Texto publicado em 1925, na Revista da Semana. Pesquisa e Adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Biógrafos
diversificam quanto ao ano de nascimento de Bernardo Guimarães, em Ouro Preto,
a 15 de agosto, segundo uns de 1825, conforme outros de 1827.
Inocêncio no
Dicionário Bibliográfico, Blake no Dicionário Bibliográfico
Brasileiro, Rio Branco nas Efemérides Brasileiras consideram Bernardo
Guimarães nascido em 1827.
Xavier da
Veiga nas Efemérides Mineiras, apoiado em Badaró, no Parnaso Mineiro,
e na Província de Minas, jornal da época do óbito de Bernardo,
aponta-lhe para berço o ano de 1825.
Pinto Coelho,
em Poesias e Romances do Dr. Bernardo Guimarães, citando-lhe a biografia
inserida no Colombo, jornal da campanha redigido por Lúcio de Mendonça e
Oliveira Andrade; Dilermando Cruz em Bernardo Guimarães, registram a
data natalícia de 15 de agosto de 1825.
Ao calor da Independência,
portanto, viu o mundo Bernardo Guimarães, filho de João Joaquim da Silva
Guimarães e D. Constança Guimarães.
O pai gozava
influência na província: sabarense, figurava entre os deputados por Minas da
primeira legislatura do Império; suplente do cônego Januário, preferindo este
tomar assento na Assembleia como representante do Rio de Janeiro. Era João
Guimarães homem de letras, cultor do verso, e talvez como mineiro esclarecido
da época sabia bem música e melhor latim.
O Dr. Paulo
do Vale no Parnaso de Acadêmico Paulistano, coleção de produções dos
poetas da Academia de São Paulo, desde a fundação até 1881, aponta como
favorecido das musas Joaquim Caetano da Silva Guimarães, formado em 1840, irmão
de Bernardo, e com o correr do tempo desembargador da Relação de Ouro Preto.
Bernardo saindo,
pois, aos seus na poesia não degenerou, confirmou, verbo este mais raro nas progênies.
Graduado em
Direito, em 1852, doze anos após o irmão, na mesma Faculdade de São Paulo,
Bernardo Guimarães começou a galgar as asperezas da vida, mais cruciantes para
um moço pobre e sem pai alcaide. Tinha de nascer de si mesmo para lembrar-nos
de uma expressão de Tácito: criar-se na luta, sangrar no merecimento.
Professor de
retórica e filosofia no liceu de Ouro Preto, juiz municipal de Catalão, em Goiás,
consagrou a tais empregos meia dúzia de anos. Em 1859, no Rio de Janeiro,
militou na imprensa, encarregado da parte literária da Actualidade, jornal
político, de liberais, a cuja testa se achavam Flávio Farnese e Lafaiete.
Regressando
a Minas natal, aí existiu até à morte, em 10 de março de 1884, pedindo
filialmente ao berço de Ouro Preto terra de túmulo.
Eis, em
resumo, a fé de ofício terrena de Bernardo Guimarães. Às suas páginas as letras
dariam iluminura de primor.
O tempo que
não dava às vicissitudes do existir ia-se-lhe no culto das letras, compreensível
no sossego de Ouro Preto. Sem dúvida os momentos felizes de Bernardo Guimarães
hão de correr todos à conta da lira e da pena.
Poeta,
deu-nos os Cantos de Solidão, em 1853; as Inspirações da Tarde, em
1858; as Poesias, em 1868; as Novas Poesias, em 1876; as Folhas
do Outono, em 1883.
Eis trinta anos
de culto à poesia com intervalos de preito à prosa em uma dúzia de romances e
novelas, afora uma incursão pelo teatro com A voz do Pajé; drama existente:
Os Três Recrutas, obra perdida, e Os Inconfidentes, produção
truncada.
Trinta anos,
pois, de labor e fecundidade descendo para as letras pátrias das montanhas
mineiras, por esforço de um homem que, no retiro provinciano, talvez tivesse
ensejo de seguir o conselho de São Francisco de Sales, desejar poucas coisas
sobre a terra, desejando-as pouco.
Na poesia
como na prosa coube a Bernardo Guimarães ser um grande nacionalista no ângulo
do bairrismo mineiro, exilado algum tempo em Goiás e no Rio, ainda assim
pedaços de coração brasileiro.
Temas,
personagens, cenas, tudo na obra de Bernardo Guimarães é Brasil; estuda-o,
pinta-o, exalta-o. Espalhou-se a luz do gabinete de trabalho dele por obra
inteiriça de patriota, refletiu-se sobre o país inteiro. A idade, os desgostos,
as desilusões não conseguiram, como a tantos, esclerosar-lhe o talento.
Escreveu até à última hora, um romance póstumo, O Bandido do Rio das Mortes,
ainda o deu a ler a muita gente. Falou dos silêncios do túmulo.
Viajou um
pouco pelo Brasil e muito pela vida nacional; visitou o indianismo, os
problemas sociais, a história, o fantástico, tudo dentro de limites rigorosamente
brasileiros. Nada viu além da pátria, cegueira bendita aos olhos da
posteridade.
Tanto tratou
do índio Afonso como da enjeitada Rosaura e da escrava Isaura, descreveu o
seminarista e o garimpeiro, ocupou-se com a cabeça de Tiradentes e com os
paulistas em São João del-Rei.
Cantou nos
versos as nossas caçadas de veados ou os nossos combates de touros, enternecido
pelo sabiá, o triste da solidão, como pelo cavalo branco Cisne a embalá-lo em rápidos
galopes.
Teve notas
na lira para as cenas do sertão sem desdenhar os encantos da cidade.
Para
descrever aquelas mandou "sozinha a pobre musa, de chapéu de palha, de xale
sobraçado, sandálias de romeira, aos ombros velho violão, nos cabelos singelas flores
que apanhou no campo”.
Quão diferentes
as cariocas de A Bahia de Botafogo: "fatigadas dos saraus
brilhantes, belezas em horas de remanso vindo à praia conversar com as flores,
com as aragens, dando livremente às virações da tarde as fugitivas emoções de
baile.”
Há muito que
estudar no Bernardo Guimarães romancista, mas na sua obra, como na de todo o
romancista, atraem sobretudo ideia e devaneio as figuras femininas.
Em A Escrava
Isaura, Bernardo Guimarães não só apresentou um tipo de mulher como trouxe
pedra para o lapidar da escravidão, tarefa dos poetas e prosadores do segundo reinado,
de Castro Alves a Alencar, do Navio Negreiro ao Demônio Familiar,
para citar só dois nomes assinalando duas obras.
Filha de
feitor e de escrava, Isaura atravessa a princípio vida de sofrimentos e
humilhações para conhecer por fim o casamento e a felicidade. É figura de
resignação e esta nunca foi maior do que na cena do baile no Recife quando em
pleno fervor de danças Isaura se vê apontada como escrava.
Esculpida
mais fundo na dor é a Margarida de O Seminarista. No livro, sob a ficção
esconde-se o debatido e cada vez mais intrincado problema do celibato clerical,
ao qual uns dão escudo, na defesa do sacrifício, sobre o qual outros desferem
golpes, defendendo as leis naturais.
Antes de
apresentar-nos Rosaura, a enjeitada, Bernardo, no capítulo primeiro do romance,
descreve cena entre estudantes de São Paulo no tempo antigo. Evoca a mocidade própria.
Macedo ressuscitara a dele no proêmio de A Moreninha, pintando reunião de
estudantes. Com que fundo selo a mocidade se grava em todas as almas!
Não
conhecemos ainda Rosaura e já nos achamos no velho São Paulo, às nove da noite,
a cidade de ruas desertas, as janelas da sala de uma "republica" abertas
para as vargens alagadiças cortadas pela fita movediça do Tamanduateí.
Filha de
amores culpados, Rosaura conhece a vida dos expostos, criados pelo favor de uns
na comiseração de todos.
Não lhe
bastou a escravidão de nascimento, afligem-a com o cativeiro, e por ele se
irmana a Isaura até que, como sucedera a esta, lhe descubram a origem e lhe deem
lugar na sociedade.
Jupira é, na
obra de Bernardo romancista, figura já oposta, com dupla vida na arte, no
romance do seu criador, numa ópera nacional e triunfante de Francisco Braga.
Cheia de
amor, Jupira, desdenhada por outra, esquece ternuras e desvairada propõe a
Quirino matar o infiel, a troco de ser para sempre do vingador. Cumprido o
pacto no âmago do sertão, assassinado Carlito, Quirino arroja-se aos braços de
Jupira, em frenesi de paixão avermelhada de sangue. Mas enquanto aperta a
caipira contra o peito sente uma faca nas mãos dela, atravessar-lhe o coração e
ouve uma voz rosnar-lhe "morre também, vil matador! eu não te quero...”
Passados
tempos caçadores encontraram em uma grota, no seio de mata profunda, esqueleto
de mulher pendurado a uma árvore por um Cipó.
Outra vítima
de amores desditosos é Paulina, “ a Filha do Fazendeiro, cuja, vida
revela quanto a morte se cose sempre aos passos do amor.
Eduardo ama
Paulina, também requestada por um primo. Toma este satisfações ao rival, que
para livrá-lo de alguma loucura jura pelas cinzas paternas não servir nunca de
estorvo ao casamento de Roberto com Paulina. Daí uma série de desgraças conduzindo
Roberto ao suicídio, dando morte a Paulina, obtido por Eduardo, burel de frade
em convento da Bahia.
As figuras
dos romances de Bernardo Guimarães movem-se, padecem ou gozam em sítios variados.
Dão ensejo ao escritor para pintar paisagens brasileiras, numa espécie de
coreografia de arte.
Desenha em
geral com largueza, logo ao começar o romance, ora o Rio Grande de Minas,
léguas acima das paragens onde reunido ao Parnaíba toma o nome de Paraná, ora
uma fazenda nas vizinhanças de Uberaba, situada ao pé de um lançante, entre
duas vertentes orladas de buritis, cujas linhas se perdem na imensidade dos
horizontes como fileira de guerreiros selvagens postados em ordem de batalha ao
longo dos chapadões. Romancista-pintor não desenhou na literatura os quadrinhos
de gênero, nos quais tanto brilhou além-mar a perfeição na paciência de um
Meissonier. Bernardo descreve-nos a carvão a rua ouro-pretana das Cabeças, rua
sinistra lembrando as cabeças de enforcados fincadas na ponta de estacas para
escarmento de povos. A pintura data de frigidíssima noite de maio, em Ouro
Preto, vento glacial a uivar pelos telhados, corujas a guincharem agourentas.
Eis aí
algumas ligeiras pinceladas sobre este grande poeta e romancista brasileiro.
ESCRAGNOLLE
DÓRIA
Revista
da Semana, agosto de 1925.
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