A Revolução de 1817
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
1 - O que se vai dar agora em Pernambuco pode considerar-se como sintoma de
tendência e aspirações que andavam latentes no ânimo geral da colônia. Tinha
passado a ilusão da presença da corte; e os males, que não cessaram com o rei
na América, têm de atribuir-se mesmo, antes de tudo, às instituições.
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Já vimos em lição anterior
(capítulo XI, parte quarta) como em Pernambuco se formara (durante o século
XVII) um forte espírito da pátria. Com o tempo esse espírito se tornou cada vez
mais vivo; até que, por princípios do século passado, se revelou por uma
conjuração, que só não tomou proporções da Inconfidência Mineira talvez porque
faltasse lá no Norte um Barbacena. Tirou-se, no entanto, do caso, rigorosa
devassa (1801), e chegaram a ser presos alguns dos conjurados.
Esses impulsos que vinham
agitando a alma pernambucana chegaram a tais extremos que em 1815 as câmaras
todas da província representaram perante o próprio D. João contra abusos de
autoridades, e sobretudo, contra a impiedosa tirania das justiças; e até uma
daquelas corporações animou- se a fazê-lo em termos veementes.
O governo do Príncipe, em vez
de aperceber-se da sua desídia, ao menos para ouvir as queixas e agravos,
incendeu-se logo de indignações e suspeitas, não propriamente contra a altivez
da câmara, mas contra a pessoa que redigira a representação...
Para agravar o estado de
coisas em Pernambuco muito concorria ainda a indiferença do governador Caetano
Pinto de Miranda Montenegro ante os clamores dos povos. Quando alguém se lhe ia
queixar dos roubos e assassínios, e dos perigos que se corria nas próprias ruas
do Recife, o mais que ele fazia era aconselhar paternalmente que... não se
saísse à noite... e que se fechassem bem as portas...
Por 1815 e 16, em consequência
das complicações do Sul, a todos os motivos de queixas que ali sobram entre os
pernambucanos, juntavam-se outros, que vinham como de propósito para provocar a
explosão de cóleras que andavam reprimidas. O primeiro foi o atraso do
pagamento de soldo às tropas, atribuído mais à negligência do Governador que a
penúrias do erário. A grande preocupação de Montenegro era remeter dinheiro
para o Rio, pouco se importando com os encargos que se deixava de prover.
Depois, vieram o recrutamento
e as contribuições extraordinárias determinadas pelas guerras do Prata.
É do mal-estar, sentido por
todas as classes, que vai nascer o pensamento de sacudir de uma vez um jugo tão
penoso.
2 - Desde 1814 que Domingos
José Martins e Domingos Teotônio Jorge se entendiam com chefes políticos de
prestígio no Maranhão, no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, na Bahia,
e até no Rio de Janeiro. Na antiga metrópole colonial "toda a população
grada era partidária da revolução". Tudo induz a crer que a conspiração se
ramificava por muitas capitanias; e não falta quem afirme que o próprio
Príncipe D. Pedro era cúmplice de quanto se tramava.
Desde algum tempo, chegavam
denúncias a Montenegro, e até da corte lhe foram avisos. Nunca, porém, dava ele
crédito a semelhantes atoardas, ou porque não concebia o sacrilégio de revoltas
contra a majestade, ou porque ao seu ânimo desidioso era mais grato não
acreditar.
Chegou, porém, o momento, em
que não podia mais ficar impassível sem comprometer-se.
Deliberado a sair da sua
culposa inação, vai no entanto o Governador desatinadamente, em vez de conter
como presumia, precipitar os acontecimentos. Entendeu que devia dar primeiro
uma ordem do dia aos dois regimentos entre cujos oficiais "reinava com
mais calor o espírito de partido"; e logo no outro dia (5 de março) fez
correr também uma proclamação ao povo pernambucano, aconselhando paz e
fraternidade.
Não querendo assumir só por si
a responsabilidade de medidas que fosse obrigado a tomar, convocou para o dia 6
de março um conselho de generais da guarnição, quase todos portugueses. Houve
nesse conselho, que se efetuou em palácio, das 8 para as 9 da manhã, pareceres
que dizem bem claro como lavrava irreprimível rancor entre pernambucanos e
peninsulares.
Deliberou-se ali, afinal, que
se prendessem naquele mesmo dia todos os que se indigitavam como fatores da
conspiração, paisanos e militares. Combinou-se que da prisão dos paisanos se
encarregaria o marechal José Roberto Pereira da Silva, e da dos militares, os
próprios chefes dos respectivos regimentos.
Deu cada um conta da sua
tarefa com prudência e discrição. Só o brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de
Castro é que se mostrou de ardideza descomunal com os seus camaradas. Quando
estiveram todos reunidos, começou ele por increpar, desabrido e insolente, os
oficiais "que andavam esquecendo o seu dever". E à medida que ia
dando voz de prisão a cada um dos malsinados, não deixava de repreendê-lo
severamente. Ao chegar a vez do capitão José de Barros Lima, tratou-o Barbosa
de Castro com redobrada arrogância. Mas nem havia ainda proferido a voz de
prisão, quando o intimado o atravessou com a espada.
3 - Tinha explodido a mina. Um
oficial português, que assistira à cena, correu a levar ao Governador a notícia
do lance.
Ainda incrédulo do que lhe diz
o oficial, expede Montenegro para o quartel insurgido o seu ajudante-de-ordens,
tenente-coronel Alexandre Tomás. Vai este encontrar o quartel, de fato, em
alvoroço geral de rebate; e no momento em que tenta falar à tropa, cai
transpassado de balas.
O tumulto, das imediações do
quartel, propaga-se rápido e sinistro por todos os bairros. Os gritos pelas
ruas confundem-se com o som dos clarins e dos sinos em todas as igrejas.
Fecham-se as casas; e os portugueses, assustados com os clamores, procuram
refúgio nas fortalezas e nas embarcações surtas no porto.
Montenegro foge para o Recife,
e mete-se no forte do Brum. Dali tenta frustrar o levante; mas era tarde, e
todo o seu esforço foi perdido. Os sublevados estavam senhores de tudo.
No dia 7, pela manhã. Domingos
Teotônio, à frente de 800 homens, intima o Governador a capitular; e este cede,
entregando a fortaleza aos revolucionários.
Dali a dias, embarcava
Montenegro para o Rio, onde chegou a 24, sendo recolhido preso à ilha das
Cobras.
Triunfante a revolução,
cuidaram logo os chefes do movimento (no mesmo dia 7) de organizar um governo
provisório, do qual fizeram parte: o capitão Domingos Teotônio Jorge, o padre
João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, o Dr. José Luís de Mendonça, o coronel
Manuel Correia de Araújo e Domingos José Martins. Além de dois secretários, que
foram José Carlos Mayrink da Silva Ferrão e o padre Miguel Joaquim de Almeida Castro
(padre Miguelinho), associou-se à Junta de governo um conselho, composto de
homens escolhidos entre os mais dignos pela capacidade, moderação e virtudes
cívicas. Entre esses homens estavam Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva, o Dr. Antônio de Morais Silva e o proprietário Manuel José Pereira
Caldas.
Na sessão do dia 9, declarou
solenemente a Junta provisória, que a revolução era francamente republicana; e
nesse sentido tomou ainda outras medidas, como: abolição de títulos de nobreza
e privilégios de classes; o tratamento de vós e cidadão e patriota; abolição do
estanco real, de todos os monopólios e favores especiais, etc. Suprimiram-se
logo alguns impostos odiosos. Decretou-se também a nova bandeira, que seria
azul e branca, tendo na parte azul uma figura do sol nascente e no alto uma
estrela; e na parte branca uma cruz vermelha. Adotou-se ainda um novo laço nacional,
igualmente azul e branco. Deliberou-se que os atos do governo seriam datados da
segunda era da liberdade pernambucana.
4 - O que é certo é que a nova
ordem de coisas inspirou de pronto as mais vivas simpatias entre a população.
Não se podia, no entanto,
ficar trabalhando só no Recife. Era preciso, não só interessar na causa toda a
capitania, como estender o movimento para o norte e para o sul; pois em toda
parte se contava com valiosas adesões. Em todas as vilas da capitania, para
onde mandou logo a Junta os seus agentes, as câmaras e as populações fizeram
causa com os patriotas do Recife.
Na capitania da Paraíba, com
grande aparato de tropas, ao som de salvas e sinos, Amaro Gomes Coutinho e
Estêvão Carneiro da Cunha proclamam a república, no meio de aclamações gerais
do povo reunido.
Na do Rio Grande do Norte, o
coronel André de Albuquerque Maranhão prende o capitão-mor José Inácio Borges,
e promove a adesão aos pernambucanos, organizando-se logo um governo
provisório.
Para a capitania do Ceará foi
o subdiácono José Martiniano Pereira de Alencar, alma arrebatada e cheia de fé
na vitória das ideias liberais. Lá, com o concurso de outros patriotas,
proclama (3 ou 4 de maio) na vila do Crato a república, no meio de grande
entusiasmo da população. O mesmo faz na vila do Jardim.
Mas a notícia, que logo depois
se espalha, de que a revolução fracassa nas capitanias do Sul bastou para que
tudo se desfizesse nas duas vilas, sendo presos Alencar e outros chefes.
Para a Bahia, onde se contava
com poderosos elementos, foi enviado o ex-padre José Inácio Ribeiro de Abreu e
Lima (o padre Roma). Como se tivesse demorado em Alagoas, quando chegou à
Bahia, já por ali eram conhecidos os sucessos de Pernambuco, e o desavisado
arauto da revolução foi preso ao saltar de sua jangada (27 de março).
O Conde dos Arcos, mesmo sem
nenhuma ordem, nem instruções do governo do Rio, tratou, com solicitude e
pressa desusada, de eliminar o incauto emissário dos pernambucanos. Um tribunal
adrede improvisado condenou, sem forma regular de processo, o padre Roma à pena
de morte. Em menos de três dias fizera-se tudo!
5 - Esses desastres consternam
os republicanos do Recife, pois esperavam que o levantamento das duas poderosas
capitanias viria decidir da sorte da revolução.
A notícia de tais insucessos
começa logo a criar embaraços para a Junta; pois os portugueses vão dando
sinais de reação.
Não seriam decerto essas
contrariedades que fizeram esmorecer aqueles homens, tão fiéis à consciência
com que se haviam levantado; antes parece que eram motivos para que redobrassem
de coragem. Nem era possível que se perdesse aquele esforço heroico depois de
se haver alcançado um êxito que maravilhou os mais incrédulos em todo o país.
É assim que se cuidou até de
criar no exterior uma atmosfera moral favorável àquela justa aspiração,
enviando-se mesmo agentes para alguns países da América e da Europa.
Mas era fatal o que sobrevêm.
Num país tão vasto, não era fácil a ação coerente de populações, que, além de
tão distanciadas umas das outras, andavam todas, nos seus anseios de vida nova,
em luta com as velhas superstições da majestade.
Começa-se em toda parte a
recuar do avanço dado. Enquanto a esquadrilha real de Rodrigo Lobo ia (16 de
abril) bloquear o Recife, as forças de terra, enviadas pelo Conde dos Arcos sob
o comando do marechal Joaquim de Melo Leite Cogominho de Lacerda, chegavam à
fronteira do São Francisco. Atravessam logo o rio e põem-se em marcha para o norte.
O que mais assustava os
patriotas era saber-se que o mar estava "tomado de esquadras legais",
e as povoações da costa já reduzidas à obediência, e com entusiasmo apavorante
pela reação.
Fecha-se logo "o
horizonte de Pernambuco". Proclama-se a pátria em perigo, e um grande
terror cai sobre a cidade do Recife. Decreta-se o recrutamento geral. Do
palácio dos governadores transfere-se a Junta provisória para o da Soledade,
"quase no campo". Muitas famílias abandonam a cidade, onde começa a
"fazer-se sentir a fome".
Correm notícias da rendição de
Alagoas, do Rio Grande, da Paraíba. Tanta inconstância daquelas populações
penaliza, mas não quebranta os pernambucanos. Levantam-se no Recife, e noutras
vilas, batalhões de voluntários, à frente dos quais se punham até padres, e o
próprio guardião dos franciscanos.
No dia 25 de abril, a esquadra
que bloqueia o Recife é reforçada com as forças navais que chegam do Rio;
enquanto Cogominho, já em território de Pernambuco, avança decisivo para o
norte. Naquele momento de desespero, sai do Recife Domingos Martins à frente de
uma guerrilha, a encontro do exército realista que vem do sul.
6 - Não demorou, porém, que
fosse destroçado; e o seu companheiro de causa, Francisco de Paula Cavalcanti
de Albuquerque, tendo conseguido fugir, vem pôr o Recife na maior angústia e
aflição. O governo provisório já estava reduzido a dois membros — o padre João
Ribeiro e Domingos Teotônio. Domingos Martins estava preso. O Dr. Mendonça e o
coronel Araújo meteram-se em casa, a ruminar o destino cruel que os enganara.
Rodrigo Lobo, com o desplante
de quem está com a razão da força, não quer saber de capitulação, e impõe
categórico e imperioso, como se a sua bravata já fosse um castigo: Submissão
sem condições.
Assume então Domingos Teotônio
a ditadura no Recife, e dispõe-se a afrontar até o fim o desabrimento de Lobo.
Vem logo depois, no entanto, a
boa razão falar mais alto que aqueles ímpetos de catástrofe. Sabendo que Lobo
não se demoveria da sua estúrdia, resolve o ditador sair da cidade, para
poupá-la, e fortificar-se no interior onde aguardaria os realistas.
No dia 19 de maio, pelas
quatro horas da tarde, começou a desfilar a tropa, tomando o rumo de Olinda.
"Sentia-se por toda parte
o silêncio da morte. A paixão violenta torna o homem estúpido. Marchavam
todos... sem saber para onde..." Teotônio "marchava a cavalo na
frente das tropas".
O padre João Ribeiro caminhava
a pé, com um saco às costas e uma espingarda ao ombro, e "descalço, para
dar exemplo aos outros". Dos conselheiros da dissolvida Junta, foi Antônio
Carlos o único que seguiu a sorte daquele exército de prófugos.
Ao cair da noite
"chegaram todos ao engenho Paulista, não muito distante de Olinda, e ali
acamparam".
Só pela manhã do dia seguinte
é que se soube no Recife que os republicanos haviam evadido.
E reboou em toda parte o grito
de — viva el-rei!
Desembarca Rodrigo Lobo, sendo
recebido com grandes festas.
Assumiu imediatamente o
governo da capitania. E então fechou-se, lúgubre e medonha, a noite da amargura
para aquelas almas que a paixão da pátria inflamara.
7 - O exército fugitivo,
durante a noite, debandara, só ficando ali o padre João Ribeiro que se
suicidara em vez de esconder-se. Os outros foram sendo apanhados um a um, pelos
caminhos do sertão, ou nos esconderijos.
À medida que iam sendo presos
os patriotas em toda parte, eram remetidos para a Bahia, onde já funcionava a
comissão militar que devia julgá-los.
Essa comissão fazia tudo
heroicamente e com muita presteza. Ouvia as vítimas, sem dar-lhes atenção
nenhuma, e em poucos minutos dava a sentença irrevogável.
Os primeiros executados no
campo da Pólvora foram Domingos Martins, o Dr. José Luís de Mendonça e o padre
Miguelinho.
Para Pernambuco mandou-se um
brigadeiro, Luís do Rego Barreto, que por aqueles dias chegara da Europa,
"ansioso por fazer na América mais fortuna ainda do que lá". Chegara
ele ao Recife com vasto aparato de tropas "das três armas", como se
tivesse de fazer com o máximo de solenidade o desagravo das leis. Assim que
assumiu o governo, decretou o sequestro dos bens de todos os presos; e instalou
a comissão militar permanente.
A primeira vítima foi Antônio
Henrique Rebelo. Ao subir ao cadafalso, grita inflamado: viva a pátria! Logo
depois: o padre Pedro de Sousa Tenório, Barros Lima e Domingos Teotônio. Todos
afrontam a morte.
Em seguida: José Peregrino
Xavier de Carvalho, o herói de vinte anos, e que os esbirros do regalismo só
apanharam abusando da sua piedade filial! e mais: Amaro Gomes, Francisco José
da Silveira; logo Inácio Leopoldo de Albuquerque Maranhão, o padre Antônio de
Albuquerque...
Durante mais de dois anos
estiveram em consternação aquelas capitanias do Norte.
Por fim, chegou bem tarde como
sempre, mas chegou, a misericórdia, como graça de festas, em 1818.
Não quer isso dizer, no
entanto, que estivesse desagravada a majestade. Até 1820 trabalhou o tribunal
que se instituíra, pois a coragem dos juízes só esmoreceu com a revolução do
Porto.
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
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