Artigo publicado no ano de 1951, na revista "Careta". Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Seu nome é conhecido de poucos, mas Auta de Souza é uma das vozes mais íntimas
do povo da sua terra. Um sem número de versos seus foram musicados e andam na boca de toda gente, muitas vezes como lindas canções anônimas.
Não haverá, talvez, em Natal, criança que não tenha adormecido mil vezes ao embalo destes versos
tão doces:
Astros celestes, docemente louros,
Giram no espaço, em luminoso bando;
Ouve-se ao longe um violão plangente
E, mais além, num soluçar dolente,
Canções serenas, ao luar voando.
Giram no espaço, em luminoso bando;
Ouve-se ao longe um violão plangente
E, mais além, num soluçar dolente,
Canções serenas, ao luar voando.
Os motivos mais constantes em Auta de Souza são as
crianças, os pássaros e a morte. São quase os seus únicos motivos. E não se esgota. É sempre
com maior intensidade e mais envolvente ternura que os canta.
Uma existência que não chegou a amadurecer, minada desde muito cedo pela doença cruel que levaria onze anos para aniquilá-la, isolando Auta, obrigando-a a longas temporadas no campo, em estreito contato com a natureza triste do sertão, tudo isso talvez explique a sua estranha sensibilidade. Quantas madrugadas não teria ela visto se acenderem, nas suas tormentosas insônias, pressentindo o despertar alegre de cada pássaro! Quantas vezes, estirada na espreguiçadeira, não teria acompanhado, horas e horas, pela moldura retangular da janela, o trabalho assustado do gaturamo tecendo o ninho:
Era muito à tardinha; as aves mansas
Voavam todas, em formosos pares,
Como se fossem garrulas crianças
Que andassem, rindo, a percorrer os ares!
E eu murmurei ao ver assim voando
Aquelas aves para os brandos ninhos:
"Ah! Quem me dera só andar cantando,
Sempre crianças, como os passarinhos!"
Voavam todas, em formosos pares,
Como se fossem garrulas crianças
Que andassem, rindo, a percorrer os ares!
E eu murmurei ao ver assim voando
Aquelas aves para os brandos ninhos:
"Ah! Quem me dera só andar cantando,
Sempre crianças, como os passarinhos!"
A todas as coisas belas acha jeito de associar os pássaros:
E enquanto cismo, respondem
Os astros, brancos arminhos:
Nós somos berços que escondem
As almas dos passarinhos.
Outras
vezes é com eles de uma ternura assim:
É noite já. Como em feliz remanso,
Dormem as aves nos pequenos ninhos...
Vamos mais devagar... de manso e manso,
Para não assustar os passarinhos.
E
as crianças? Auta foi diante da vida que nem uma menina pobre. A moléstia
isolava-a e as crianças lhe ficavam à distância, bonecas de rico, impossíveis
para ela... Nem sempre porém, Auta consegue esconder os seus anseios e vai
falando:
Tu sorris por este campo em
flor
O Amor e a lua vão pelo céu boiando
Só eu vagueio a suspirar chorando
Sem luz e sem Amor.
O Amor e a lua vão pelo céu boiando
Só eu vagueio a suspirar chorando
Sem luz e sem Amor.
Chega às vezes a se desesperar:
Não me deixem morrer assim na primavera:
Esconde-me no seio, ó minha mãe querida!
A morte como é triste! e o noivo que me espera
Há de chamar por mim... Quem restitui-me a vida?
Mas
em regra o que aparece é a prodigiosa sublimação de tudo numa doçura de fada. E
as suas reservas maternais transparecem talvez na quadra que se segue:
Dorme e não chores, criança!
A lua do céu sorri
Na vida sem esperança
Eu hei de chorar por ti.
A lua do céu sorri
Na vida sem esperança
Eu hei de chorar por ti.
A uma
amiga que lhe dissera no saber “o que é tristeza” responde duvidando:
Será possível que o teu seio, rosa,
Nunca embalasse a lágrima formosa?
Ah! não és rosa, pois não tens espinho!
Depois mostra a sua imensa capacidade de ternura dizendo para o outra:
E os olhos teus, dois templos de esperança,
Nunca viram sofrer uma criança,
Nunca viram morrer um passarinho.
Em
face da morte, que foi uma sombra e sempre mais fechada sobre os seus dias,
Auta de Souza teve as atitudes mais diversas, como diversos hão de ter sido os
seus estados de espírito vivendo o seu drama.
UMBERTO PEREGRINO
Revista
"Careta", 28 de julho de 1951.
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