Artigo publicado em 1940, na revista "Ilustração Brasileira". Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Bilac
fez, para a forma brasileira, uma forma: a do seu coração. Ele foi todo o nosso
amor: a flor reprodutora da árvore milagrosa. E tudo, em volta — os homens e os
bichos na terra; as estrelas e as aves do céu — parou, para sentir a alucinação
das cores e a palpitação dos perfumes da florada mágica. E, nessa embriaguez
afrodisíaca, tudo da terra e tudo do céu foi, para mais e melhor amar, tomando
a forma humana, que é a forma divina do amor, num antropomorfismo sexual,
lascivo, ofegante, lânguido, desfalecido... Tudo, ao magnetismo excitante
dessas cores e desses perfumes, foi ficando de carne viva e quente; foi
acendendo de uma chama estranha os seus sentidos: foi olhando com delírio,
ouvindo com gula, provando com beijos, tocando com luxúria, aspirando com
espasmo, humanamente... A terra, morna, suada e palpitante, era toda um só
leito de um só amor... Então, o índio guerreiro de Gonçalves Dias, envelhecido
num Tapir, começou a sentir
"O rumor do noivado estremecendo a
mata,
sob o plácido olhar das estrelas de
prata..."
Tudo
é gente, em derredor, e tudo ama. E tudo é amor. A Via Láctea debruça-se no
céu, sobre a árvore florida e namorada, o olhar celeste para o seu baixando. E
na floresta secular, sombria, o sol do amor, que não entrava outrora, entra
dourando a areia dos caminhos. As estrelas conversam com os homens. Como um
amante aos raios de um olhar, todo colado à terra enorme, o rio dorme aos raios
de prata do luar. A névoa é toda um só rumor vibrante de atritos longos e de
beijos quentes. Pelos jardins há falas misteriosas. A luz é um beijo longo; o
vento é um choro... Arde uma sarça — e no ar o fumo toma formas e gestos de
mulheres nuas, alexandrinamente portentosas: é Frineia, exibindo ao Areópago
surpreso o triunfo imortal da carne e da beleza; são rainhas tentando santos na
Tebaida; é Satânia, na alcova quente e perfumada: é Laís ante a cisma fria de
Xenokrates, que o envolve, e enlaça, e prende, e aperta loucamente... Agora,
num gemido, uma alma inquieta passa e há nas vozes da terra um desespero mudo,
há palavras de fé que nunca foram ditas, há confissões de amor que morrem na
garganta... A Pátria é uma mulher: é a namorada verde, que mostra ao
bandeirante, entre as selvas dormida, o mundo por nascer que trazia no seio...
Sobre a árvore amorosa, enfim, desce uma tarde: a última tarde dessa primavera.
E tudo é mais amor sob o adeus dessa tarde. Há mais amor à língua que falamos,
pelo viço que tem e pelo aroma de virgens selvas e de oceano largo; e porque em
sua música ela encerra todo o feitiço do pecado humano. E há um vale sobre o
qual almas de sinos expiram longamente pela bruma; e uma montanha que é feliz
por ser a última a receber o adeus do dia, primeira a ter a benção das
estrelas; e há rios que soluçam a ansiedade de todos os que morrem de
esperança, de todos os que vivem de saudade; e há estrelas que caminham como
ovelhas; nuvens de arquiteturas imprevistas, árvores que amam e que gesticulam
à esperança e ao mistério do horizonte...
Gesticulam...
Gesticulam. E porque é tarde assim, e porque uma sombra má, a sombra de uma
noite sem fim, já se insinua sobre a terra; antes que o seu abraço negro possa
sorver toda a cor de amor e todo o perfume de amor das suas flores, a árvore
cantante gesticula, braceja, sacode doidamente, alucinadamente a fronde toda:
e, num choro aéreo e leve de pétalas soltas, de cores volantes e de aromas
livres, deixa cair sobre a carne moça do seu chão todas as suas flores para
glorificar tudo que amou na ferra!
GUILHERME DE ALMEIDA
Revista “Ilustração Brasileira”, janeiro
de 1940.
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