Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - No mesmo dia em que saíra a esquadra com a
Família Real para a Europa, começa D. Pedro decisivamente a exercer a alta
função histórica que os acontecimentos lhe indicavam, e que ele aceitou com uma
coragem realmente admirável, e uma diligência de quem quer logo dar conta da
sua tarefa.
Dirigiu-se, em proclamação, aos brasileiros,
expondo, em linhas gerais, o seu programa de governo, prometendo logo fazer
tudo que pudesse "para antecipar no Brasil os benefícios da Constituição
que se espera".
A situação geral do país era de assoberbar os
espíritos mais fortes; e as condições em que ficava o Príncipe no Rio quase de
todo isolado das províncias do Norte, pode-se dizer que eram de perfeita
angústia. No dia seguinte ao da saída do rei, a própria fisionomia da cidade
estava mudada. Dir-se-ia que a população se sente como em abandono, e incerta
do futuro. O movimento comercial "diminuiu consideravelmente". A
atividade de todas as classes como que
se entravou de um instante para outro. O teatro e todas as casas de diversão
ficaram desertos. Parecia que andavam agoiros no ar, e que se estava em
vésperas de alguma catástrofe, contra a qual cuida cada um de prevenir-se como
pode.
A vida econômica tornou-se penosa, ressentida, como
ficou a praça, do enorme desfalque de moeda metálica. Os cofres do Banco do
Brasil ficaram exaustos.
Declarou-se, em suma, crise medonha, que era preciso
enfrentar com esforço e decisão.
Essa crise era agravada ainda pelo estado em que se
encontram quase todas as províncias, umas hesitando entre D. Pedro e as Cortes
de Lisboa; outras declarando francamente que desconhecem a autoridade do
Príncipe-Regente.
Em toda parte não demoram a entrar em luta
principalmente as duas grandes facções que se formam: a dos portugueses,
infensa ao governo do Rio, e a dos brasileiros, que aspira à Independência, e
pressente que o dia de realizá-la se aproxima.
2 - É nestas condições que D. Pedro inicia o seu
governo, é possível que sem ter uma ideia muito clara dos graves embaraços com
que se encontra, mas incontestavelmente muito disposto a conjurá-los, quaisquer
que venham a ser.
Começou reduzindo todas as despesas, chegando a
transferir a sua residência para a Boa Vista, fazendo passar para o palácio da
cidade as secretarias e outras repartições, que estavam em casas alugadas.
Tratou de reformar, ou melhor, de organizar todos os
serviços que estavam na maior desordem. Até então nem para as despesas havia
normas: gastava-se a esmo, sem tento nem medida. Estabeleceu o Príncipe o
regime dos orçamentos, fora dos quais nada se gastaria.
Empreendeu ainda reformas, que falam mais alto da
inteligência do seu papel, e do espírito com que vai exercê-lo: — deu plena
garantia à propriedade; — franqueou a entrada de livros e quaisquer outras publicações;
— aboliu a censura contra a imprensa; — assegurou a liberdade das pessoas, proibindo prisões sem
culpa formada, salvo o caso de flagrante delito; — proscreveu os açoites e o
emprego de correntes, de algemas, de grilhões e de quaisquer instrumentos de
suplício; — declarou os juízes, e demais autoridades, responsáveis pelos abusos
e excessos que cometessem no exercício das respectivas funções.
Tão anormal era, no entanto, o estado dos ânimos,
que tudo isso parecia passar despercebido. Não escapava ao espírito do Príncipe
a discórdia que lavra por todo o país, insuflada pelos últimos acontecimentos,
e nutrida pelo preconceito de nacionalismo, cada vez mais vivo entre indígenas
e reinóis. E o que mais concorria para prevenir um contra outro os dois
partidos eram as dissenções em que se puseram os dois ministros de D. Pedro.
"O Conde dos Arcos queria o Brasil para si e para o Príncipe; o Conde de Louzan
queria o Brasil para Portugal tão-somente". Estava ele tão aferrado a esta
ideia que fora dela não via mais nada... Tão curto de ideia era este homem,
como vaidoso e presumido de grande financeiro, sem que nada entendesse de
semelhante ofício. Chegou a conceber o projeto de não admitir mais brasileiro
algum em lugar público de certa importância.
Por fim, nem trepidou em ir comprometendo D. Pedro
com a tropa portuguesa.
E eis aí o que mais vem complicar a situação para o
Príncipe-Regente.
Sentindo que a Divisão Auxiliadora não o segue no
rumo traçado, cuida D. Pedro de premunir-se de forças para quaisquer
emergências. É claro que isso lhe foi fácil com o apoio do partido brasileiro.
Tomava forma o litígio que se vinha abrindo.
3 - Mas antes que estivesse o Regente bem prevenido
de tropas suas, consegue Louzan que a guarnição portuguesa lhe imponha uma
renovação solene do juramento, já prestado, ao que as Cortes faziam lá na
Europa. Surpreendido assim, teve D. Pedro de ceder a essa como a outras
injunções das tropas insurgidas, chegando até a demitir o Conde dos Arcos.
Já não se estranha que nesse momento se sentisse o
Príncipe assoberbado de óbices imprevistos naquele esforço de levar a sua causa
sem sacrifício da função que lhe haviam deixado. É de crer, no entanto, que as
próprias dificuldades lhe viessem a jeito para a sua política. Em suas cartas
ao pai, desde a primeira, há só uma preocupação: a de preparar os ânimos
daquela assembleia estouvada para o que se vai fazer no Brasil, e que se quer
que passe lá como solução que o locotenente do rei vai ser obrigado a aceitar...
Enganar-se-ia sem dúvida quem quisesse ver naqueles fingidos desalentos, e
naquelas protestações de fidelidade, mais que astúcia e tática segura de hábil
político. Basta ver como, estando aqui em concerto com os patriotas, teve ainda
o rasgo de pedir que o dispensem do cargo e o chamem para Lisboa: quando o que
é certo é que ele queria que o chamassem para ter ensejo de não ir,
desobedecendo.
Para confirmar-lhe o acerto de tais processos, lá
estavam as Cortes. Desde o princípio, nunca dissimularam a sua desconfiança e
má vontade contra o Brasil. Principalmente depois que D. João chegou a Lisboa,
não teve mais medida a incontinência daquela demagogia vitoriosa. Todo o seu
esforço consistiu primeiro em subtrair à autoridade do Príncipe, as Juntas das
províncias.
Com a chegada dos representantes brasileiros a
Lisboa, pareceu mudar a atmosfera hostil do congresso. E tão perfeito se fez
ali o convívio que providências de caráter francamente infenso ao Brasil (e que
vieram aqui levantar o espírito público) foram tomadas com a responsabilidade,
e até aplausos, de parte da representação brasileira...
Até aqueles decretos de setembro, que vieram dar o
devido desfecho à situação que se havia criado para D. Pedro, dizem que
passaram lá com o voto de alguns dos nossos deputados.
4 - No dia 10 de dezembro tinha-se no Rio notícia
daqueles dois decretos das Cortes, de 29 de setembro. Pelo primeiro,
declarava-se extinta a Casa da Suplicação, assim como outros tribunais do Rio.
Pelo segundo, ordenava-se a D. Pedro que fizesse eleger uma Junta Provisória, à
qual passasse logo a Regência, e se recolhesse ao reino.
É o que D. Pedro queria, e queriam todos os
patriotas.
No mesmo dia 10 de dezembro Í1821) reúnem-se os
membros do Clube da Resistência na casa do capitão-mor José Joaquim da Rocha;
e, de inteligência com o Príncipe, resolvem expedir imediatamente, para São Paulo,
Minas e Rio de Janeiro, emissários encarregados de promover, com a maior
diligência, representações das câmaras e dos povos pedindo a D. Pedro que não
desamparasse os brasileiros.
Enquanto isso, fazia-se anunciar oficialmente que
Sua Alteza Real se preparava para cumprir a ordem das Cortes, e o próprio D.
Pedro escrevia ao pai nesse sentido. Tudo se fazia assim, cautelosamente, de
maneira a não inspirar desconfianças à Divisão Auxiliadora.
Não demoraram tais providências. As Juntas de São
Paulo e Minas não se limitaram a representar ao Príncipe: incumbiram os
respectivos vice-presidentes (José Bonifácio de Andrada e Silva e desembargador
José Teixeira da Fonseca Vasconcelos) de virem ao Rio para, junto de D. Pedro, falar
de viva voz por aqueles povos. O mesmo fizeram quase todas as câmaras da
província do Rio.
Com estes movimentos, alarmaram-se as tropas
portuguesas, tendo à frente o próprio comandante, Jorge de Avilez. De acordo
com os seus oficiais, levou este ao Regente um reclamo formal, "exigindo a
prisão imediata, e remessa para o reino" das pessoas que a guarnição
julgava "perturbadoras da ordem pública"...
Respondeu-lhe prontamente D. Pedro que o direito de
petição já estava garantido pelas bases da Constituição juradas; e que,
portanto, não era possível privar desse direito os brasileiros.
5 - Não seria decerto aquela estulta veleidade de império um empecilho que se pudesse opor eficazmente ao que estava com tanta habilidade planeado, e que se ia executar com segurança.
5 - Não seria decerto aquela estulta veleidade de império um empecilho que se pudesse opor eficazmente ao que estava com tanta habilidade planeado, e que se ia executar com segurança.
Recebidas as representações das três províncias,
trataram os patriotas de dar um caráter de excepcional solenidade à resolução
do Príncipe de permanecer no Brasil, deixando de cumprir o decreto das Cortes.
Era indispensável que se celebrasse um ato público e de grande aparato com que
se dissesse bem claro para Lisboa, que o governo do Regente já não se considera
um simples delegado da antiga metrópole.
Pediu-se a D. Pedro que marcasse dia e hora em que
pudesse ir à sua presença a comissão do Senado da Câmara encarregada de
apresentar-lhe os votos e as súplicas dos povos. Designou Sua Alteza Real o dia
9 de janeiro (1822).
Fez isso D. Pedro depois da formalidade de ouvir em
conselho os seus ministros. É claro que estes, com a sua responsabilidade
oficial, só podiam votar pelo cumprimento das ordens recebidas; mas
provavelmente não deixariam de dizer ao Príncipe o bastante para um bom
entendedor...
Pela manhã do dia 9, reúnem-se o Senado da Câmara no
consistório da igreja do Rosário, para onde havia afluído a maior parte das
pessoas consideradas da terra, e muito povo.
A cidade parecia em festa extraordinária.
Às 11 horas saiu o Senado, com seu presidente e o
pomposo concurso de notáveis que o cercavam, no meio de imensa multidão,
dir-se-ia maravilhada daquela cerimônia com que o povo brasileiro ia afirmar a
sua capacidade de soberania, e o seu intento de fazer-se nação. Todos em grande
gala, cabeça descoberta, em duas alas, indo à frente alçado o estandarte da
Câmara, foram subindo pela rua do Ouvidor, a passo lento, e como se todos
contivessem a própria alma em alvoroços...
Dizem os testemunhos do tempo, e bem o sentimos hoje
nós outros, que foi aquela a mais faustosa e brilhante cena da nossa história.
6 - Ao meio-dia, "recebia o Príncipe, na sala
do trono do paço da cidade", a imponente deputação.
Depois de fazer a Sua Alteza Real um respeitoso
cumprimento, leu o presidente do Senado
(José Clemente Pereira) um discurso, redigido com muita habilidade, para
explicar o reclamo como fundado no bem supremo da nação portuguesa... e até
para conter a cólera das Cortes... Começou mesmo José Clemente dizendo logo que
a saída do Príncipe teria como consequência imediata a separação do Brasil.
Memorando os grandes serviços que a D. João VI devia
o Brasil; pondo em relevo as injustiças cometidas pelas Cortes, e os seus
intentos de recolonizar o país e reduzi-lo do novo a uma condição subalterna,
declarava que o Brasil não queria romper com Portugal, mas exigia um centro de união
e governo, uma assembleia nacional e um poder executivo no seu próprio seio.
Pedia, por isso, ao Príncipe, que benignamente acolhesse os votos dos povos, e
continuasse na Regência até que se viesse a saber em que condições ficaria o
Brasil sob o regime constitucional.
Terminado o discurso, leu-se o manifesto do povo do
Rio, e em seguida, as várias representações.
Tendo ouvido quanto lhe diziam, o Príncipe, depois
de alguma hesitação, concordou em permanecer no Brasil, autorizando que sua
resposta fosse registrada nas seguintes palavras, que ficaram históricas: Como
é para bem de todos, e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo
que fico.
Imediatamente, o procurador da Câmara desenrola de
uma das janelas do paço o estandarte do Senado, enquanto José Clemente,
chegando à mesma janela, repetia em alta voz, para o povo que enchia a praça,
aquelas palavras, acolhidas com delírio fácil de imaginar.
Solicitado pelo entusiasmo que se acendera em todo o
público, apareceu D. Pedro a uma das janelas, "sendo saudado pelo povo no
meio dos mais vivos transportes de alegria".
Serenado por um instante o alvoroço, exclamou o
Príncipe, comovidíssimo, dirigindo-se à multidão: — "Agora, só tenho a
recomendar-vos — união e tranquilidade! —"
Seguiram-se três dias de festas.
Estava lançado o repto às Cortes.
7 - No meio de tudo isso andava como retrusa a
Divisão Auxiliadora, mas, bem que se via, sinistra na sua reserva.
Corriam os festejos sem nenhum incidente
desagradável. Passou todo o dia 10 e a noite em perfeito sossego.
No dia 11, porém, começou a desconfiar-se de que nos
quartéis alguma coisa se tramava.
De fato, Avilez, de concerto com os seus oficiais,
resolvera burlar os intuitos de D. Pedro, e obrigá-lo a cumprir a determinação
das Cortes.
Sabendo isso, exaltaram-se os brasileiros, tanto
militares como civis, e prepararam-se para fazer frente à prepotência do
governador das armas. Houve como um movimento de rebate geral na cidade e nos
subúrbios.
Queixa-se primeiro Avilez ao Príncipe contra a
atitude da população e dos militares brasileiros; mas o Regente interrompeu-lhe
a queixa declarando-lhe que está dispensado do governo das armas.
Tenta em seguida surpreender o Príncipe no teatro;
mas frustrou-se-lhe o plano temerário.
No dia 12, ao amanhecer, estremeceu a cidade vendo o
morro do Castelo coberto de tropas em pé de guerra.
Por outro lado, estava o campo de Sant'Ana ocupado
de forças fiéis a D. Pedro, e de imensa multidão em delírio. Estavam ali o
marechal de campo Joaquim de Oliveira Álvares e o velho general Joaquim Xavier Curado,
continuamente aclamado pelo povo.
Pelas 8 horas chegou D. Pedro ao acampamento; e
expediu imediatamente um oficial para o Castelo, intimando a Avilez que se
recolhesse a quartéis com os soldados da Divisão, e se preparasse para embarcar
com destino a Lisboa. Respondeu-lhe o general que sentia não poder obedecer-Ihe
por ser a ordem contrária às decisões das Cortes...
A uma nova intimação, cedeu, no entanto, pedindo só
que se lhe pagasse o soldo às tropas.
No mesmo dia (12) transferiu-se a Divisão para a
outra banda da baía, onde tinha de esperar pelos navios que a transportariam
para a Europa.
Logo que estiveram prontos esses navios, aconteceu o
que se andava receando: começou Avilez a protelar a partida.
Até que D. Pedro perdeu a paciência, e foi, no dia 8
de fevereiro, para bordo da fragata União, e no dia 9 intimou o rebelde a
embarcar imediatamente sob pena de ser atacado.
Começou então o embarque no dia seguinte; e no dia
15 deixavam as tropas portuguesas a nossa baía.
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
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