4/21/2018

A Primavera da Poesia Brasileira (artigo), de Guilherme de Almeida


 A Primavera da Poesia Brasileira

Artigo publicado em 1940, na revista "Ilustração Brasileira". Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)


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Bilac fez, para a forma brasileira, uma forma: a do seu coração. Ele foi todo o nosso amor: a flor reprodutora da árvore milagrosa. E tudo, em volta — os homens e os bichos na terra; as estrelas e as aves do céu — parou, para sentir a alucinação das cores e a palpitação dos perfumes da florada mágica. E, nessa embriaguez afrodisíaca, tudo da terra e tudo do céu foi, para mais e melhor amar, tomando a forma humana, que é a forma divina do amor, num antropomorfismo sexual, lascivo, ofegante, lânguido, desfalecido... Tudo, ao magnetismo excitante dessas cores e desses perfumes, foi ficando de carne viva e quente; foi acendendo de uma chama estranha os seus sentidos: foi olhando com delírio, ouvindo com gula, provando com beijos, tocando com luxúria, aspirando com espasmo, humanamente... A terra, morna, suada e palpitante, era toda um só leito de um só amor... Então, o índio guerreiro de Gonçalves Dias, envelhecido num Tapir, começou a sentir

"O rumor do noivado estremecendo a mata,
sob o plácido olhar das estrelas de prata..."

Tudo é gente, em derredor, e tudo ama. E tudo é amor. A Via Láctea debruça-se no céu, sobre a árvore florida e namorada, o olhar celeste para o seu baixando. E na floresta secular, sombria, o sol do amor, que não entrava outrora, entra dourando a areia dos caminhos. As estrelas conversam com os homens. Como um amante aos raios de um olhar, todo colado à terra enorme, o rio dorme aos raios de prata do luar. A névoa é toda um só rumor vibrante de atritos longos e de beijos quentes. Pelos jardins há falas misteriosas. A luz é um beijo longo; o vento é um choro... Arde uma sarça — e no ar o fumo toma formas e gestos de mulheres nuas, alexandrinamente portentosas: é Frineia, exibindo ao Areópago surpreso o triunfo imortal da carne e da beleza; são rainhas tentando santos na Tebaida; é Satânia, na alcova quente e perfumada: é Laís ante a cisma fria de Xenokrates, que o envolve, e enlaça, e prende, e aperta loucamente... Agora, num gemido, uma alma inquieta passa e há nas vozes da terra um desespero mudo, há palavras de fé que nunca foram ditas, há confissões de amor que morrem na garganta... A Pátria é uma mulher: é a namorada verde, que mostra ao bandeirante, entre as selvas dormida, o mundo por nascer que trazia no seio... Sobre a árvore amorosa, enfim, desce uma tarde: a última tarde dessa primavera. E tudo é mais amor sob o adeus dessa tarde. Há mais amor à língua que falamos, pelo viço que tem e pelo aroma de virgens selvas e de oceano largo; e porque em sua música ela encerra todo o feitiço do pecado humano. E há um vale sobre o qual almas de sinos expiram longamente pela bruma; e uma montanha que é feliz por ser a última a receber o adeus do dia, primeira a ter a benção das estrelas; e há rios que soluçam a ansiedade de todos os que morrem de esperança, de todos os que vivem de saudade; e há estrelas que caminham como ovelhas; nuvens de arquiteturas imprevistas, árvores que amam e que gesticulam à esperança e ao mistério do horizonte...

Gesticulam... Gesticulam. E porque é tarde assim, e porque uma sombra má, a sombra de uma noite sem fim, já se insinua sobre a terra; antes que o seu abraço negro possa sorver toda a cor de amor e todo o perfume de amor das suas flores, a árvore cantante gesticula, braceja, sacode doidamente, alucinadamente a fronde toda: e, num choro aéreo e leve de pétalas soltas, de cores volantes e de aromas livres, deixa cair sobre a carne moça do seu chão todas as suas flores para glorificar tudo que amou na ferra!


GUILHERME DE ALMEIDA
Revista “Ilustração Brasileira”, janeiro de 1940.

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