Texto publicado no ano de 1908, no "Jornal do Comércio". Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
A
última visita
Na noite em que faleceu Machado de
Assis, quem penetrasse na vivenda do Poeta em Laranjeiras, não acreditaria que
estivesse tão próximo o desenlace de sua enfermidade. Na sala de jantar para
onde dizia o quarto do querido mestre um grupo de senhoras — ontem meninas, que
ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de família —
comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos
versos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram discretas,
as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas e a placidez era
completa no recinto onde a saudade glorificava uma existência antes da morte.
No salão de visitas viam-se alguns
discípulos dedicados, também aparentemente tranquilos, na iminência de uma
catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incomparável e emocionante em
que se ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente
na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis se por acaso traía com um
gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se a pedir desculpas
aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um
descuido ou involuntário deslize. Timbrava em sua primeira e última
dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o
reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir e de agir,
que no trato vulgar dos homens se exteriorizava numa timidez embaraçadora e
recatado retraimento transfigurava-se na fortaleza tranquila e soberana. E
gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heroico na
morte...
Mas
aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho
Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e
Rodrigo Otávio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral não se compreendia que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseando em sínteses radiosas, que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, no círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.
Era pelo menos desanimador tanto
descaso — a cidade inteira sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente
na normalidade de sua existência complexa, quando faltavam poucos momentos para
que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa.
Neste momento, precisamente ao
enunciar-se este juízo desalentado, ouviam-se umas tímidas pancadas na porta
principal da entrada. Abriam-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente de 16
a 18 anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome, declarara ser desnecessário dizê-lo:
ninguém ali o conhecia, não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o
próprio dono da casa, a não ser pela leitura dos livros que o encantavam. Por
isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo
tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra esta ideia, não tendo quem o
apresentasse: mas não lograra vencê-la.
Que o desculpassem por tanto. Se não
lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.
E o anônimo juvenil, vindo da noite, foi conduzido ao quarto do doente. Chegou.
Não disse uma palavra Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre: beijou-a num belo
gesto de carinho filial. Aconchegou depois por momentos ao peito. Levantou-se e
sem dizer palavra, saiu.
À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo — no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.
Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.
No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.
Pelos nossos olhos passara a impressão
visual da Posteridade...
EUCLIDES DA CUNHA
Jornal do Comércio, 30 de setembro de 1908.
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