O governo de
D. João no Rio de Janeiro
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Com outros navios da frota que se dispersara,
fundeou a 22 de janeiro na baía de Todos os Santos a nau Príncipe Real. No dia 24 desembarca D. João, no meio de
manifestações que não se saberia dizer se revelavam mais entusiasmo que espanto. Demorou-se o
Príncipe Regente na Bahia cerca de um mês; e desde ali começou a tomar certas
medidas e providências com que fizesse sentir como a transladação da corte para
o Brasil ia abrir nova era na vida da colônia.
Entre essas medidas, a de mais importância foi a
abertura dos portos ao comércio de todas as nações amigas (carta de 28 de
janeiro). Insistiram muito os baianos para que fixasse ali o Regente a sede provisória
do governo. Agradeceu muito D. João os oferecimentos que lhe fizeram; e sem
desconhecer as razões que lhe apresentavam, mostrou como não era possível mudar
o que se assentara ainda na Europa.
No dia 26 de fevereiro zarpava a frota para o sul
com destino ao Rio de Janeiro. No dia 7 de março fundeava em nossa baía, perto
da ilha das Cobras.
No dia seguinte, pela tarde, efetuava-se o
desembarque. A cidade, engalanada, e como em convulsões, parecia uma só alma em
delírio. O mais comovido, no entanto, dir-se-ia que era o homem simples e
tímido, que andava tão cruelmente batido do destino.
As festas duraram nove dias, e todas as noites a
iluminação da cidade teve o mesmo brilhantismo, e a alegria geral as mesmas
expansões.
E ainda por algum tempo depois pode-se dizer que a
cidade continuou em festas; pois de todas as capitanias, até dos pontos mais
afastados do interior, vieram, não só governadores ou seus representantes,
bispos ou seus enviados, como outras autoridades, e deputações dos povos —
todos a felicitar o Príncipe e a Rainha.
2 - Acabadas as festas, cuidou-se de instalar a alta
administração, cujo aparelho se julgava desfeito desde que a corte saíra de
Lisboa. Aliás, mesmo antes, já se haviam criado os três ministérios — do reino,
da marinha e ultramar, e da guerra e estrangeiros —; nomeando-se para eles,
respectivamente, D. Fernando José de Portugal e Castro (depois Marquês de Aguiar),
o Visconde (depois Conde) de Anadia, e D. Rodrigo de Sousa Coutinho (depois
Conde de Linhares). Eram realmente homens de primeira plana, pela inteligência
e pelo caráter. Tinham apenas, cada um mais que os outros, o vício que era
ingênito do regime — a superstição da realeza absoluta —. Para todos eles, o
rei estava sempre acima de povo, de pátria e de tudo.
Formado o ministério, foram-se montando outras peças
do mecanismo político e administrativo.
Criou-se, em seguida, o Conselho de Estado. Logo o
Conselho Militar e da Justiça e a Intendência Geral de Polícia.
Eram as linhas mestras do edifício.
Vêm depois: a Casa da Suplicação, o Desembargo do
Paço, a Mesa da Consciência e Ordens, o Conselho de Fazenda, a Junta de
Comércio, a Junta Real de Agricultura e Navegação. Instalaram-se ainda outras
muitas repartições (a maior parte inúteis); tais como: "o Juízo dos
privilégios, as chancelarias, as superintendências de novos direitos, a
superintendência da câmara real no regimento das mercês" etc...
Todo este complicado aparato (mais que
desnecessário, porque, perturbando os mais simples expedientes, se tornava
prejudicial ao serviço público) era apenas o meio prático de que se valia o
governo para socorrer a chusma de fidalgos que tinham vindo com a corte, e
estavam aqui em penúria.
3 - Fundaram-se, logo depois, estabelecimentos que
correspondiam verdadeiramente a necessidades de ordem geral; como: a escola de
marinha (no mosteiro de São Bento); a escola de artilharia e fortificações; uma
fábrica de pólvora; um hospital do exército; um arquivo militar; a Impressão Régia;
o Jardim Botânico. Mais tarde: um novo teatro; a Biblioteca Pública; a Academia
das Belas-Artes; o Banco do Brasil.
Por um dos alvarás de 1º de abril (1808) revogaram-se
todas as restrições que se haviam posto à indústria em geral, e declarou-se que
a todos os vassalos da Coroa portuguesa era lícito fundar, em qualquer parte do
país, os estabelecimentos que lhes conviessem; e estendendo igual permissão aos
estrangeiros que viessem residir no Brasil.
Por um decreto posterior (de 11 de junho) e no
intuito de estimular e proteger as indústrias brasileiras, alterou-se a carta
régia de 28 de janeiro, na parte relativa aos direitos de entrada, ordenando
que todas as mercadorias de propriedade de portugueses e por sua conta
carregadas em embarcações nacionais, pagassem nas alfândegas apenas 16 por cento
(em vez de 24, a que ficavam sujeitas só as estrangeiras).
Além disso, isentou-se de imposto a matéria-prima
que se importasse para as fábricas, e mais tarde franqueou-se inteiramente a
exportação. Garantiram-se direitos aos
inventores, e favoreceu-se a introdução de máquinas e instrumentos novos.
Declarou-se que eram isentos do serviço militar os agentes e os empregados de
fábricas e oficinas. Criaram-se prêmios e medalhas para estimular os
agricultores e industriais. Decretou-se também, mais tarde, que o comércio de
cabotagem seria exclusivamente brasileiro.
4 - Com a presença da corte não podia naturalmente a
cidade do Rio de Janeiro continuar a ser o que tinha sido nos tempos coloniais.
Crescera-lhe rapidamente a população com a entrada de europeus. Esses europeus
traziam ideias novas e novos costumes e exigências da vida. Tomaram incremento as
indústrias, o comércio, as artes. As próprias festas da corte mudaram o gosto,
os hábitos da população, cujo espírito se foi abrindo, desprendendo-se da
rotina, reclamando a amplitude de outros horizontes.
Só esse serviço de melhorar as condições gerais da
cidade, e fazê-la digna de ser a sede, ainda que provisória, da monarquia,
tinha de custar muito; e não se poderia dizer que fossem improfícuas, ou que se
justificassem, todas as despesas com tais melhoramentos.
Ao mesmo tempo, não se podia esquecer a velha pátria
que lá ficara sob o domínio do inimigo. Era preciso socorrê-la, ao menos para
nutrir de coragem o alanceado coração e a fidelidade daqueles súditos que na
desgraça se mostravam tão dignos.
Como se sabe, não demorou lá na Europa que a própria
população, amparada pelos ingleses, reagisse contra a ocupação francesa. As
notícias das primeiras vitórias alcançadas pela insurreição do Sul contra Junot
vieram causar imensa alegria. Mais ainda se alegrou o Príncipe Regente, e toda
a corte, quando soube da convenção de Sintra, e logo da libertação do
território português e do reconhecimento de sua autoridade em Portugal.
À vista de tudo isso, teve D. João de reorganizar o
Conselho de Regência que lá deixara, e suprir do indispensável, o governo e
administração do reino, que estavam espúrios.
Todas essas necessidades iam entrar largamente no
conjunto de causas que agravaram a situação das finanças, de tal modo que sem
algum expediente excepcional não seria possível conjurar tão cedo embaraços tão
formidáveis.
Foi então, que desenganado de outros recursos, se
resolveu criar ema banco emissor, jogando com o próprio crédito interno.
5 - Mas estava longe de limitar-se a isso a tarefa
do governo de D. João na América. Além do que vai fazendo sob o ponto de vista
da administração, teve ainda de volver atenções, tanto para sucessos anormais que
se vieram a dar no interior, como para acontecimentos da política externa.
Estes, principalmente, preocuparam muito a corte
portuguesa.
O primeiro caso foi o da declaração de guerra à
França.
A 1° de maio (1808) dirigira o Príncipe Regente um
longo manifesto às nações da Europa, explicando as causas que tinham
determinado a mudança da corte para o Brasil. Fazia o histórico da política
imperial que o tinha envolvido nas suas tramas, e concluía por declarações
categóricas da atitude hostil que tomava diante do Imperador: "levantando — dizia — a voz do seio do novo império que vai fundar,
protesta Sua Alteza Real que não deporá as armas senão de acordo com o seu
amigo e fiel aliado. Sua Majestade Britânica"...
Em seguida a esse manifesto, ordenou o Príncipe
Regente ao Governador do Pará que preparasse uma expedição para invadir
imediatamente a Guiana Francesa.
À frente de forças de terra e de mar, ia o
tenente-coronel Manuel Marques apresentar-se (princípios de janeiro de 1809)
diante da embocadura do rio Mayori nas proximidades de caiena, e intimava o
comandante francês a entregar-lhe a praça e toda a possessão.
Ao cabo de um simulacro de resistência, capitularam
os franceses, retirando-se a guarnição e os funcionários para França.
Tomou Manuel Marques posse da cidade e de toda a
Guiana como Governador provisório, em nome do seu soberano.
6 - O segundo caso de política externa foi o da
fronteira do Sul.
Sabe-se como desde os primeiros tempos cuidara
Portugal de estender os limites do domínio para o sul até o Prata. Pelos fins
do segundo século a afirmar por fatos esse intento, mandando estabelecer, à
margem esquerda do estuário, aquele posto da Colônia, que deu motivo ao mais que
secular litígio entre as duas Coroas.
A situação agora criada nas províncias da antiga
vice-realeza de Buenos Aires exigia providências da cor portuguesa, instalada
na América.
Primeiro emprega a astúcia diplomática de D. Rodrigo
Coutinho. Dirigiu- se este em nota confidencial ao cabildo de Buenos Aires a
propósito da situação em que se viam os povos do continente, e sugerindo-lhe a ideia
salvadora de se porem logo as populações do Prata sob o abrigo da soberania
portuguesa.
Como a Inglaterra, pouco antes, por duas vezes havia
tentado apoderar-se de Buenos Aires, desconfiou o cabildo de sua participação
no referido plano, recusando-o.
Mas os negócios da colônia complicam-se ainda mais
com a forçada abdicação de Carlos IV. É então que se apresenta D. Carlota
Joaquina aos povos do Prata, na qualidade de legítima herdeira do trono de
Espanha, propondo a criação de uma regência como a melhor solução a que poderiam
aquelas colônias aspirar.
E tanto se intrigou por ali, e cora tanto esforço se
agiu, que D. Carlota, formalmente convidada para reger os Estados Platinos,
esteve a partir para Buenos Aires. E tê-lo-ia feito se entrementes não fora
organizado outro governo legitimista na própria Espanha.
7 - Desenganado das suas pretensões em Buenos Aires,
volta-se o governo de D. João para Montevidéu. É ainda D. Carlota que vai
figurar como "reivindicadora do sentimento nacional" da Espanha na
América.
Sobrevêm as lutas entre Montevidéu e Buenos Aires.
Interpõe D. Carlota os seus bons ofícios. Os realistas de Montevidéu aceitam
toda proteção da princesa; mas os independentes de Buenos Aires desconfiam do intercessor.
Mas os sucessos, agora, dir-se-ia que abrem caminho
para a política de D. João. Forças argentinas invadem a Banda Oriental, e põem
cerco a Montevidéu, enquanto as de Artigas assolam a campanha.
Entendeu, o governo do Rio, que era tempo de
socorrer Montevidéu, e expelir do território oriental as tropas de Rondeau, sem
o que não se tranquilizariam as populações limítrofes do Rio Grande.
Invade, com efeito, o exército português, a Banda
Oriental; atingidos os seus objetivos, concerta-se um armistício.
Desde 1812 domina no Prata imensa anarquia. Um
exército argentino invade outra vez o território oriental, e sitia Montevidéu,
e a rende (1814). Continuando essa situação, que já alcançava a fronteira do
Brasil, o governo do Rio de Janeiro resolveu intervir; e as lutas naquelas
campanhas tornaram-se tremendas. Marcha Lecor sobre Montevidéu, onde entra (1817)
"como um amigo e protetor". Toma ele o governo e administração da
província, em nome de D. João VI.
Enquanto a guerra continuava acesa e violenta em
toda parte, as tropas portuguesas guardavam as duas praças — Montevidéu e
Maldonado, andando tudo o mais flagelado pela gente de Artigas.
Até que a derrota de Taquarembó desilude o temeroso
caudilho (1820); e logo depois retira-se, e vai refugiar-se no Paraguai. Dali a
meses, instala-se em Montevidéu um Congresso de representantes (1821). Votou
este Congresso (no dia 31 de julho) a incorporação da Banda Oriental ao Brasil sob
o nome de Província Cisplatina.
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