Portugal e a
Revolução
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Nas vésperas da Revolução, achava-se Portugal,
sob o aspecto político, em condições análogas às em que se viam os outros povos
do continente. Sobretudo fora dos maiores centros urbanos, resignavam-se ainda
as populações a sofrer uma situação muito pouco distanciada do pleno regime feudal.
As condições econômicas, e o próprio estado civil,
decorrentes de tal situação, eram mesmo talvez mais penosos do que em outros
muitos países da Europa, devido, principalmente, à fase de decadência que se
acentuava na velha monarquia.
Mesmo depois do desvalimento do Marquês de Pombal no
entanto, não se pode dizer que tivesse morrido de todo o espírito de reforma.
Nem era possível que ficasse o reino inteiramente estranho ao que se passava em
outros países. E a prova disso vão dar-nos as condições em que os primeiros
movimentos de Paris vêm encontrar o sentimento geral da sociedade portuguesa.
Como os liberais de toda a Europa, tem-se ali os
olhos voltados para a grande metrópole do mundo latino, principalmente depois
da independência das colônias inglesas da América.
A ansiedade de todos os povos, à espera de que da
França venham os sinais, torna-se alvoroço e quase delírio no momento em que
Luís XVI é forçado a convocar os Estados Gerais.
Em parte alguma houve a princípio, no ânimo das
próprias classes vigentes, a mais leve suspeita contra o que ia ocorrendo em
Paris. Dir-se-ia que a atitude das cortes era mais de curiosidade e de simpatia
dissimulada, que propriamente de indiferença. E isso, enquanto o que havia de mais
culto na Europa dava sanção expansiva à coragem com que o povo francês tomava a
responsabilidade de lançar as grandes reformas por que todos anseiam. Homens,
que permaneciam identificados com a iniquidade, de um momento para outro
acordam de alma agitada para as procelárias que anunciam a tormenta.
Crer-se-ia, ao meditar fenômeno aparentemente tão estranho, que há, profunda e
imperiosa, na consciência das nações, como na dos indivíduos, uma força de que
elas só se apercebem e que só revelam nos grandes momentos da sua vida.
2 - Mas, particularmente em Portugal, as primeiras
impressões, causadas pelos sucessos de Paris, eram positivamente de esperança e
alegria.
Quando se recebeu notícia da convocação dos Estados
Gerais, todo mundo acreditou que realmente do longo trabalho e do esforço de
toda a cultura do século nada se havia perdido.
E é preciso notar que não eram apenas os intelectuais
que saudavam o que se ia fazendo na capital francesa: entre os próprios
políticos militantes, mesmo nos círculos oficiais, ninguém disfarçava simpatias
pelo heroísmo do grande povo, nem mesmo depois que se definiram os
acontecimentos pela abolição do governo absoluto.
O ministro português em Paris, Vicente de Sousa
Coutinho, em cartas dirigidas ao famoso Luís Pinto, ministro de estrangeiros,
começou elogiando, em termos calorosos, a mudança do regime, e acabou fazendo
francamente a apologia da Revolução.
"Nos anais do mundo não se faz menção de um
movimento como este, a que deram lugar os pérfidos conselhos que dirigiram ao
rei, e o pouco conhecimento do século" — escrevia o embaixador a 30 de
julho, depois, portanto, da tomada da Bastilha, e quando a Revolução já se
acentuava nos seus intuitos sociais.
Pela sua parte, o ministro de estrangeiros emulava
em entusiasmo com o embaixador; e a "própria Gazeta de Lisboa, órgão oficial da corte e do governo, saudava (diz
Latino Coelho), com festivas aclamações, a tomada da Bastilha, a que chamava instrumento da tirania; e encarecendo
muito a memorável sessão de 4 de agosto, em que a Assembleia Nacional abolira as
últimas relíquias da feudalidade, desoprimindo da servidão a terra e o povo, e estatuindo solenemente a igualdade
civil entre as classes, outrora em antagonismo".
3 - Vicente Coutinho chegava, em suas cartas,
tratando do que se fazia em França, a arriscar alusões muito claras à situação
de Portugal.
Em sua opinião, "o que a França proclamava como
remédio e lenitivo aos seus males, podia-se também aplicar, não somente àquela
monarquia, senão a todas as da Europa, que dos mesmos achaques haviam
largamente adoecido".
Logo depois, era ainda mais franco e explícito
tratando da abolição dos antigos privilégios. "Aplaudia vivamente,
sobretudo, a nova legislação, segundo a qual a pena e a infâmia não podia mais
passar da pessoa do delinquente e chegava a pedir com insistência, à rainha,
que decretasse, de sua autoridade e moto próprio, sem nenhuma intervenção de
voto popular, tão justa providência, e quantas outras pudessem corrigir a
barbaria da lei penal".
Bem se vê de tudo isso que o espírito do tempo
sentia sem reservas como a antiga ordem política e social já era mais
sustentável.
O que é certo, no entanto, é que naqueles primeiros
instantes ninguém tinha ideia das proporções que os sucessos de Paris iriam
tomar. Os próprios fautores daquela obra andariam longe de alcançar a diretriz
que a Revolução tomaria.
Tinha, pois, de vir logo a surpresa para os próprios
corações que se agitavam.
Não demorou que a atitude da Europa fosse mudando
diante de Paris, e que aqueles mesmos, que tinham visto como um romper d'alva
aquelas estranhas ocorrências, começassem a espantar-se daquilo mesmo que
tinham aplaudido.
E aos primeiros movimentos de espanto houve por toda
parte uma tal desorientação do espírito dominante que não se saberia dizer se
era medo, terror ou indignação o que em toda as cortes se sentia contra a
França.
A princípio, apesar mesmo das tendências que se não
dissimulavam, as apreensões, que as novas ideias inspiram a todos os governos
fundados na tradição, iam aconselhando medidas que pudessem evitar o perigo do
contágio.
Em Portugal, como na Espanha, chegou-se a recorrer
aos serviços da Inquisição, dando-se ao ominoso tribunal novas forças! Ao mesmo
tempo proibiu-se a entrada de livros e jornais no reino; decretou-se a expulsão
de muitos estrangeiros, principalmente franceses.
Esses recursos, afinal, não faziam mais do que, pela
atmosfera de pavor que assim se criava, tornar mais angustiosa a situação;
mesmo porque, apesar das cautelas, entravam sempre livros e panfletos
subversivos. O intendente Pina Manique tornou-se famoso pelo extremo rigor e
intolerância com que perseguiu suspeitos.
4 - Em toda parte, uma vigilância de guerra
procurava guardar o país em alarma, isolando-o do incêndio ateado em Paris.
Aquele mesmo Vicente Coutinho, que tão radioso havia
comunicado para Lisboa os pródromos da Revolução, mudava de ânimo agora, e só
ante o decreto que abolia a nobreza e os títulos honoríficos, qualificando-o de
"vergonhoso e impolítico". Tanto pesa a tara dos tempos na
consciência dos homens!
E a mutação se fez rapidamente em todas as esferas.
A Gazeta de Lisboa não deu mais uma nota sequer sobre as coisas da França, a
respeito das quais, um pouco antes, se mostrava tão interessada.
Não se pense, porém, que semelhante reserva exprimia
mais que o estado de ânimo da corte: como se estava a enfrentar com o
desconhecido, o mais prudente era nada aventurar deixando documentos...
Assim pudesse Portugal guardar sempre essa
continência.
Mas, vem a coalizão geral contra a França. Esta, no
entanto, não espera pela ofensiva. E enquanto os exércitos da Revolução
transpõem as fronteiras e vão levar ao despotismo conjurado o protesto da nova
soberania — o movimento que se opera em Paris, até ali vacilante quanto à forma
de governo, afirma-se decisivo no sentido de romper-se de todo com as velhas instituições.
Alguns dias depois dos massacres de setembro, a
Convenção proclama a República.
E então começam no interior as complicações que
convulsionam a capital e as províncias.
Em 1792 vai caindo a França no espantoso cataclismo.
O Terror faz estremecer a Europa inteira
horrorizada.
Todos os governos do continente rompem com a França;
e a eles, junta-se agora a Inglaterra, até aquele momento hesitante.
A intervenção da Inglaterra vence de uma vez as
vacilações da Espanha. Teve Portugal de ir seguindo maquinalmente os passos da
Espanha. Dissimulando, perante a Convenção, o mais que era possível, uma
atitude tão estranha, entrega o governo de Lisboa a sua esquadra aos ingleses,
e manda uma divisão auxiliar incorporar-se ao exército espanhol que vai invadir
a França.
A campanha do Roussillon, e em seguida a da
Catalunha, foram grandes desastres para espanhóis e portugueses.
5 - Com a paz de Basileia (1795) entram os negócios
internos da República Francesa a assumir um aspecto menos aflitivo. Dissolve-se
a Convenção; e constitui-se o Diretório. Em Paris, a revolta das seções é
dominada.
E começa Bonaparte a fazer a sua inverossímil
fortuna. Restabelecida a ordem na capital, parte ele para a Itália. Impõe logo
uma paz humilhante ao rei da Sardenha. Expele da Lombardia os austríacos,
impondo-lhes a paz de Campo-Formio (1797).
A Espanha, de todo entregue à França, rompe com a
Inglaterra. Era o mesmo que romper com Portugal. Os espanhóis invadem
Trás-os-Montes, Algarve, Alentejo; e forçam a corte de Lisboa a assinar o
tratado de Badajós, com a perda de Olivença (1801).
Ao cabo de um instante de desafogo, estava outra vez
o velho reino apertado entre a Inglaterra e Bonaparte. Compra a este o direito
a uma neutralidade só de nome, e à custa de uma contribuição iníqua e
odiosíssima, que a muito esforço e arte conseguira reduzir a dezesseis milhões.
Em 1805 recomeçam as guerras da Europa contra a
supremacia ameaçadora de Napoleão. Convence-se este de que é preciso, antes de
tudo, domar o leão britânico; e forma definitivamente o plano de levar contra ele
ura grande exército. Reúne em Bolonha forças colossais, e prepara, de aliança
com a Espanha, uma poderosa esquadra.
Mas a Inglaterra consegue travar uma nova coalizão,
em que entram a Rússia e a Áustria.
Ameaçam estas a França, e obrigam o Imperador a sair
de Bolonha. De vitória em vitória, chega ele a Austerlitz.
O governo português toca ao auge da ansiedade.
Ameaça-o, agora, a própria Espanha, entregue, como estava, aos caprichos da
vontade imperial; conquanto, por se não privar do apoio da Inglaterra para qualquer
emergência, pretendesse também, exatamente como Portugal, passar como potência
neutra. Para isso, reuniu forças nas fronteiras ocidentais, ao mesmo tempo que
concertava aliança clandestina em Paris.
Mas o destino é que não estava por aquelas contemporizações.
De repente, eis que se recebe em Madrid a notícia
estupefaciente de que o suserano da Europa decretara a deposição do rei
Fernando, das Duas Sicílias (irmão de Carlos IV de Espanha), nomeando-lhe por
sucessor José Bonaparte, que já ia a caminho de Nápoles!
E a pobre Espanha estremece na sua angústia!
6 - Começa Napoleão a distribuir tronos: e de novo
se alarmam as cortes da Europa. Levanta-se a Prússia. A Inglaterra desilude-se
de conciliação com aquele homem temeroso, que se fazia senhor do mundo; e
põe-se outra vez à frente do protesto geral.
As cortes de Lisboa e de Madrid entendem-se às
ocultas com o governo de Londres. Havia, tanto numa como noutra, grande ânsia
de reprimir os excessos daquela vontade onipotente; mas temiam as surpresas que
pudessem vir contra os díscolos do culto imperial.
Com a entrada, porém, da Prússia na nova coalizão,
assanham-se contra a França muitos governos que ainda guardavam uma discreta
expectativa.
Entre esses inimigos disfarçados, estavam os dois
reinos da península. A Espanha chegou a mover-se afoitamente, como para um
grande cometimento militar; mas de modo tão ridículo, que não disse contra quem
se ia fazer a guerra. O governo de Madrid deitou proclamação, concitando os povos,
em tom heroico, a uma guerra santa, mas sem dizer qual era o inimigo contra
quem se devia tomar armas...
Sabe-se o que foi a campanha da Prússia, a mais
brilhante de todas as do Imperador. De vitória em vitória, cada qual mais
estrondosa, dentro de um mês, entra Napoleão triunfante em Berlim, derribando
de um golpe certeiro a monarquia prussiana.
Pode imaginar-se o espanto e o terror que produz em
Madrid e em Lisboa a notícia de tais vitórias!
O expediente foi aplacar-se a cólera imperial; e
para isso, a tudo se sujeitaram as duas cortes. Além de tributo, exigiu
Napoleão que se aumentassem os contingentes de tropas que a Espanha lhe
fornecia.
Por mais docilmente que a tudo se acedesse, o
Imperador, preocupado com os seus grandes planos no continente, fingia acreditar
nas demonstrações com que julgavam enganá-lo. Adiava, assim, o ajuste de
contas.
Portugal, então, é que se viu num transe de que não
é possível dar ideia: "pagava dez milhões ao Imperador (e fornecia-lhe
tropas), e por outro lado tinha de abastecer muitas vezes, à própria custa, as
esquadras da Inglaterra; e tudo isso para manter uma neutralidade que tanto a
Inglaterra como a França andavam a cada passo violando".
7 - Não demoraria, no entanto, que os acontecimentos
viessem criar na península uma situação que não se poderia mais resolver pelo
dinheiro, nem pela astúcia.
Vitorioso contra os maiores inimigos do continente,
sentia Napoleão que o destino lhe definia o papel no meio daquele mundo vencido
e assombrado.
Aniquiladas as grandes potências que o afrontavam,
volveu armas contra o inimigo que lhe opunha resistência formidável.
Compreendeu que não subjugaria os ingleses senão organizando contra eles um
sistema de hostilidade, do qual o ataque pelas armas não seria mais que o
complemento. Isolar a Inglaterra seria a primeira condição da vitória.
Lançou, então, o incrível desígnio. Para que mais
impressão causasse, foi o decreto publicado em Berlim, a 21 de novembro de 1806
– Segundo esse decreto, os navios, as mercadorias, até as propriedades imóveis,
e as mesmas pessoas dos súditos ingleses que se encontrassem em qualquer país do
continente, seriam boas presas de guerra.
A semelhante audácia, rebateu o governo inglês
declarando por sua vez a todas as nações que, todos os portos, todas as praças
e todas as colônias de França, dos seus aliados e dos demais povos que se
sujeitassem à sua influência, considerar-se-iam como bloqueados da maneira mais
rigorosa, sendo ilegal todo o comércio de artigos provenientes dos referidos
Estados. Autorizava-se também o corso contra navios dos mesmos.
Eis aí em que terreno estava agora travada a luta de
morte. Era o mundo convulsionado pelo crime. Era a humanidade separada em duas
hostes que se revidam furores e arremessos de extermínio nos continentes e nos
mares.
Não se descreve a angústia em que se sentiu Portugal
entre o decreto de Berlim e a nota do ministro Canning.
Houve um momento de folga em pasmo, enquanto a
Rússia se movia.
Mas é logo chamado à conciliação o imperador da
Rússia, e o própria Báltico fechava-se aos ingleses.
Fica Portugal esperando pela sua hora.
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