A "Prosopopeia" de Bento Teixeira
Bento Teixeira ou Bento
Teixeira Pinto, nascido em meados do Século XVI, em Pernambuco, tem a honra de
ser, cronologicamente, o primeiro poeta brasileiro, ou filho do Brasil. Tem
ainda a fortuna de ser autor a quem muito se atribuiu e também tudo se negou.
Com efeito, o abade Diogo Barbosa Machado dá-lhe a autoria da Prosopopeia, poema dirigido a Jorge de
Albuquerque Coelho, da Relação do
naufrágio que fez o mesmo em 1565, dos Diálogos
das Grandezas do Brasil. Negou-lhe tudo Varnhagen, a princípio a Prosopopeia e a Relação, finalmente os Diálogos.
A pendência continuou, pró e contra, tomando parte nela, além dos citados, o
Padre Lourenço do Couto, Pereira da Silva, Joaquim Norberto, Capistrano de
Abreu, ficando hoje quase certo que a Bento Teixeira se pode apenas atribuir a
autoria da Prosopopeia, sendo
desconhecido o autor dos Diálogos das
Grandezas do Brasil.
Não é muito. A Prosopopeia é um poemeto épico, em
versos hendecassílabos, oitava rima, noventa e quatro estâncias, entoado em
louvor de Jorge de Albuquerque Coelho, governador de Pernambuco, no qual a
imitação, as reminiscências, imagens e talvez versos dos Lusíadas de Camões, constituem como que a intimidade mesma da obra.
A crítica nacional não tem sido benigna com o autor. José Veríssimo é mesmo
duro: chama-lhe “o patriarca dos nossos engrossadores” literários, e da obra
diz: “o apreço da terra, mesmo uma exagerada admiração dela, da sua natureza,
das suas riquezas e bens, é uma impressão comum nos primeiros que do Brasil
escreveram, estranhos e indígenas”. Ronald de Carvalho é também severo: “poema
de medíocre feitio... não se lhe percebe um grande sopro de inspiração, nem ao
menos qualquer relevo de estilo”... frequentes indecisões de expressão, muita
mesquinhez de estro e de linguagem e raras partes de boa poesia”, concluindo,
indulgentemente: “em todo caso, atendendo-se ao acanhamento do meio, não se
deve desprezar esse primeiro fruto enfezado e insípido da natureza brasileira.”
Há autores e obras
infelizes: O Uraguai, de Basílio da
Gama, fastidioso e sensaborão, apenas com algumas paisagens americanas, ainda
assim não inteiramente novas, um século depois, teria nomeado que a mofina Prosopopeia, de Bento Teixeira, não
alcançou: como que paga a primazia que lhe cabe, na nossa história literária.
Felizmente, Sílvio Romero, citando dois trechos do poema, o começo da Narração e a descritiva do Porto do Recife, declara: “o primeiro
fragmento não deixa de ter uns longes de lirismo e o final do segundo encerra
uma certa dose de humor satírico — uma censura aos reis descuidados e inúteis,
coisas que se folga de encontrar no mais antigo poeta nascido no Brasil”. Já
nesse tempo o crítico filósofo descobre a dupla tendência de nossa literatura:
“a descrição da natureza e a do selvagem... Bento Teixeira procura em seu
rápido poemeto ensejo para intercalar a descrição do Recife e indicar palavras
selvagens... A criação atribuída ao Século XIX não foi, pois, uma obra
original, não passando de uma prolação histórica. O nosso nativismo tem
quatrocentos anos de existência.”
A Bento Teixeira bastaria o
lugar que tem assim, e de primeira hora, nesse nativismo, além da primazia no
tempo, entre os nossos poetas; mas tem mais. A imitação camoniana que todos lhe
notam não seria defeito, e foi certamente mérito no tempo, vinte anos apenas
morto Camões, e sob a dominação espanhola, tanto mais que seria a primeira obra
de um poeta que falava para a metrópole, de onde lhe viria o renome. Na
irradiação dos Lusíadas somem-se,
como asteroides junto do sol, todos os épicos portugueses depois de Camões.
Bento Teixeira não fugiu à regra, mas se deve dizer a imitação não fica, na
sonoridade do verso, na fluidez do pensamento, tão longe do modelo, que se não
sinta sempre a influição dele. Não sei se algum dos imitadores de Camões se lhe
a vistoriou mais. E isso é certamente mérito, em falta da própria
originalidade.
Hoje Bento Teixeira não tem
novidade e será desestimado, porque é vulgar Camões: seu consolo será a
impiedade de Castilho, quando escreveu isto: “nenhum bom poeta dos nossos dias,
ainda que inferior a Camões se resignaria, cuido eu, a assinar como sua, uma
única estância inteira de todos os dez cantos (dos Lusíadas); se há um, que diga que ousava, que me aponte qual é essa
estância fênix que ao fim de quase três séculos está ainda tão lustrosa e
juvenil”. Terá boa companhia, mas, por justiça, se dirá que não está mal na
companhia, antes bem ao lado dos alunos. Por vezes no verso, ou no conceito, ao
menos uma vez na imagem heroica, Camões havia de ter orgulho do imitador.
Leia-se esta estância, de feliz descrição e metáfora felicíssima:
As
luzentes estrelas cintilavam
E
no estanhado mar resplandeciam,
Que
dado que no Céu fixas estavam
Estar
no licor falso pareciam.
Este
passo os sentidos preparavam
A
aqueles que de amor puro viviam
Que
estando de seu centro e fim ausentes
Com
alma e com vontade estão presentes.
O
conceito desta ainda é um eco do outro, e ele o subscreveria, por certo:
Oh
sorte, tão cruel, como mudável,
Porque
usurpas aos bons o seu direito?
Escolhes
sempre o mais abominável,
Reprovas
e abominas o perfeito.
O
menos digno, fazes agradável,
O
agradável mais, menos aceito,
Oh
frágil, inconstante, quebradiça
Roubadora
dos bens, e da justiça.
Mas, neste canto, — que as noventa e quatro estâncias da Prosopopeia têm a dimensão de um, dos Lusíadas, — há lance que vale por tudo mais, e honraria ao mesmo Camões. É quando, em Alcácer-Quibir, destroçados, os portugueses, outrora invictos, debandam espavoridos, abandonando Rei e Pátria à mourisma triunfante: o velho Duarte de Albuquerque, que em vão os quer deter, exorta-os, antes que, para não sobreviver à vergonha, procure a morte:
Assim
dirá. Mas eles sem respeito,
A
honra e ser de seus antepassados,
Com
pálido temor no frio peito,
Irão
por várias partes derramados.
Duarte
vendo neles tal defeito,
Lhes
dirá: “Corações efeminados,
Lá
contareis aos vivos o que vistes,
Porque
eu direi aos mortos que fugistes.
A sublimidade da ideia destes dois últimos versos vale um poema: só eles bastam para fazer da Prosopopeia mais que um canto bastardo camoniano. Em qual dos nossos épicos — no Uraguai de Basílio da Gama, na Confederarão dos Tamoios de Gonçalves Magalhães, n'Os Timbiras de Gonçalves Dias, há ideia heroica, que valha esta? Fica a pergunta, para a devida revisão do juízo sumário, e injusto, que desfruta a memória de Bento Teixeira.
Além da primazia, no tempo,
não bastaria isto mesmo para justificar o conhecimento de sua obra, tão
ignorada dos nossos descuriosos leitores?
A Prosopopeia foi impressa em 1601, em Lisboa, por Antônio Álvares.
Sílvio Romero, não sei com que fundamento, diz: “crê-se que a primeira edição
foi de 1593”. Esta, de 1601, seria então a segunda. Descobriu-a Varnhagen na
Biblioteca de Lisboa; pouco depois, Ramiz Galvão, a essa luz, descobria outro
exemplar, na Nacional, na coleção Barbosa Machado, fazendo dela, em 1873, uma
edição fac-similar, hoje muito rara; é desta, apenas modernizada a ortografia,
que temos a presente, vulgarizando assim “o primeiro” poeta brasileiro.
AFRÂNIO PEIXOTO
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