3/18/2018

Revelações do "Eu" (Ensaio), de Álvaro de Carvalho


Revelações do "Eu"

Publicado originalmente na Revista ABC, em 1930. Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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O autor do "EU" era uma individualidade curiosa. Alto, magro, recurvado, habitualmente silencioso, nunca lhe ouvi um riso franco, nem a alegria, parece, iluminou jamais aquele rosto. Deixava em quem o via uma viva impressão de retraimento e tristeza. Mesmo na rua parecia absorto em cogitações profundas. Não raro, no silêncio morno das conversas, levava o cabo do chapéu de sol aos lábios e como que se alheava a quantos o ouviam e dele se acercavam. Era cioso de sua dignidade, altivo, moralizado por índole e por princípios. Tinha pavor à morte. Nos últimos anos parece que essa preocupação se ia, mais a mais, acentuando. Em 1912, o encontrei no Rio de Janeiro, ainda e cada vez mais dominado pela ideia de morrer. Sua conversação, pouco espontânea, era sombriamente imaginosa. Um tanto incisivo nos conceitos, ao comentar coisas e fatos chegava, por vezes, ao paradoxo. O Nirvana búdico era-lhe sempre um termo de comparação ou a imagem favorita do poeta.

A obra retrata o escritor e define claramente o homem. Nela revelou Augusto dos Anjos a alma bizarra que possuía, difundia naquela esquisita ideação de artista, que melhor diria, de pensador, porque, para mim, os seus versos não são mais do que a forma ritmada e harmoniosa em que ele procurou vazar a grandeza deslumbrante da filosofia do século. Porejam haeckelismo. E aí está a sua maior, senão a sua única virtude, como esteta.

O ritmo de seus versos rumorosos acompanha o pensamento e o domina, cresce, alteia-se e rola, pelas estrofes, como ondas sonoras de uma música incompreendida. Não se lhes apanha, a muitos deles, o sentido, senão com aturada meditação e grande esforço. De modo que, a bem dizer, Augusto fez poesia para o ouvido, musicou a filosofia de seu tempo, orquestrou, sombriamente, as suas dores e os devaneios de seu espírito malsão. Seus versos fazem-me lembrar, sempre que os leio, Les phares, de Baudelaire, na imprecisão das imagens, como na cadência musical que os senhoreia.

Mas, nas bizarrias de seu estro, no desconcerto de sua vida mental, no turbilhão dos fantasmas que criou, pode a gente identificar o filho retardado do pessimismo filosófico que varreu, como um sopro de morte, o mundo do pensamento, dos primeiros aos últimos dias do século XIX. Filosófico, disse eu, e, bem melhor, poderia dizer psíquico-psicológico, porque, um pessimismo filosófico, por sua natureza mesma, seria, quando muito, uma atitude postiça diante do mundo dos fenômenos e um motivo fútil e risível para declamações choramingas de poetaços sem valor. Nem se me faça notar a influência dos filósofos do pessimismo e dos poetas pessimistas sobre a alma contemporânea.

De J. J. Rousseau a Byron, a D’Anunzio, a história do pensamento, em suas manifestações filosóficas, morais ou artísticas, é a vibração sintomatológica de um século nevrótico, pelo menos nas altas esferas de sua mentalidade.

Na poesia, no romance, no drama, nos próprios domínios da filosofia, rebenta a fauna dos loucos morais, dos insatisfeitos, dos reformadores sombrios, dos paranoicos, dos epiléticos, dos grandes criminosos e dos histéricos — de modo a poder-se com segurança dizer que a literatura do século que findou, em sua generalidade, não foi mais do que a crônica elegante de um hospital, onde se observaram todas as moléstias e se estudaram todos os doentes.

Os literatos, em sua maioria, consoante a tendência do tempo, escreveram para documentar as observações dos psiquiatras, prestando-lhes, aliás, um notável desserviço e a própria crítica literária não fugiu à influência da corrente — fez-se um instrumento preciso de indagações patogênicas nas mãos de Patrizi, Nordau, Roncoroni, Cognetti, Niceforo, Troilo, entre outros.

Como era, pois, de crer, desse movimento geral do espírito científico e dessa literatura impregnada do vírus contaminador das nevroses, consoante a lei da recíproca influenciação, saiu o espírito de Augusto que, por tendências notavelmente pronunciadas, era um campo de cultura raro para os pendores do tempo. Nele se cristalizaram as nevroses ancestrais e a herança espiritual de três gerações de nevróticos e de gênio. Aquelas prepararam-lhe o organismo alheio, por educação, aos corretivos da moderna pedologia, esta, deu-lhe a chave do problema da vida insulflando-lhe, no espírito, a filosofia para a qual devia, por força de inelutável fatalidade patológica, gravitar, na construtividade bizarra de sua complicada ideação. Mesmo sem as influências culturais, Augusto teria sido poeta esquisito que se nos revelou — uma espécie de Antônio Nobre, menos doce, menos suave, porém, igualmente triste.

A cultura filosófica de que se abeirou deu-lhe o tom pedantesco do poetar, elevou-lhe o pensamento, tirando-lhe o estro, tornando os seus versos, vezes, incompreensíveis para as pessoas poucos versadas na técnica das ciências naturais. E aí está por onde o nosso poeta, com ter altas qualidades, não conseguirá transpor o círculo estreito de meia dúzia de leitores cultos, que podem admira-lhe os talentos, nunca, porém, sentir-lhe poesia nos versos. As páginas do "EU" não abrirão caminho à poesia nova, consoante a expressão do seu entusiasta, porque esta não há de sair das abstrações dos filósofos, nem dos laboratórios dos sábios.

O caráter abstrativo das ideias é, em Augusto dos Anjos, a feição acentuada de sua poesia e a afirmação do seu talento de pensador; mas também a negação formal de suas qualidades de artista. Não é que a filosofia, no arrojo das sínteses que a constituem, na grandeza olímpica de sua ideação, na justeza lógica de suas deduções, no largo trabalho indutivo que representa o contingente das ciências particulares, nesse imenso material de fatos que ela senhoreia, domina e explica, não tenha a sua poesia que é, em última análise, a poesia do cosmos, na universalidade de suas leis, na grandeza insondável de seus enigmas. Mas, dessa abstração poética, que é uma poesia de sábios, à poesia das imagens, que é a que deleita sem fatigar e, bem se poderia dizer, a poesia das formas, falando mais aos sentidos do que à lógica e à razão, há a distância que vai das coisas materiais às mais altas ideias abstrativamente pensadas. E a poesia e as belas letras não são mais do que uma espécie de pintura para os olhos do espírito, tanto mais poderosa quanto melhor consegue estresir os contornos materiais das imagens ou corporificar as relações abstrativas em que essas imagens se transformam, no jogo complexo das ideias, mercê das funções compostas da apercepção. Mesmo porque os termos concretos produzem impressões mais fortes do que os abstratos, pela “economia do esforço requerido por traduzir palavras em pensamentos” e ideias gerais em imagens. As ideias abstratas, porém, não se apresentam ao espírito com forma definida, requerendo, assim, da parte do leitor, maior soma de atenção e um duplo esforço para a reconstrução precisa do pensamento enunciado.

De modo que o processo ideativo do poeta deve ser mais elementar do que do filósofo, mais imaginoso, menos claro, menos preciso, de maneira a deixar a quem lê, a parte construtiva que lhe está destinada nesse responder continuado às excitações recebidas. A imagem é a vida e a alma da poesia, por isso que uma ideia geral e abstrata é um nome e nada mais.

Eis porque, consoante observa Veron, a abundância de imagens é o que faz o caráter poético das obras da antiguidade. E não somente da antiguidade, releva acrescentar, senão das obras poéticas de todos os séculos.

Dante mesmo, falando do céu, na parte por excelência abstrativa do seu poema, não se perdeu no mundo vão da filosofia de seu tempo e, cedendo, talvez, a essa elementaríssima necessidade de dar forma e relevo às próprias ideias é, ainda assim, abundantíssimo em imagens.

E não será o pensar por imagens o segredo da força estilística de Eça de Queirós? Acaso Flaubert, em Madame Bovary ou em Salammbô usou linguagem abstrativa? O próprio Zola, com fazer romances de teses sociais e ter a notável preocupação de ilustrar, com os tipos de suas obras, as conclusões dos psicopatologistas, Zola não sai da esfera de sua grande arte, toda de emoção e de imagens, para galgar aquela em que se exercitam a capacidade analítica e os poderes abstrativos dos Magnans e epígonos.

Demais, a poesia científica, como a tentou, por vezes, Augusto, é, a bem dizer uma contradição em palavras. Para o poeta ser um homem do seu tempo, cantar as maravilhas da vida, as grandes conquistas da ciência, o progresso das indústrias e o arrojo das criações humanas, não precisa fazer ciência, e da pior espécie, ou seja aquela em que a técnica toma o lugar aos processos regulares de crítica, de análise e de síntese ou, o que mesmo fora dizer, aquela em que as inovações são aceitas como verdades incontestadas.

Poesia científica e ciência poética se equivalem.

Não se segue daí que o Poeta deva ignorar as ideias e as verdades científicas da época em que vive. Nem Dante, nem Camões, nem Tasso desconheciam as ciências de seu tempo.

ÁLVARO DE CARVALHO
ABC, edição de 27 de setembro de 1930.

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