Pelo Caminho
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
CAPÍTULO 1
Durara a pândega a
noite inteira; uma dessas orgias banais, grosseironas, genuinamente
fluminenses; que principiam por um jantar de hotel, em gabinete particular,
continuam durante a representação de qualquer teatro, depois durante a ceia no
München, até às duas ou três horas da manhã, para terminar por um invariável
passeio de carro aos arrabaldes da cidade.
Os quatro
pândegos, dois rapazes e duas raparigas, armados de algumas garrafas de
Cliquot, foram dar com os ossos na Tijuca quando o dia repontava.
O carro havia
parado, e os libertinos, de taça em punho, sopeavam a rolha do Champagne, prontos
para saudar o primeiro raio de sol que lhes viesse iluminar a orgia daquela
noite perdida. Estavam perto da raiz da serra, numa encosta em que velhas árvores
tranquilas pareciam encolher-se de frio ao orvalhado relento. As montanhas,
como gigantes estendidos ao longo do horizonte, dormiam ainda, agasalhadas nos
seus lençóis de neblina. O repousado aspecto da natureza contrastava com a
feição dissoluta daquela libertinagem ao ar livre. Do grupo dos folgazões evolava-se
um capitoso vapor de loucura em pleno viço, de estroinice em flor, uma forte exalação
de mocidade que ferve e crepita ao doido fogo dos primeiros vícios.
Irradiou o sol e
as taças ergueram-se transbordantes.
— Ao amor! Ao
prazer!
— Hurrah!
O bramido alegre
ecoou na solidão dos vales, e uma das loureiras abriu a cantar uma cançoneta bufa,
acompanhada nos estribilhos, pelos três companheiros.
Entretanto, nessa
mesma direção, outro grupo bem diverso lentamente se aproximava, subindo a
estrada em tardio e cansado passo.
Era naturalmente
algum enfermo acompanhado pela família, que demandava a serra da Tijuca, em
busca de salvação nos ares puros. Vinha na frente uma cadeirinha carregada à moda
antiga por dois negros; ao lado dela, caminhando a pé, guardava-lhe a
portinhola um homem de cabelos brancos e respeitável aparência, o ar solicito e
pesaroso; e, logo atrás, arrastava-se uma velha e triste carruagem de aluguel,
com a cúpula fechada...
O novo grupo parou
defronte do primeiro. Calaram-se os estroinas, e um destes, reconhecendo o
homem que guardava o palanquim, ergueu-se, lívido e trêmulo de emoção. É que,
por aquele velho, podia calcular com segurança quem era a infeliz criatura que
ia ali enferma ou talvez moribunda. E, através das névoas da sua embriaguez, começou-lhe
por dentro a ofegar a consciência, na medrosa previsão de remorsos e vergonha.
Os negros depuseram
no chão o palanquim, desviaram do varal os ombros fatigados e afastaram-se,
para de cansar um instante.
Moveu-se então, a
cortina da portinhola; débil mãozinha arredou-a de dentro com dificuldade, e
uma feminil cabeça loira surgiu à luz dourada da manhã. No rosto, mais pálido
que o de uma santa de cera, fulgaravam-lhe os olhos com estranho brilho.
E esses olhos
deram com os olhos que a fitavam do outro grupo e cintilaram mais forte, num relâmpago
seguido de um grito, que a cortinado palanquim abafou logo.
O moço, que a
custo se conservara de pé no carro, deixou-se cair sobre as almofadas, cobrindo
o rosto com as mãos, enquanto os outros libertinos, esgotando a última taça,
gritaram ao cocheiro que tocasse para a cidade.
O carro disparou.
— Ao amor! Ao
prazer!
— Hurrah!
CAPÍTULO II
Tinham sido namorados. Ele era rico e belo, a moça pobre e de feições modestas.
O namoro fora em casa da família dela, antes do bandoleiro se ter atirado à
vida dos prazeres.
Um dia, depois de
todos os juramentos trocados na linguagem dos olhos e na linguagem dos sorrisos,
ele aproximou a sua cadeira da máquina de costura em que a moça trabalhava, e segredou:
— Se eu tivesse
plena certeza de que me amas!...
Ela estremeceu, e
corou, abaixando os olhos.
Ele prosseguiu no
mesmo tom: — E quanto sofro a pensar nisto!... São vagos desejos incompletos, um
querer sem vontade, um desejar sem ânimo... E, no entanto, minha flor, sinto
que me falta na vida alguma coisa, que talvez não seja só a tua ternura... Se
me perguntarem o que é, não saberei responder... mas sinto que preciso dedicar-me
a qualquer ideal, sacrificar-me por qualquer amor!
Ela deixara de
coser e não levantava o rosto. Ele aproximou mais a sua cadeira e segredou ainda,
tomando-lhe as mãos: —Tu me amas?... Fala!...
A moça estremeceu
mais forte e levantou para o seu amado os olhos transparentes, no fundo dos quais
brilhava agora o reflexo de uma esperança feliz:
— Sim... balbuciou,
enrubescendo.
E por um instante
sua doce alma de donzela sentiu aproximar-se a música do uma confissão de amor.
E seu coração abriu, de par em par, as pétalas viçosas, para recolher a palavra
ambicionada, a palavra insubstituível na vida da mulher. — Amo-te! — o sagrado
“Amo-te” que toda a mulher, para ser feliz, precisa ter ouvido, da boca de um
homem, pelo menos uma vez na existência.
Mas a desejada
palavra não chegou aos ouvidos da moça, nem passaram dos lábios irresolutos do seu
namorado.
Alguém interrompeu
o idílio. A leviana cadeira afastou-se, sem declarar o que tinha a dizer à modesta
maquinazinha de costura.
CAPÍTULO III
Depois que o
bandoleiro se ausentou de todo, a pobre moça ia contando os dias pelos
progressos da sua mágoa. A dor e a tristeza cristalizaram-se em moléstia.
Demais, fora sempre propensa ás afecções pulmonares; a melindrosa
susceptibilidade do seu frágil organismo reclamava, para o milagre da vida, o
milagre do amor.
Como toda moça
casta, sem brilhante prestígio de ouro ou de beleza, fora sempre concentrada e retraída.
Não dividia com outros os seus tímidos desgostos de donzela e as suas humildes
decepções de menina pobre. Um como íntimo recato de orgulhosa fraqueza, um como
consciente pudor da sua imaculada inferioridade, um como decoro da sua virtude
inútil, faziam-na reprimir os soluços diante da família e das amigas,
recalcando em segredo as lágrimas vencidas, que lhe subiam do coração e para o
coração voltavam, sem ninguém que as empreendesse ou enxugasse.
Nunca lhe ouviram
a sombra de uma queixa. Todavia, na sua angelical credulidade, chegara a crer
houvesse, no circo ginástico da vida, alguma coisa entre os homens que não
fosse egoísmo só e vaidade; chegou, pobre inocente a supor que o fato de ser meiga, dócil, virtuosa e pura
lhe valeria o amor do moço pelo seu coração eleito. E, uma vez desiludida, a
sua feminilidade, em vez de expandir em flor o aroma dos vinte anos, fechou-se
em botão, para nunca mais rescender, vencida, como foram vencidas as suas lágrimas.
E também nunca
mais lhe voltaram às faces as rosas que a natureza aí lhe tinha posto para atrair
as asas, dos beijos amorosos; nem aos olhos tão pouco lhe voltaram as alegrias
com que dantes esperavam sorrindo o “Amo-te” sagrado.
Enfermou de todo.
Afinal sua existência era já um caminhar seguro para a morte. O pai
estalava de desespero sentindo fugir-lhe irremissivelmente aquela vida estremecida,
pouco a pouco, como um perfume que se evapora. Ela sorria, resignada. Estava
cada vez mais abatida, mais fraca; parecia alimentar-se só com a muda preocupação
da sua magoa sem consolo. O pai levou-a a princípio para o Silvestre, depois
para a raiz da serra da Tijuca; o médico, porém, à proporção que a moléstia
subia, ordenou que fossem também subindo sempre, em busca de ares mais puros.
E lá iam eles,
como um bando de foragidos, a fugir diante da morte. Só a doente parecia
conformada com a situação, os mais se-maldiziam e choravam. Ela sorria sempre,
sempre triste, com o rosto levemente inclinado sobre o ombro.
Já quase se não
distinguiam as suas falas, e só pelos olhos verdadeiramente se exprimia, que esses
eram agora mais vivos e penetrantes. Às vezes, como se pretendesse desabituar-se
de viver, fugia para um profundo cismar, de que a custo desmergulhava
estremunhada. Pedia desses momentos que lhe abrissem a janela do quarto, e o seu
olhar voava logo para o azul, como mensageiro da sua alma que também não
tardaria, com o mesmo destino, a desferir o voo.
E assim foi que a maquinazinha
de costura para sempre se conservou fechada e esquecida a um canto da modesta
sala de jantar. Nunca mais a leviana cadeira se aproximou dela, para declarar o
que lhe tinha a dizer.
CAPÍTULO IV
— Ao Amor! Ao
Prazer! Hurrah! blasfemou o eco.
E o carro dos
libertinos sumiu-se na primeira dobra da estrada.
O campo recaiu na
sua concentração murmurosa.
A cadeirinha
continuava no ponto em que a depuseram. O sol, ainda brando, derramava-se como
uma bênção de amor, e nuvens de tênue fumo brancacento desfiavam-se no espaço,
subindo dos vales como de um incensório religioso. O céu tinha uma consoladora
transparência em que se lhe via a alma; pássaros cantavam em torno da tranquila
moribunda; ouvia-se o marulhar choroso das cascatas, a súplica dos ventos, a
prece matinal dos ninhos. Toda a natureza parecia em oração.
A moça pediu que
lhe abrissem a porta do palanquim e, reclinada sobre o colo do pai, fitou o
espaço com o seu olhar de turquesa úmida. O azul do céu compreendeu o azul
daqueles olhos celestiais. Houve entre eles um idílio mudo e supremo.
Ninguém em torno
dava uma palavra; só se ouviam os murmúrios da mata, acordando ao sol e os
esgarçados ecos da música dos Meninos Desvalidos que, para além da serra,
tocava a alvorada. A moça continuou a olhar para o azul, como se deixasse
arrebatar lentamente pelos olhos. Encarou longo e longo tempo o espaço, sem pestanejar.
Depois, duas lágrimas apontaram-lhe nas pálpebras imóveis e foram descendo
silenciosas pela palidez das faces. Um sorriso que já não era da terra pairou
um instante à superfície dos seus lábios puros.
Estava morta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...