Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
OS HOLANDESES EM CENA
1 - Não é exato, como pensam alguns autores, que no
vasto cenário aberto pelos dois povos ibéricos se apresentassem os holandeses
defendendo o livre comércio contra o monopólio.
Foi mesmo o contrário. A função do batavo na
história daqueles grandes dias está longe de comparar-se à daqueles outros;
principalmente à do português; pois enquanto este criava, como a causa suprema para
a Europa naquele momento, a expansão do espírito ocidental por todo o mundo: — que
é que fazia a Holanda?
Muito provida e avisada, mas muito egoísta, cuidava
de arranjar a sua economia doméstica, fazendo a sua lavoura e a sua pesca,
fundando as suas oficinas e as suas manufaturas, abrindo canais e construindo
diques.
E só esperou o instante oportuno, para sair da sua
quietude laboriosa, a disputar aos heróis dos descobrimentos os proveitos e
vantagens da obra realizada.
É este, pois, o papel dos holandeses, e dos outros
concorrentes de Portugal e de Espanha: não foram mais que uns simples
instigados da fortuna, campeões retardatários, que tinham decerto muito valor,
mas que só chegaram depois de ferida a batalha e ganha a vitória, e só com o
pensamento de recolher os despojos.
Não têm, portanto, o direito de ser considerados
como pregoeiros e defensores de um
princípio que foram os primeiros a desmentir, começando espertamente pelo
tráfico, insinuando-se nos portos, iludindo o fisco em toda parte; caindo logo
no corso e na pilhagem, organizando-se em formidáveis quadrilhas marítimas que
enriqueceram cidades e grandes casas: até que acabaram usurpando
desafrontadamente o que a outros custara trabalho e sacrifício.
Pode-se dizer que a Holanda aprende com Portugal;
isto é, que o exemplo do heroísmo vitorioso do luso é que estimula e agita o gênio
flamengo.
No século XV, entre os povos marítimos da Europa, o
holandês era ainda o mais fechado. Vivia diante do mar; não tinha, porém, o
instinto da navegação.
Esperava pelo seu dia.
Esse dia chegou quando Portugal e Espanha começaram
a espantar a Europa, até ali quase desapercebida.
2 - Primeiro, tomam conta os holandeses do novo
comércio do Norte. Enquanto da África e da Ásia, e logo depois da América, recolhem
portugueses e espanhóis os proventos do seu trabalho, incumbem-se armadores e
negociantes flamengos de distribuir por todos os mercados, tanto os artigos das
manufaturas europeias, como os novos produtos coloniais, armazenados em Lisboa
e em Sevilha. Puseram-se assim no caminho da sua grande fortuna. Em poucos anos
as suas urcas cruzam o oceano, e frequentam, não só os grandes portos da
Europa, como os novos mercados que se abriam na América e em toda parte.
E quando o corso começou a tornar perigosa a
navegação, foram eles os que mais depressa recorreram à precaução dos vastos
comboios, perfeitamente guarnecidos de todos os meios da guerra.
Para isso, formaram primeiro as suas cooperativas, e
logo depois as suas grandes companhias — as mais famosas associações mercantis
que até ali se conheceram nos anais modernos.
Iniciaram o sistema pela Companhia das índias
Orientais, em 1602.
Esta deu de pronto resultados magníficos. Em menos
de um decênio, apoderou-se de quase todo o comércio do Oriente.
Note-se como iam os holandeses com uma lógica
segura, e num crescendo admirável: de pescadores, fazem-se marítimos de alto
mar; de simples mercantes, passam ao corso, logo à pirataria, à flibustagem
desenfreada; até que, sentindo uma exagerada confiança no destino, tentam
apossar-se, pela força, de terras que outros haviam descoberto.
É assim que o governo português teve de ir mudando
de sistema: cuidou de reprimir, nos seus domínios, a ação que a princípio
deixara livre aos flamengos, como a todos os traficantes. E logo que na Holanda
se fundou a primeira companhia, fechou Portugal de todo os portos das colônias
aos temerosos competidores.
Estava travada a luta formidável.
Aí temos, pois, os holandeses em cena, fortes,
alvoroçados de fé naquele estranho surto para os mares e terras com que se
ampliou, aos olhos da Europa marítima, o teatro onde vai operar a atividade
renascente do mundo.
Os grandes sucessos alcançados pela Companhia das
índias Orientais abrem largos horizontes à ambição dos flamengos e volvem-se eles
resolutos para o Brasil.
Desde alguns anos, aliás, logo que se puseram em
conflito com a Espanha, vinham eles ensaiando investidas contra alguns pontos
da América oriental, por onde anteriormente já negociavam.
Em 1599, a pretexto de uma viagem de explorações
(como se usava no tempo) desce ao longo das nossas costas a expedição comandada
por um Olivier van Noort.
Fez este pirata algumas tentativas em vários pontos
do litoral entre Rio de Janeiro e São Vicente. Foi também ao Espírito Santo.
Mas em toda parte recebido hostilmente pelos moradores, e escarmentado com a
perda de um dos seus navios e de muitos dos seus companheiros, seguiu para o
estreito de Magalhães à procura das costas do Pacífico.
No mesmo ano era a Bahia assaltada por sete navios
da esquadrilha de Leynssen. Estes navios faziam parte da formidável expedição
de Pieter van der Does, de setenta navios e que não dissimulava os seus
intuitos nos mares da América. Descendo pelo Atlântico, apodera-se van der Does
da Grande Canária: e dali mandou já para a Holanda trinta e tantos dos navios
carregados de farta rapina. Da Canária procurou o golfo de Guiné, onde tomou a
ilha de São Tomé. Foi a sua desgraça. Bate-lhe na gente a febre amarela, e em
menos de quinze dias morrem 1.200 pessoas, inclusive o próprio almirante. O
locotenente Leynssen, quebrantado, em vez de vir ao Brasil, que era o alvo da
expedição, mandou apenas aqueles sete navios sob o comando dos capitães Hartman
e Broer. Estes navios recolheram sempre alguma coisa na Bahia; e voltaram para
a Holanda em 1.600, como toda a esquadra.
4 - Os negócios no Brasil não eram, no entanto, para
serem abandonados. Mesmo sem as vantagens do salteio às povoações, só a captura
de barcos pela costa, e pelas baías indefesas, já assegurava aos piratas, pelo
menos, lucro certo e grosso.
Para os estimular naquela faina rendosa, e que além
disso ainda passava como heroica, vinham motivos bem ponderosos. Já se tinha
notícia das condições em que se encontravam os nossos portos mais frequentados,
e onde havia mais que pilhar. Tinha-se já também certeza do processo maravilhoso, pelo êxito de tantas expedições
que volviam opulentas dos mares da
América.
E principalmente os especuladores da Holanda não
tinham razões para arrefecer nos seus ímpetos contra as colônias portuguesas.
Continuaram, portanto, cada vez mais desafrontados.
Em 1604, nova quadrilha, capitaneada por um Paulo
van Caarden, e composta igualmente de sete navios, invade outra vez o
Recôncavo, apresa e incendeia embarcações; e só não desembarca gente porque
encontra vigorosa resistência oposta
pelos próprios habitantes.
O Governador-Geral (Diogo Botelho), impotente contra
tais agressões, o mais que fez foi aproveitar-se do fato como um argumento de força
para pedir socorros, fazendo voltar Diogo de Campos à Europa, a fazer sentir como
se expunha a colônia a ser usurpada.
5 - Vivia-se agora no Brasil como em contínuo
sobressalto; pois os inimigos não deixavam descanso às populações. Como já
vimos em lição anterior, não eram só holandeses os que tinham os olhos
engrelados para as nossas vilas e cidades mais ricas: eram eles, porém, os mais
insistentes e temíveis.
Sem contar outros ataques menos nocivos que
sofremos, passados alguns anos daquela acometida de van Caarden (e estando nós
já amparados pela famosa trégua celebrada entre a Espanha e as Províncias
Unidas), é o Brasil visitado por uma outra esquadra flamenga, do comando de um
Joris van Spilberg, em 1614/1615.
Só talvez em relação a esta é que se poderia
estranhar o excesso de rigor cometido por alguns colonos portugueses do Rio;
mas isso se a inclemência destes não se explicasse pela temeridade, perfídia e
malvadez dos piratas.
A correr a costa, fundeando aqui e ali, aconteceu
que junto da Ilha Grande consentiu o almirante que alguns marinheiros
desembarcassem; e como em terra fossem muito descuidosos, caíram sobre eles
muitos colonos e índios, massacrando-os impiedosamente. Era no tempo de
Constantino Menelau — diz Fr. Vicente; os holandeses aportaram na enseada de Marambaia,
que dista umas nove léguas abaixo do Rio de Janeiro. Teve notícia disso Martim
de Sá, que tinha engenho por ali perto, na Tijuca; e entendendo-se com o
capitão-mor, ajuntou gente, e foi surpreender os piratas, que andavam
descuidosos em terra apanhando frutas. Dos trinta e seis pobres homens, foram
mortos vinte e dois, sendo os demais presos, e apreendidas as lanchas.
6 - Dos navios, que estavam distantes, nada se pôde
fazer em socorro dos infelizes; e Spilberg apressou-se em deixar a paragem
seguindo para o sul cora destino às costas do Pacífico.
Para consolar-se do desastre, e ressarcir-se da
perda, em sua derrota para o estreito de Magalhães, conseguiu ainda apresar uma
caravela portuguesa bem provida, incendiando-a depois, na barra de Santos.
O que é estranho no meio de tudo isto é que a corte
de Madrid parecesse de todo indiferente a tais avisos.
Clamavam sem cessar os míseros colonos pelo concurso
da metrópole naquela obra de defesa, em que só eles se sacrificavam, e quase
sem proveito, porque o mais que faziam era guardar a terra à custa de seus
bens, e do próprio sossego, e até da vida.
Ante a desídia da metrópole, redobravam de audácia
os flibusteiros.
Desenfreou-se de tal modo a pirataria nos mares e
por toda a costa até o Amazonas que — diz o nosso Varnhagen — durante o ano de
1616 tomaram os holandeses vinte e oito navios de carreira do Brasil. E para se
ver como crescia espantosamente aquele negócio com que a Holanda se opulenta,
basta notar que em 1623 já o número de navios apresados no mar e nos portos
ascendia a setenta!
Tudo isso estava dizendo muito claro que o Brasil é
alvo de uma cobiça cada vez mais desabusada, e que a audácia disputante é agora
mais insofrida e decisiva.
Chega o momento em que, enriquecidos na nova
indústria de devastar os mares, já senhores do Oriente, vão os holandeses
passar do corso e do salteio a pretensões efetivas de terras na América.
E agora, além de todas as vantagens de encontrar
obra feita nos dois oceanos, vem ainda estimulá-lo o rompimento com a Espanha.
Lisonjeado pelo destino com tantos sucessos, e desvanecido da vitória contra o
orgulho e fanatismo de Filipe II, estava o espírito nacional da velha
Neerlândia perfeitamente retemperado de coragem para a competição em que ia
entrar.
7 - Pelo outro lado, apesar de todos os ataques que
tem sofrido, não se poderia dizer que fossem as mais precárias as condições do
Brasil, no que respeita sobretudo ao sentimento geral dos colonos como base de resistência
a inimigos externos.
É exato que nos momentos mais graves se clamava para
a corte, e já vimos como a pouca solicitude da Espanha em relação à América oriental
muito concorria para persuadir os colonos portugueses de que o Brasil já não contava,
pelo menos nas medidas em que isso era necessário, com a tutela da sua
metrópole.
É preciso, aliás, não exagerar as acusações que se
fazem à corte de Madrid. A Espanha estava numa situação muito complicada, em
luta com sérios embaraços no interior, e em colisão com quase toda a Europa do norte,
principalmente com a França, a Inglaterra e a Holanda, as três mais
consideráveis potências do continente.
Para fazer face aos seus inimigos, e para defender,
ainda fora da Europa, a imensidade de possessões que tinha de guardar em todos
os mares, não era possível que tivesse, a tempo, sempre forças disponíveis. Nem
se concebe que pudesse conservar em atividade permanente forças navais e de terra
capazes de acudir a toda parte onde houvesse clamores.
Em tal conjuntura, o mais prático era mesmo não dar
ouvidos demais a quanto boato de riscos ou de agressões corria, aguardando-se os
momentos decisivos em que fosse necessário agir com segurança. Correr a esmo a toda parte, a atalhar perigos, antes
de tudo seria nada mais que cansar inutilmente.
Explica-se, pois, perfeitamente aquilo que aos olhos
dos colonos parecia indiferença da corte de Espanha.
Até certo ponto não se poderia ver isto como um
grande mal para o Brasil. Sentindo-se abandonados (e de um rei que não era o
seu legítimo) cuidavam os próprios colonos de defender-se. De duas intrusões,
no Sul e no Norte, já haviam salvo a colônia: hão de, com a mesma constância e
esforço, arrostar as tormentas que vierem.
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