu-se como de súbito aliviada do pesadelo que a
oprimia. Prorrompeu toda a população desafogada em gritos como de loucura.
Partiram próprios para Minas, a espalhar a boa nova, lá na terra dolorosa... As
famílias mais devotas, em lágrimas, abriram os oratórios, cantando terços em
ação de graças.
Mas é entre os condenados —
aqueles espectros da morte que ressuscitam agora! — que se passam os lances
mais tocantes. Abalados da mesma comoção, uns choravam, outros riam
convulsamente. Enquanto se lhes tiravam as correntes e os grilhões, abençoavam
eles os oficiais, abraçando-os em seguida, beijando-lhes as mãos... como
famintos de viver.
No meio de todas as alegrias
daquela ressurreição, só o Tiradentes continuou "ligado de mãos e
pés", testemunhando, lá da sua penumbra, o milagre daquela mudança. Era o
único, por desvalido e humilde, que os juízes não julgaram digno da piedade da
soberana.
Ia ser o bode expiatório de
toda a maldade daquela geração.
5 - Vem agora o epílogo da
tragédia, com aquela cena de monstruosa selvajaria, que é preciso deixar sempre
muito viva na consciência da posteridade, para que sirva de estímulo a todos os
que detestam a tirania e confiam na justiça. Assistindo em espírito àquele
espetáculo, teremos, muito clara, pelo menos a medida da distância, de pouco
mais de um século, que já nos separa daquele regime sacrílego e brutal.
É preciso recordar que o homem
que vai para o patíbulo, até a última hora se mostrou tão corajoso como
contrito; e respondeu ao diretor que o confortava: "que ia morrer, agora,
cheio de prazer, pois não arrastava consigo tantos infelizes...".
— Amanheceu aquele 21 de abril
de 1792, um belo sábado de sol glorioso.
Tinha ordenado o Vice-Rei que
tudo se fizesse para tornar aparatosa a execução do Tiradentes. Chegou-se a
atrair para a lúgubre cerimônia o concurso da população, ameaçando-a de que
incorreria no desagrado da rainha quem se abstivesse de assistir àquele
espetáculo edificante.
Convocou-se toda a tropa
disponível, sem esquecer a própria guarda pessoal do Vice-Rei. Estenderam-se os
vários regimentos em alas pelas ruas por onde tinha de desfilar o préstito
sinistro.
Trajava toda a soldadesca o
uniforme de gala, ornado de festões de flores. Os cavalos montados pelos
ajudantes, oficiais, ouvidores e mais autoridades, tinham as ferraduras
rematadas de laços cor-de-rosa. No meio de toda esta pompa, andavam os
"irmãos da bolsa, com suas capas e salvas de prata, a esmolar dentre o
povo para o sufrágio da alma do irmão padecente...".
A cidade parecia em festa
desusada. Pelas janelas era imenso e alvoroçado o mulherio, e tinha um aspecto
de alegria e arruído das crianças e o bulício das ruas engalanadas.
6 - Num certo momento, aquela
cena toda se agita mais estranhamente. Soam clarins, rufam caixas de guerra.
Ouve-se o estridente rodar da artilharia, o tropel dos cavalos, o tinir das
armas, "sem que a serenidade de alma da vítima se ressentisse desses
rumores, sem que o mais ligeiro sinal de susto lhe alterasse a
fisionomia". Estava perfeitamente confortado das suas orações. Dir-se-ia
que o cárcere, que por tanto tempo o isolara do mundo, lhe tinha mudado aquela
índole vivaz e irrequieta. Não fala: abisma-se na sua meditação. O que só
deseja, diante dos algozes, é mostrar, na hora do sacrifício, que sabe dar
testemunho da grande causa que lhe custara a vida. Valeram-lhe a fé e a
resignação "essa coragem que a tantos heróis tem faltado na hora suprema".
Pelas sete e meia da manhã,
entrava na prisão o algoz. Ia vestir-lhe a alva de sacrificando, e
"atar-lhe o baraço ao colo". Pedindo-lhe, como de costume, o perdão
da morte, placidamente voltou-se ele para o carrasco, dizendo-lhe: — "Oh
meu amigo! deixe-me beijar-lhe as mãos, e também os pés". E fez isso com
tanta humildade e contrição, que o carrasco, tão afeito a semelhantes lances,
"chegou a comover-se, e deixou escapar uma lágrima".
Ao despir-se para vestir a
alva, tirou também a camisa, dizendo que por ele "morrera também Jesus
assim".
Batiam oito horas nas torres
da cidade, quando se deu o sinal do saimento.
Tomou a vanguarda um regimento
de cavalaria com a sua fanfarra. Seguiam-se o clero; a Irmandade da
Misericórdia, levando erguido o seu estandarte; e os Religiosos de São
Francisco, que rodeavam o padecente, repetindo os salmos próprios de tais
cerimônias. "Após o padecente, caminhava o executor, ladeado de seus
ajudantes, e segurando as pontas da corda que cingia o pescoço da vítima, e que
o prendia entre a vida e a morte".
Rodava atrás de todo o
acompanhamento, arrastada por doze galés, a carreta que devia voltar cora o
cadáver do supliciado, reduzido a postas.
— Algemado, tendo entre as
mãos a imagem de Cristo, marchava o padecente. Tinha as faces abrasadas,
caminhava apressado e intrépido, e monologava com o Crucifixo, que trazia à
altura dos olhos, e que só deixou de fitar com estremecimento por duas vezes em
que levantou extático a fronte para o céu.
Nunca se vira "tanta
constância e tamanha consolação em transe tão angustioso! Não foi menor em toda
a assistência a admiração e o pasmo".
7 - Soavam onze horas quando
chegou o padecente ao campo, entrando, com as pessoas da justiça, no recinto
formado por três regimentos. Subiu ligeiro, e a passos firmes, os vinte e
quatro degraus do patíbulo. Deu então, ao algoz, lugar para o fatal preparo,
pedindo-lhe apenas, por três vezes, que abreviasse aquele transe.
E como se até esta última
graça lhe quisessem recusar, subiu neste momento alguns degraus do cadafalso o
guardião do convento de Santo Antônio (um fr. José do Desterro) e dali,
dirigindo-se aos espectadores, improvisou, muito inflamado, uma prática,
prolongando assim as angústias do padecente. Depois, rezava o símbolo dos
apóstolos, à medida que ia descendo; até que se sumiu a sua voz... e a um
frêmito da turba, que os tambores abafaram, destacou-se no espaço, suspenso de
uma das traves, o corpo em convulsões.... até que o carrasco fez o seu ofício.
O povo, em silêncio de
consternação, começou a dispersar; desfez-se o triângulo, metendo-se em coluna
os regimentos, ao som das caixas. Mandou, então, o comandante fazer alto, e ler
uma fala às tropas, sobre a fidelidade devida aos soberanos, e engrandecendo a
clemência da rainha...
Como está invariavelmente na
índole de todos os despotismos, a torpíssima cena do espostejamento do cadáver
tem de acabar com sinais de regozijo público, para que se sinta bem que tudo
aquilo se liga ao esplendor da régia majestade; e longe de ser um excesso
repugnante de crueza, é uma forma da grande justiça que desce dos tronos.
No mesmo dia, logo após a
execução, reuniu-se o Senado da Câmara, e deliberou convidar, por editais
afixados pela cidade, todos os habitantes a "deitarem luminárias por três
dias", esperando que "não fosse necessário punir os que o contrário
praticassem"...
E as festas foram celebradas
com toda pompa, e tanto aqui como em várias localidades de Minas.
— E, no entanto, não havia
meio de disfarçar que essas demonstrações nada significavam mais que simples
manobras do torvo espírito do regime. Tudo aquilo é comum a todas as sociedades
políticas em fases de transição, quando um poder ou uma instituição que morre,
ou que pressente a morte, se encontra com os primeiros sinais dos novos tempos.
O choque é sempre temeroso; pois, antes de tudo, desperta, nos que representam e
guardam a instituição combalida, as maiores anomalias morais, as enormidades
mais absurdas e estranhas, que pareciam já relegadas para o fundo das eras, mas
que ressurgem da noite como em grande alarma, a ver perigos em toda parte, e
pretendendo loucamente retardar a inevitável eclosão do dia nascente.
---
Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
http://memoria.bn.br
http://memoria.bn.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...