Conjuração de Vila Rica
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Àquele primeiro grupo de conjurados foram juntando-se grande número de pessoas das mais consideradas, tanto em Vila Rica, como nos outros vários municípios da capitania. Toda a gente que tinha alguma importância pela fortuna ou pela cultura, interessou-se mais ou menos solicitamente naquela aspiração, que era afagada por todo mundo, embora nem todos tivessem o mesmo desassombro. Um só sentimento estava em todos os corações; mas o rigor das leis, o medo do castigo só não reprimia esse sentimento nos mais indômitos e altivos.
Entre
estes, a figura mais estranha é o alferes de cavalaria de linha Joaquim José da
Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes.
Era este homem, nascido na terra de Minas, um tipo singular de criatura que se
encontra com o mundo numa grande ânsia de ter o seu papel. A condição modesta em
que se sentiu ali, no meio da riqueza, serviu-lhe de estímulo forte nos primeiros
passos da vida. Experimentou várias profissões; de todas desenganou-se.
Dir-se-ia que de todas as vicissitudes lograra apenas um proveito: sentira
quanto o mundo era doloroso. Revolta-se então contra o seu meio, e contra o seu
tempo.
Há
naturezas assim, que parecem vir antes da sua hora e, por isso mesmo, sem saber
como é que vêm...
E
desde que se desgarra do seu caminho, o que tinha de suceder era fatal:
pondo-se em contraste consigo mesmo, as complicações em que entra, só amparado
da sua índole, deviam levá-lo ao sacrifício.
Já
passava pelas regiões mineiras um vago sussurro precursor da tormenta que
vinha, quando resolve o Tiradentes
vir ao Rio, a pretexto de negócios. Já havia visitado a capital da colônia, e
conservava dela, ainda, a mais viva impressão.
Mas
o que ele procura agora, saindo para um centro mais vasto, não é a sua fortuna
pessoal. Nunca teve, aliás, a dirigi-lo na vida, nenhuma preferência pelo seu
próprio interesse. Tinha mesmo fama de abnegação, e desapego de bens materiais,
ao ponto de ser tachado, se não de descuidoso, pelo menos de indiferente a
confortos, nunca revelando impaciências por adquirir.
O
que ele deseja agora é ter uma parte mais ativa, e entrar com um concurso mais
eficaz na obra que se vai fazer na terra das Minas.
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- É este o pensamento que o absorve quando se põe a caminho para o Rio, um
pouco antes talvez de 1788, depois de haver obtido a necessária licença.
Vinha
radiante de esperanças; e assim que chegou aqui apresentou-se ao Vice-Rei; e
sem dar muito pela indiferença com que o recebera Luís de Vasconcelos, passados
alguns dias, foi levar-lhe uns planos de melhoramentos que projetara fazer na
cidade.
Parece
que o Vice-Rei não deu muita importância ao que lhe requeria aquele simples
alferes, que não dispunha de recursos nem de valimento para obras de certa
monta; e que parecia mais um maníaco, meio estouvado e aventuroso, do que um
legítimo especulador ou homem de negócios. Em todo caso, entendeu que não havia
motivos para deixar de remeter os papéis do requerente para a corte.
Em
Lisboa tomou-se mais a sério o que se propunha o peticionário executar; tanto
assim que o Conselho Ultramarino devolveu os papéis, a fim de que sobre a
matéria deles informasse o Vice-Rei.
Enquanto
simulava preocupar-se com estas coisas, ia o Tiradentes, com muita prudência, sondando os ânimos, tanto nos
quartéis, como entre o público em geral.
Estava
ainda no Rio, quando passou para Minas o Visconde de Barbacena. Uns três meses
depois chegava também da Europa o Dr. José Alvares Maciel, com quem se
encontrou logo o conjurado. É fácil imaginar o que se passou entre aqueles dois
corações incendidos da mesma fé, um falando das misérias da terra; outro, das
grandezas que vira no estrangeiro.
Segue
o Dr. Maciel para Minas, e vai lá encontrar as provas de quanto lhe dissera o Tiradentes. Os povos da capitania
estavam todos como em grande alarma: as condições em que ali se vive há longos
anos, parece que vão tocar agora ao seu extremo. Viera o Visconde de Barbacena
encarregado especialmente de reparar os prejuízos que desde muito vem sofrendo a
Real Fazenda; e trazia ordens formais de arrecadar, por meio de derramas e
execuções, todas as dívidas em atraso.
O
enorme ativo acumulado punha já os contribuintes, e demais devedores ao erário,
em situação de absoluta insolvência. Só o quinto do ouro ascendia a perto de
540 arrobas. E isso fora dívidas de outras origens. Englobando só os
compromissos do quinto, dos dízimos e das entradas, andava o alcance dos
colonos, na capitania, em perto de seis mil contos.
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- Assim que se empossou do cargo, cuidou Barbacena, com muita habilidade, de
preparar o espírito geral para a escabrosa tarefa de que tinha de dar conta.
Começaria por uma derrama com que se cobrisse o déficit do exercício corrente,
até que da corte viessem ordens terminantes quanto aos atrasados.
E
então não se imagina o que se dá em toda a capitania. O susto, o desvario, o
terror em que caem aquelas populações, não se descrevem. No meio dos clamores,
os alvitres mais absurdos, expedientes cada qual mais impraticável, todos os
recursos do desespero se sugerem, com os quais se aumentam as aflições de todo
o mundo. Aventou-se até a ideia "de fugir à desgraça por um êxodo geral,
por uma retirada em massa para o fundo dos sertões, até onde não chegasse
aquela voz terrível da derrama".
O
núcleo de conjurados de Vila Rica, que não cessara de agir, entra agora numa
fase decisiva. Só mesmo a revolução é o único apelo que resta na conjuntura em
que se encontra todo o povo.
De
volta do Rio, aparece por aqueles dias, na capital das Minas, o alferes Tiradentes (fins de 1788). Ao chegar,
procura logo os companheiros; e nem reassumiu o seu posto no regimento,
pretextando moléstia.
É
agora que se organiza a conspiração, e que tomam corpo num projeto definitivo
as ideias que agitavam aquelas almas.
Tratou-se
primeiro de assegurar o concurso do chefe da força pública, que era o
tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, homem circunspeto e de
grande influência na capitania.
A
entrada desta figura na conjuração deu-lhe a garantia de uma vitória infalível,
e arredou todas as dúvidas e receios. Nas casas dos vários chefes, e até mais
ordinariamente na do próprio Freire de Andrada, faziam-se os conciliábulos. Aí
tratava-se da revolução quase abertamente, como se ninguém mais sentisse
necessidade de conservar em segredo uma causa de sucesso seguro, e que só
aguarda o seu dia.
Tinha-se
já certeza do socorro da França e dos Estados Unidos, desde o momento em que se
levantasse o grito da independência. Quando às outras capitanias, nem era
possível que por sua vez não se insurgissem com o exemplo da de Minas. E
afinal, bastaria que, ao mesmo tempo que em Vila Rica, se proclamasse a
separação no Rio de Janeiro e em São Paulo (como se espera), para que toda a
colônia rompesse os laços que a prendem a Portugal.
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- Ideou-se logo a nova república, dando-se-lhe como símbolo a figura de um
gênio despedaçando grilhões. A bandeira seria toda branca, e nela se
inscreveria como lema parte de um verso de Virgílio (da I écloga) — Libertas, quae sera tamen. A capital da
república seria São João d'El Rei. Criar-se-ia logo uma Universidade em Vila
Rica. Confiscar-se-iam, para o Estado, todos os valores que estivessem no
erário, declarando-se extintas as dívidas dos contribuintes em atraso.
Declarar-se-ia livre a entrada nos distritos mineiros e isentos de direitos os
produtos das lavras. Fundar-se-iam fábricas de todos os artigos que até ali se
importavam da metrópole. Reconhecer-se-ia o direito à proteção especial do
Estado em favor dos pais que tivessem mais de cinco filhos. Abolir-se-ia a
escravidão, dentro de certos limites ou condições. Criar-se-iam escolas para
instrução do povo.
Por
princípios de 1789, na chácara do Cruzeiro, residência de Freire de Andrada,
concertou-se o plano do levante. Fez-se o inventário das forças de que se
dispunha, e distribuiu-se a cada conjurado o seu papel. Não se marcou dia para
o rompimento, ficando entendido que seria aquele em que se começasse a efetuar
a derrama. O aviso seria dado a todos por meio de uma senha ("É tal dia o
balizado").
No
dia em que a Junta de Fazenda lançasse a derrama, deviam acudir à Vila Rica os
conjurados, que por ele esperariam nas vizinhanças; e à noite entrariam em
tumulto pelas ruas, aos gritos de — Viva
a liberdade! Sairia então Freire de Andrada com as suas tropas sob o
pretexto de abafar o motim, dissimulando as suas intenções até receber notícia
de estar preso o Governador.
Estava
Barbacena quase sempre no palácio da Cachoeira do Campo, distante umas três
léguas da vila. Iriam ali prendê-lo os que estavam dessa diligência
encarregados. A menos que tentasse resistir com risco para a escolta, seria ele
conduzido até a fronteira das Minas, dizendo-se-lhe que se retirasse para
Portugal, porque o povo mineiro já sabia governar-se. Se quisesse reagir,
pagaria então, com a cabeça, semelhante veleidade.
Qualquer
que fosse a notícia que se recebesse da Cachoeira, proclamar-se-ia a república
em Vila Rica, decretando-se logo a pena de morte contra aqueles que à nova
ordem de coisas não aderissem prontamente.
5
- Estava, pois, tudo previsto e ordenado no sentido de garantir o sucesso da
conspiração. Tão segura confiança tinham no triunfo os conjurados, que não
faziam mistério de coisa alguma.
Além
de muito certos do golpe preparado, sabiam já que o Governador não era homem
capaz de aguentar-se num grande momento. A sua têmpera de déspota, estúrdia
como a de todos os áulicos, é a mais avessa possível ao sacrifício. Nem eram as
da administração e do bem público as funções que estavam em correspondência com
o seu caráter, e muito menos com os intuitos que o haviam trazido à América.
Bem sabia ele o que é que se costumava buscar no Brasil; e não seria o
exercício normal e tranquilo daquele cargo que havia de recomendá-lo perante a
corte.
É
assim que logo de começo parece a todo mundo um homem fechado e misterioso,
esquivo e quase sinistro, metendo-se no seu retiro fora da vila.
Se
se não esquece que devia ter vindo bem informado quanto a certos fatos
ocorridos ali na terra das Minas, e muito prevenido contra a fama de
turbulentos, atribuída lá no reino aos mineiros, é lícito suspeitar que
Barbacena muito de propósito ficou ali, retruso, de atalaia, à espera do seu
dia... Para confirmar esta suspeita, é só ver como se ufanou da sua "glória
de haver descoberto a tempo e atalhado a grande maldade" como dizia ele
próprio para a corte.
Aos
olhos dos conjurados, porém, aquela circunstância de afastar-se da capital é
antes um indício de negligência ou desapercebimento que lhes é favorável.
Chega-se,
pois, ao momento em que só se espera pelo dia da derrama. Sem isso não se faria
unânime a insurreição. Houve até quem procurasse apressar o lançamento; pois
dessa medida agora depende tudo.
É
por este tempo, seguro de que a revolução está iminente, que, de acordo com os
outros chefes, resolve o Tiradentes
vir outra vez ao Rio, na ânsia de levantar, simultaneamente com as de Minas, as
populações da grande metrópole colonial.
Saiu
de Vila Rica apenas acompanhado de um mulato, seu escravo, e certo de que vinha
ser um núncio da grande nova que todos anseiam.
Mais
ou menos por aqueles mesmos dias, no entanto, entrava Barbacena no
"segredo" da conspiração. Dissimulado e ardiloso, cuidou antes de
tudo de eliminar a medida que se considerava como o principal motivo do levante
planeado: suspendeu a derrama, dando para esse ato razões muito naturais, de
modo a não espantar os conjurados, e poder assim segurá-los todos.
Sem
sair da Cachoeira, pôs em ação os próprios delatores: enquanto, sem
açodamentos, ia cortando aos conjurados todas as veredas.
6
- A suspensão da derrama logo impressionou a muitos, que viram assim burlado
todo o plano. Dentro de alguns dias, tinha-se plena certeza de que o Governador
já estava agindo. E então é que se viu como naquelas mesmas almas, que há pouco
se incendiam pelo nobre ideal, vai acordar a miséria dos instintos.
E,
entrando francamente no seu papel, ufano daquele amplo horizonte que lhe abre o
seu destino, sai agora Barbacena do seu mistério. Manda chamar à sua presença o
primeiro delator; e Joaquim Silvério dos Reis, num grande terror de
consciência, escreve e assina a denúncia formal.
Em
seguida, entendeu o Governador que era tempo de dar conta de tudo ao Vice-Rei;
e como soube da partida do Tiradentes
para o Rio, fez imediatamente seguir para aqui também o próprio Joaquim
Silvério, com ofícios para Luís de Vasconcelos.
Por
todo o caminho do Rio, vinha agora, o Tiradentes,
como um arauto do novo dia que vai suceder à longa noite colonial. Em toda
parte, pelas fazendas, pelas casas de negócio, pelas estalagens, pelas
estradas, ergue a voz desassombrado, proclamando a boa nova, como um visionário
em delírio. A sua palavra inflamada espanta a toda gente. Os que o ouvem, ou
ficam tomados de terror, ou vencidos da mesma insânia.
Como
fizesse muitas digressões pelo caminho, foi a viagem muito retardada. Pôde, por
isso, alcançá-lo Joaquim Silvério, conquanto muito depois dele tivesse partido
de Vila Rica. Adiantou-se-lhe, no entanto, o Tiradentes na rota depois do encontro, e chegou ao Rio alguns dias
antes dele.
Na
capital da colônia não teve o revolucionário mais prudência e cautela que
durante a viagem. Esqueceu-se de que no Rio as condições do ânimo geral eram
muito diferentes do que em Minas. Aqui, mais do que lá, está-se mais perto da
pessoa do soberano; e é, portanto, mais forte o supersticioso terror da
autoridade. Aqueles mesmos com quem contava procuram evitá-lo.
Joaquim
Silvério, que chegara depois do Tiradentes,
apresentou-se logo ao Vice-Rei. Não quis Luís de Vasconcelos convencer-se da
gravidade daqueles fatos que julgava exagerados. Por não parecer, no entanto,
em caso de tal natureza, menos escrupuloso e solícito que o seu colega de Minas,
deu a Silvério as instruções que devia este seguir para trazer sempre à vista o
pobre alferes.
7
- Desesperava o Tiradentes vendo
correr o tempo sem nenhum sinal do levante que deixara em vésperas de romper em
Minas. Começou logo a ter suspeitas de que andava sendo seguido e vigiado.
Deliberou então, ocultar-se até que viesse algum aviso. Deixou, pois, a casa
onde se hospedara, e escondeu-se em outra que se lhe abriu na rua dos Latoeiros
(hoje Gonçalves Dias). Tinha já tudo preparado para sair da cidade no caso em
que o rompimento em Minas não se desse por aqueles quatro ou cinco dias.
Ao
saber que o alferes havia subitamente desaparecido, alarmou-se o Vice-Rei.
Expediu imediatamente aviso para Minas, e espalhou patrulhas pela cidade e por
todos os bairros vizinhos.
Não
custou descobrir o esconderijo do Tiradentes:
ofereceu este próprio ao Vice-Rei o fio de Ariadne; e é afinal o mesmo Joaquim
Silvério (como se andasse disputando tenazmente o seu triste lugar na história)
quem entrega a vítima ao algoz.
Com
grande aparato de força, efetua-se a prisão do conspirador, que é metido num
dos calabouços preparados na ilha das Cobras.
Enquanto
isto se passava no Rio, lá na terra das Minas ia Barbacena fazendo prender os
chefes da abortada conspiração, sendo o primeiro que lhe caiu nas mãos o
desembargador Tomás Antônio Gonzaga. Em seguida: Domingos de Abreu Vieira; o
Dr. Inácio J. de Alvarenga Peixoto; o padre Carlos Correia de Toledo e Melo; o
irmão deste, Luís Vaz de Toledo Pisa; o cônego Luís Vieira da Silva; o Dr.
Cláudio Manuel da Costa; Francisco Antônio de Oliveira Lopes, e muitos outros,
à medida que vai a devassa desvendando nomes.
No
seu grande afã de descobrir "monstros de perfídia", emulam Barbacena e
Vasconcelos, ao ponto de se porem logo em conflito de jurisdição, cada qual
mais suscetível, e mais cioso do seu papel.
Entramos
agora na fase dolorosa da Inconfidência. Desde o momento em que a desgraça se
ergueu, como um fantasma, diante daquelas criaturas, abateu-se-lhes aquela
mesma alma que andara rugindo e protestando; e em vez de sentir o velho inimigo
contra o qual se haviam aliado, hostilizam-se agora e acusam-se mutuamente,
julgando cada qual que tem a salvação na perda dos outros todos.
A
insânia sagrada daquela causa esquecida refugiou-se apenas no coração de um
homem — o Tiradentes! — a carregar,
agora, com o repúdio de toda uma geração!
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