O Grito do Ipiranga
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Com a expulsão das tropas portuguesas, estava D. Pedro posto livremente no
seu caminho. A primeira coisa que cuida agora é a reconstituição do seu
governo, despedindo quase todos os antigos ministros, e nomeando: para a pasta
da guerra, o marechal Joaquim de Oliveira Álvares; para a da fazenda, Caetano
Pinto de Miranda Montenegro; para a de estrangeiros, reino e justiça, José
Bonifácio de Andrada e Silva. Na pasta da marinha continuou Manuel Antônio
Farinha.
José Bonifácio não era só a
figura preeminente do ministério: desde o começo foi o chefe do governo. Já lá
na província desde muito ia ele procurando encaminhar as coisas no sentido da
independência. É mesmo hoje certo que viera da Europa com o pensamento de dar o
seu concurso a uma obra que, mesmo de longe, vira o seu espírito como se fizera
oportuna.
Pode-se dizer que no dia 19 de
janeiro, tomara ele a direção daquele grande momento. Assim que se empossou do
cargo, fixou o rumo da política que era preciso seguir. Dirigia uma sociedade
em crise, e era necessário, antes de tudo, fazer um governo forte. Concentrar
todo o poder no Príncipe foi todo o seu cuidado. Só munido de grande autoridade
podia o Regente arrostar a situação que se ia criar agora, passando da vida
colonial para a vida soberana. Só assim poder-se-ia, não só reprimir o espírito
de desordem e o vício das facções que se implantavam em todo o país por uma
subversão do sentimento liberal, mas ainda conter as impaciências de muitos
que, no seu ardor patriótico, pudessem vir a comprometer a causa, precipitando
sucessos que não podem sair da sua lógica.
Eis aí, nas suas linhas
gerais, a orientação de toda a política de José Bonifácio, durante a fase de
transição em que teria de viver-se até que se efetuasse a independência e se
constituísse o novo Estado.
2 - Seguro da rota marcada,
foi ele, enquanto apressa a organização de forças militares para emergências
que possam sobrevir, neutralizando pouco a pouco os golpes que as Cortes de
Lisboa vibravam contra nós.
No intuito de aliar ao governo
da Regência todas as Juntas das províncias, convocou, por decreto de 16 de
fevereiro, um Conselho de Procuradores, eleitos pelos eleitores de paróquia, e
que devia reunir-se no Rio para colaborar com o Príncipe nas funções
legislativas. Tomou em seguida a precaução de decretar que, sem a sanção do
Regente, nenhuma lei ou ordem emanada de Lisboa se executasse no Brasil.
Ordenou também a todas as Juntas das províncias marítimas que não se
permitisse, sob nenhum pretexto, o desembarque de tropas portuguesas em
território brasileiro.
E, à medida que as Cortes agem
contra nós na sua ânsia de humilhar-nos, vai-lhes o grande ministro revidando
os golpes e desfazendo as tramas.
Em março fazia o Príncipe
voltar para Lisboa a esquadra de Maximiliano de Sousa com as tropas que vinham
destinadas a render a divisão de Avilez.
Pode imaginar-se como
repercutem, tanto na Europa como em todas as províncias, os sucessos que se dão
no Rio durante os três primeiros meses de 1822: o fico, a expulsão das tropas
portuguesas, a repulsa da última expedição, e os decretos que D. Pedro vai
dando como se fosse já soberano!
Além da coragem decisiva,
firmeza e serenidade com que o governo do Príncipe leva a grande causa, tinha
ainda de ir arrostando a situação que se criava aqui e nas províncias.
Dir-se-ia que a alma daqueles tempos andava agitada continuamente de um fluxo e
refluxo de anseios e paixões que se embatem, como se todo o mundo desvairasse
ante o desconhecido. Parece que entre aqueles homens, que se nutrem das mesmas
aspirações, e que defendem a mesma causa, só havia união no momento do perigo. De
modo que ao poder dirigente cumpria, não só resistir aos adversos, de fora e de
dentro, como conter os próprios fiéis.
Nas províncias são ainda mais
aflitivas as condições em que se veem os povos, indecisos no meio dos acontecimentos,
e ansiosos por sair de uma crise em que, aos desmandos gerais, se junta a
incerteza do futuro. Em toda parte, quando tiveram de renovar-se as Juntas, de
acordo com as novas instruções das Cortes, aumentaram ainda as complicações com
a recrudescência dos dois partidos — o português e o brasileiro.
Em algumas províncias, como a
de Pernambuco e logo a do Ceará, não demora a liquidar-se a situação favorável
a D. Pedro. Em outras, como as do Maranhão e do Pará, dominam os elementos
refratários amparados pelas guarnições.
O da Bahia tornou-se o caso
mais grave. Ali, o governador das armas, brigadeiro Madeira de Melo, toma
ostentosamente o partido das Cortes contra a nova Junta, que se manifesta pelo
Rio, que se tornou o augusto centro da
família brasileira.
3 - Enquanto se passam no
Brasil esses fatos, cresce em Lisboa a animosidade geral contra nós, e vão as
Cortes empenhadas, cada vez com mais ódio, em reduzir-nos outra vez à condição
de simples colônia. Não se atrevendo a castigar a rebeldia de D. Pedro,
tentaram punir os ministros e as Juntas que o tinham induzido a ficar no
Brasil.... Declararam sem efeito o decreto do Regente sobre o Conselho de
Procuradores. "Permitiram-lhe permanecer aqui até que se promulgasse a
Constituição da monarquia, "contanto" que se subordinasse ao
Congresso de Lisboa, e recebesse para seus ministros e secretários os cidadãos
que El-Rei nomeasse..." E fazia-se ainda sentir muito grave que
oportunamente se tomariam outras providências em relação ao regime que convinha
ao Brasil...
É assim que, a decretos de
escarmento, pretendem aqueles homens atalhar a revolução na América. Davam o
seu voto ostentosamente nas Cortes, e punham-se em festas, desvanecidos e
ufanos de haverem castigado os facciosos da colônia.
Quando lá chegou a notícia de
que D. Pedro, não satisfeito com o Conselho de Procuradores, não trepidou em
convocar uma Assembleia Constituinte, então desconcertou-se em furores aquela
câmara estúrdia. Declara-se nulo o decreto; destitui-se da sua alta
magistratura o Príncipe Real, e ordena-se-lhe que dentro de um mês embarque
diretamente para Lisboa sob pena de perder o seu direito ao trono.
Alguns dias depois desses
últimos assomos (a 30 de setembro) jurava-se a Constituição votada. Oito dos
representantes do Brasil, no entanto, protestaram contra ela, deixando de
jurá-la.
Mal sabiam estes que já
falavam por uma outra soberania, que deste lado do Atlântico se havia desde
muitos dias proclamado.
4 - Pode-se dizer que a
Independência, já de fato estabelecida, só precisava de um ato solene, que a
fizesse de direito. D. Pedro continuava a dar vivas a D. João VI; mas, em vez
de às Cortes portuguesas, já dá vivas à futura Constituinte brasileira, que se
havia convocado.
É esse ato solene que José
Bonifácio prepara com toda segurança e decisão.
É exato que em São Paulo havia
umas tantas dissenções. Chegou-se mesmo, por aqueles dias, a aventar, entre
algumas câmaras da província, a ideia de formar-se um governo local para cada
câmara, ao menos para garantir a ordem, enquanto durasse "a guerra civil
que os facciosos de São Paulo fomentavam".
Parecia, com efeito, a Junta
provisória na capital, entregue ao partido português, que na verdade ali se
mostrava meio desabusado. Havia já D. Pedro tomando, e com proveito, algumas medidas
tendentes a conter os desordeiros, que a indisciplina dos quartéis andava
insuflando.
Sabia-se, pois, que a
autoridade do Príncipe, no meio das complicações, não sofria por ali nenhuma
oposição formal. Davam-se, como em toda parte, embates de facções; mas a
aspiração da Independência não tinha inimigos ostensivos.
Tinha, porém, chegado o
momento em que o drama devia ter o seu desfecho; e não só José Bonifácio, por
um capricho do seu coração, desejava que se desse isso lá na terra do seu
nascimento, como ainda lhe entrava nos cálculos daquela política que vinha
seguindo, a conveniência de rematar a obra fora do Rio, e fazendo parecer o
próprio remate um como incidente imprevisto, ou mais um daqueles protestos com
que o Príncipe rebatia sempre ao despotismo das Cortes portuguesas.
Desde algum tempo falava-se da
visita de D. Pedro a São Paulo, havendo mesmo S. A. recebido, de várias câmaras
da província, mensagens pedindo-lhe que fizesse aos paulistas a honra que tinha
feito aos mineiros. Mais do que provavelmente foi o próprio José Bonifácio quem
promovera tais representações; pois tudo estava combinado e resolvido, desde a
viagem a Santos até o ato, subsequente à cena do Ipiranga, da aclamação de D.
Pedro como Imperador do Brasil.
No dia 13 de agosto deu o
Príncipe um decreto, investindo da autoridade de Regente, durante a sua
ausência, a Princesa consorte, D. Leopoldina.
Acompanhado apenas do seu
secretário e de alguns fâmulos e pajens, partiu D. Pedro no dia seguinte para
São Paulo, pela via terrestre. Desde o segundo dia de viagem foi, porém, o
séquito aumentando, até fazer-se luzida e aparatosa legião ao chegar às
vizinhanças da capital paulista.
No dia 24 estava Sua Alteza na
freguesia da Penha, onde pernoitou. Na manhã de 25, depois de ouvir missa,
montou a cavalo, e no meio da sua comitiva, escoltado de uma brilhante guarda
de honra em grande uniforme, tomou o caminho da cidade.
5 - Assim que se avistou o
cortejo a cerca de meia légua da cidade, numerosas girândolas deram o aviso da
chegada; e começaram logo os sinos a vibrar, e a estrugir a artilharia, postada
na frente do convento do Carmo. Ao transpor o Príncipe o grande arco triunfal
que se erguia à entrada da cidade, "cobriu-o de aclamações" o povo
que ali se apinhava como alucinado. Apeou-se então S. A. e toda a comitiva,
sendo recebido, em nome da cidade, pelo Senado da Câmara com seu estandarte
alçado, e pelo bispo diocesano com seu cabido e clero.
Feitas ali, diante de um
altar, as primeiras orações, seguiu o préstito lentamente para a Sé, indo Sua
Alteza Real debaixo de pálio. As ruas por onde desfilou o cortejo estavam
tomadas de imenso povo que abria alas a custo; e as janelas, guarnecidas de
colchas de seda, estavam cheias de senhoras, que vitoriavam o Príncipe,
jogando-lhe flores em profusão. Na Sé, cantou-se Te Deum solene em ação de graças, findo o qual recolheu-se Sua
Alteza ao paço, aclamado com o mesmo entusiasmo.
À noite iluminou-se a cidade;
bandas de música tocavam em coretos, e outras percorriam as ruas; e, em toda
parte, os folguedos públicos, e o movimento ruidoso de gente, deram à cidade um
aspecto feérico e uma nota de intenso júbilo.
No dia seguinte houve no paço
cortejo e beija-mão geral, no meio do mesmo regozijo em que se agitava toda a
população.
Bastou a presença de D. Pedro
para que tudo mudasse como instantaneamente em São Paulo. Verificou, aliás, por
si mesmo o Príncipe, que não havia por ali mais que desinteligências entre
pessoas da terra, ciúmes e rixas de famílias preponderantes, ideias políticas
mais ou menos exageradas, mas todos coerentes no propósito de resistência às
Cortes de Lisboa.
Limitou-se, por isso, a tornar
efetiva a dissolução da antiga Junta, nomeando para a província um governo
provisório, de acordo com as próprias leis do reino.
Proclamou enfim aos povos,
"recordando-lhes as grandes tradições da terra paulista, exortando-os a
não esquecer os efeitos gloriosos dos antepassados, e as provas de fidelidade
constante à casa de Bragança, recomendando-lhes sossego e harmonia, e
dizendo-lhes que com eles contava como consigo próprio, para a libertação do
Brasil".
Para aquela vila partiu D.
Pedro, com toda a sua comitiva, no dia 5 de setembro. Passou ali o dia 6; e no
dia seguinte, pela manhã, pusera-se em caminho de volta para a capital. Já no
campo, distanciou-se a Guarda de Honra, com a maior parte da comitiva, e vieram
esperá-lo numa colina, junto ao riacho Ipiranga.
Pelos fins de agosto haviam
chegado ao Rio notícias de Lisboa, que induziram José Bonifácio a convocar
imediatamente o Conselho de Estado para dar solução definitiva àquela crise,
que não podia mais continuar sem graves perigos para o Brasil.
Reunido o Conselho de Estado
(no dia 2 de setembro) sob a presidência de D. Leopoldina, expôs o ministro do
reino o que se passava, e fez sentir que não era mais possível permanecer-se
naquela dubiedade, sendo necessário sair dela por um ato de coragem decisiva
sob pena de sacrificar-se toda a obra feita. Aplaudiram os ministros, e com
eles emulou no entusiasmo a Princesa Real.
Resolveu-se, então, escrever a
D. Pedro, mostrando-lhe como não se podia mais contemporizar, e que cumpria
proclamar a Independência lá mesmo, sem perda de tempo.
Enquanto o conselho
deliberava, já estavam na varanda do paço, prontos para partir com os
despachos, Paulo Emílio Bregaro e o major Antônio Ramos Cordeiro.
Chegaram os mensageiros a São
Paulo no dia 7; e sabendo que o Príncipe tinha ido a Santos, prosseguiram sem
detença a sua marcha para ali, e foram encontrar a Guarda de Honra, que
descansava no Ipiranga. Informados de que Sua Alteza não podia estar longe, vão
ao seu encontro.
Seriam umas quatro e meia da
tarde (de um belíssimo dia de sábado) quando, a cerca de meia légua do
Ipiranga, se encontraram Bregaro e Cordeiro com o Príncipe, e lhe entregaram a
correspondência.
Leu Sua Alteza ali mesmo os
despachos, parecendo comover-se; e depois, afetando calma, como quem medita em
angústia, entrega os papéis ao seu ajudante, dizendo qualquer coisa a meia voz.
Em seguida, num largo
movimento de alma, diz alto: — "É preciso acabar com isto!". Esporeia
o cavalo, e a grande galope, avança para o lugar onde o séquito se achava. A
sentinela brada às armas; forma a guarda precipitadamente, e faz as continências.
E para toda aquela gente em espanto D. Pedro exclama: — "Camaradas! as
Cortes de Lisboa querem mesmo escravizar o Brasil; cumpre, portanto, declarar
já a sua Independência. Estamos definitivamente separados de Portugal!" E
levantando a espada, num repto de entusiasmo gritou com toda a força dos seus
robustos pulmões: "Independência ou Morte!".
7 - Este grito é por todos
muitas vezes repetido, como em acesso de delírio, e reboa — dir-se-ia — pelo
país inteiro.
Dali seguiu D. Pedro com sua
comitiva para a cidade, acompanhando-o a Guarda de Honra a certa distância.
Seriam umas cinco e meia da
tarde, quando os sinos das igrejas anunciaram a chegada do Príncipe. A sua
passagem pelas ruas e praças, até o Largo do Colégio, produziu alvoroço geral,
pois toda gente desconfiou que alguma coisa extraordinária se havia dado. Não
demorou que a notícia de tudo se espalhasse, convulsionando a cidade.
Era quase noite fechada quando
chegou a Guarda de Honra, a galope, de espadas erguidas, levantando vivas à independência,
a D. Pedro e ao Brasil. O povo, que já enchia as ruas, foi acompanhando em
alaridos a Guarda de Honra até o largo fronteiro ao paço, e ali ficou em
delírio aclamando o herói da gloriosa jornada.
À noite houve espetáculo de
gala. Eram quase 9 horas quando D. Pedro deu entrada no teatro, envolto numa
verdadeira tempestade de ovações.
Em seguida ao Hino da
Independência, cantado pelo próprio Príncipe e por algumas senhoras,
levantou-se na plateia, sobre uma cadeira, o padre Ildefonso Xavier, e estendendo
o braço direito para o camarim onde estava D. Pedro, bradou por três vezes: —
"Viva o primeiro Rei do Brasil!" — brado que pôs aquela massa de
espectadores, por alguns minutos, em convulsões de loucura.
No dia 10, pela madrugada,
saiu D. Pedro de São Paulo, e veio chegar ao Rio no dia 14, já de noite.
É difícil dar ao menos ligeira
ideia do "entusiasmo que inundou o Rio de Janeiro" com a chegada de
D. Pedro.
No dia 12 de outubro, era ele
aclamado solenemente Imperador do Brasil.
Tinha-se realizado, pois, o
grande sonho daquela geração.
Restava agora dar sanção
histórica a todos aqueles atos simbólicos da Independência.
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
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