3/10/2018

Paixão e glória de Castro Alves (Ensaio), de Afrânio Peixoto


Paixão e glória de Castro Alves

No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
 Castro Alves

Tu deixarás na liça o férreo guante
Que há de colher a geração futura.
Castro Alves

Só o que é humano interessa ao homem. Diretamente, quase sempre, indiretamente no que parece escapar a esta regra.

No domínio do sentimento ela não tem exceção. Por isso, a nossa inteligência é vã, quando imagina, e o sonho ou a ficção não comove e não se grava na alma, se em vez da humanidade sensível, se não sentida, deu-nos o artista criação maravilhosa do seu engenho. As cem páginas de Manon Lescaut, Werther, ou Adolfo, sobreviverão às bibliotecas com que o romantismo alastrou pela terra o seu delírio de imaginação, fantasiado e, por isso, efêmero.

É a razão porque aos romances e fábulas dos grandes homens prefere-se o romance ou a fábula que foi e é a vida de um grande homem, que se lê ou se adivinha com maior curiosidade de que os outros que ele escreveu. Não que seja mais verdadeiro, mas será por certo mais verossímil. Toda a gente tem o seu romance, pois que o romance é apenas uma história de amor, e amar é sina do mundo. Raramente a história interessará, se as personagens não forem interessantes: por isso a grande dificuldade do ofício literário está menos em contar a anedota, do que em apresentar e inspirar simpatia humana aos heróis das novelas. Ora, mais fácil será invocar o herói vivido, e que já nos interessa à memória pela sua inteligência, sua bondade, seus feitos, com o que conquistou o direito de se nos impor como exemplar humano, digno de ser admirado. É a razão pela qual as obras de fantasia vão rareando, e as indiscrições sobre a vida íntima dos grandes homens são os romances hoje em dia mais lidos. Que nos importam os cem volumes de George Sand? Com eles conquistou apenas a glória de ser uma personagem no vasto romance do mundo real; o episódio de sua vida nos comove mais do que os milhares de palavras vãs que escreveu com esse destino. Não é impiedade malsã a de revolver cinzas, flores murchas, cartas amarelecidas pelo tempo, recompor com o testemunho, a lembrança, as conjecturas, as adivinhações, essas novelas do passado, porque, não só eles nos encantam como os melhores livros, mas nos dizem menos imperfeitamente de um homem ou um autor do que as apologias, as críticas, os juízos tontos e parciais dos contemporâneos ou sobreviventes. A obra de um sábio será melhor conhecida na história da sua inteligência; a de um estadista na do seu caráter; a de um poeta na do seu coração. A de Castro Alves tem a mais linda história. Propus-me a vô-la recordar, porque ela explica a sua glória. Procurarei fazê-lo com palavras dele: ao menos esses versos queridos que lembraremos juntos, essa peregrinação sentimental que vamos fazer através da sua obra, me alcançarão a vossa indulgência e darão por bem paga a vossa fadiga.


INICIAÇÃO SENTIMENTAL

Musas inspiradoras do poeta: Leonídia Fraga, Agnese Trinci Murri e Ester Amzalack

Data de 1863, tinha apenas 16 anos, a iniciação amorosa.

É bem o primeiro amor, tímido, recolhido, que se desabafa nas estrofes do Meu segredo. O poeta diz que tem um, guarda-o dentro d'alma, receoso do escárnio do mundo. É a Senhora D... que vira talvez num baile, a dona desse amor:

"Criei-o numa noite não dormida,
Após vê-la, entre todas, a rainha.
.....................................
A imagem que eu seguia? É meu segredo!
Seu nome? Não o digo... tenho medo."
Entretanto, prefigura o poeta:

"Que loucura! Aos teus lânguidos olhares,
Beber, louco de amor, seiva de vida...

Sorver perfume em teus cabelos negros,
Sentir a alma de si mesmo esquecida...

E de gozo de amar, louco, sedento,
Viver a eternidade num momento!
.........................................
Que ventura! Fitar-te os negros olhos
Desmaiados de amor e de quebranto...
E reclinada a fronte no teu seio,
Sentir lânguido arfar em doce enleio..."

Mas esses sonhos são loucura... o amante continuará a amar em silêncio; a amada nunca ouvirá sequer uma palavra de amor e menos desmaiará algum dia nos seus braços... Embora por ela viva e tresnoite cismando em suas graças... nada ousará, se treme, só "ao roçar do seu vestido".

Quem foi essa mulher? Ninguém o sabe. Xavier Marques acredita que já seja Eugênia Câmara, que em 63 estreara no Recife, com grande sucesso. A poesia vem datada da Bahia, de junho desse ano, quando aí não estava Castro Alves.

Será errada a data ou o lugar. Seria cômica, aplaudida de longe, ou dama da sociedade, essa dona da trança negra e dos olhos negros? Seja quem for, foi neles, febril e delirante, que o poeta

"Bebeu de amor a inspiração primeira,
Mas de um desengano teve medo,
E guardou dentro d'alma o seu segredo!"

A quem falta essa coragem, e tem ansioso o coração, depara o mundo o amor fácil e, nem por isso, às vezes, menos doloroso. Parece encontrou Castro Alves um desses, pois em 64, nos versos imortais da sua Dalila, chora todas as lágrimas da paixão traída e vilipendiada. Era uma hetaira.

"........Em noite nevoenta,
Ela passou sozinha, macilenta,
Tremendo a soluçar...
.................................
E eu disse-lhe: — Tens frio? — arde minha alma
— Tens os pés a sangrar? — podes em calma
Dormir no peito meu.
.................................
E amamos... Este amor foi um delírio...
Foi ela minha crença, foi meu lírio...
Minha estrela sem véu...
Seu nome era o meu canto de poesia.
Que com o sol — pena de ouro — eu escrevia
Nas lâminas do céu."

Durou pouco, como é sorte desses amores, e o poeta tem, no desengano, aquele mesmo desespero exagerado que Tolstoi atribui às decepções do prazer físico, no início dos primeiros amores...

Mas um dia acordei... E mal desperto
Olhei em torno a mim... Tudo deserto,
Deserto o coração...

Ao vento que gemia pelas franças
Por ela perguntei... de suas tranças
À flor que ela deixou...
Debalde... Seu lugar era vazio...
E meu lábio queimado e o peito frio,
Foi ela que o queimou...

Minh'alma nodoou no ósculo imundo
Bem como Satanás — beijando o mundo —
Manchou a criação;
Simoun — crestou-me de esperança as flores.
Tormenta — ela afogou nos seus negrores
A luz da inspiração..."

Ameaça-a com o bordel, em que terminam ainda as hetairas de luxo, e com a mortalha, que recebe também os que viveram nas orgias... Depois em gesto de clemente generosidade, de quem a si próprio atribui as meias-culpas do amor:

"Não te maldigo, não!... Em vasto campo,
Julguei-te — estrela — e eras pirilampo
Em meio à cerração...
Prometeu — quis dar luz à fria argila...
Não pude... Pede a Deus, louca Dalila,
A luz da redenção!!..."

Quem foi esta? Também não o sabe ninguém, o que não importa suponham ser ainda Eugênia Câmara. Segundo esta e a outra suposição, o poeta teria em 63 medo de lhe confiar o seu segredo, como a vestal cujo recato reconhecia; um ano depois, já amado e desenganado, amaldiçoava a rameira que lhe manchara o coração. Dessa interpretação não há prova. São sentidos, vividos, os acentos da poesia, mas nada diz de tal influição pessoal. Era então Eugênia Câmara artista festejada, que o amor de um estudante de 17 anos — que não se revelara ainda Castro Alves! — não devia exalçar, proteger e menos talvez contentar. Dera-lhe a atriz, apenas, as comparações com as personagens que vivia no palco e eram na ocasião aplaudidas por todo o país: a Lenora de Dalila, de Octavio Feuillet, a Marcô das Mulheres de Mármore, de Barrière e Thiboust, réplicas à Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho, e que negavam, contra este, a redenção das hetairas. A de Castro Alves seria uma dessas, nada provando que fosse a comediante que as representava por esse tempo, percorrendo triunfalmente, de sul a norte, o Brasil. Amigo do poeta o Des. J. J. de Palma crê que se trata antes de uma impressão de teatro: é a opinião que adoto. Na poesia há alusões claras e situações do drama: Rafael, o moço escultor, quando se desenlaça da feiticeira que o empobreceu e degradou, não tem mais gênio nem sensibilidade. O "lábio queimado", o "peito frio", crestadas "as flores da esperança", "afogada a luz da inspiração", nada mais lhe resta, senão morrer.

A não ser, tudo é possível... que Eugênia Câmara que lhe desse desejos e esperanças não correspondidas ou continuadas, com a partida para as suas excursões artísticas, de onde o abandono ou a traição, na mente inflamada do adolescente.

Como quer que tenha sido, ganhara o poeta experiência e, amando, abreviara a idade dos amores. Tímido em 63, desesperado na primeira decepção em 64, vamos achá-lo em 65, nos seus 18 anos, na paz bucólica de um idílio, em que o amor de jovem e formosa mulher não lhe impede realizar também, o coração satisfeito, as suas ambições de poesia e de glória. Regueira Costa narrou a Alfredo de Carvalho o começo dessa amizade depois de uma noite de triunfo do poeta, dos seus primeiros triunfos públicos, com a recitação de O Século, no salão de honra da Faculdade de Direito, em 19 de agosto de 65. "Residia então Castro Alves na rua do Lima, em Santo Amaro, e aí o fui encontrar no doce convívio de sua encantadora Idalina, a preparar o poema d'Os Escravos". "Nessa vivenda, continua Regueira Costa, além de mim e de Fagundes Varela, poucos o frequentavam, não porque se esquivassem de se aproximar do laureado poeta, mas pelo retraimento em que este vivia, obedecendo à influência natural do seu temperamento".

O próprio Castro Alves melhor exprime a razão desse retiro

"O poeta trabalha! A fronte pálida
Guarda talvez fatídica tristeza...
Que importa? A inspiração lhe acende o verso,
Tendo por musa — o amor e a natureza!"


Musas inspiradoras do poeta:  Brasília Vieira e Eugênia Câmara

O amor era essa Idalina, cujo nome não escreve, (poderia acaso escrevê-lo?), a quem chama Julieta, Adalgiza, Ela, enfim, nessa formosa poesia que viria a escrever mais tarde, em 70, e em lugar distante, no Curralinho, com a saudade do coração, que não esquece, lembrando por epígrafe aqueles outros versos de Fagundes Varela, o qual conhecera a musa encantadora da casinha de Santo Amaro:

"Pensava em ti nas horas de tristeza
Quando estes versos pálidos compus."

D. Adelaide de Castro Alves Guimarães, a dileta irmã do poeta, mo testifica. "Em Pernambuco, diz-me ela, ligou-se a uma moça, chamada Idalina. Amores ligeiros, passados em uma casinha pitoresca, fora da cidade. São as Aves de Arribação uma reminiscência desse episódio amoroso". Entretanto, a obsessão de Eugênia Câmara, fez acreditar a mais de um biógrafo que ainda essa poesia lhe era devida como inspiração.

Foi uma doce aventura, destinada a durar pouco, amores de aves de arribação, que encheriam essas férias de 65 e com elas se acabariam na primavera próxima, chamados aos deveres abandonados. É um quadro delicioso que ele descreve:

"Era o tempo em que as ágeis andorinhas
Consultam-se na beira dos telhados,
E inquietas conversam, perscrutando
Os pardos horizontes carregados...

Em que as rolas e os verdes periquitos
Do fundo do sertão descem cantando...
Em que a tribo das aves peregrinas,
Os Zíngaros do Céu formam-se em bando!

Viajar! viajar! A brisa morna
Traz de outro clima os cheiros provocantes
A primavera desafia as asas,
Voam os passarinhos e os amantes!"

Foi assim, que

"Um dia Eles chegaram. Sobre a estrada
Abriram-se à tardinha as persianas;
E mais festiva a habitação sorria
Sob os festões de trêmulas lianas."

Quem eram? Donde vinham?... — Pouco importa
Quem fossem da casinha os habitantes.
— São noivos: — as mulheres murmuravam!
E os pássaros diziam: — são amantes!

Ela era risonha, tinha os olhos brandos, os cabelos ondados faziam inveja às "lianas" e, como eram moços, "o idílio cantava noite e dia": é o poeta, indiscreto, como todos os amorosos, quem o diz:

"E a casa branca à beira do caminho
Era asilo do amor e da poesia.

Quando a noite enrolava os descampados,
O monte, a selva, a choça do serrano,
Ouviam-se, alongando a paz dos ermos,
Os doces sons, plangentes, de um piano.

Depois, suave, plena, harmoniosa,
Uma voz de mulher se alevantava...
E o pássaro inclinava-se das ramas
E a estrela do infinito se inclinava."

Quando não cantavam, não riam, não se amavam na casinha, saíam juntinhos às tardes, para vê-las morrer e buscarem ao amor uma melancolia. Aos felizes vai bem, por contraste, uma pontinha de tristeza:

"O crepúsculos mortos! Voz dos ermos!
Montes azuis! Sussurros da floresta!
Quando mais vós tereis tantos afetos,
Vicejando convosco em vossa festa?...

E o sol poente inda lançava um raio
Do caçador na longa carabina...
E sobre a fronte dela por diadema
Nascia ao longe a estrela vespertina."

À noite, enquanto ela dormia, velava o poeta... e nessas vigílias começou Castro Alves a compor o poema d'Os Escravos, que foi a sua maior aspiração e a sua glória, de apóstolo da libertação de uma raça inteira de oprimidos.

"Hoje a casinha já não abre a tarde
Sobre a estrada as alegres persianas.
Os ninhos desabaram... no abandono
Murcharam-se as grinaldas de lianas.

Que é feito do viver daqueles tempos?
Onde estão da casinha os habitantes?
A Primavera que arrebata as asas...
Levou-lhe os passarinhos e os amantes."

Ficou apenas a saudade e a recordação nesses versos, dos mais formosos que escreveu Castro Alves. Por mim, não me esquece também essa encantadora Idalina, que deu ao poeta a serena felicidade para realizar a sua obra e cuja suave lembrança é tão vivaz que lhe inspira, ainda depois do tumulto de outros amores, esses versos deliciosos, que nos dão por ela uma doce ternura comovida.


O GRANDE AMOR

Caricatura da atriz Eugênia Câmara, feita pelo próprio poeta

Em 66 é que hei de colocar o fato culminante da vida amorosa de Castro Alves: a sua paixão por Eugênia Infante da Câmara, a artista portuguesa que percorria o Brasil desde 58, que ele conheceu, e talvez aplaudisse de antes, se apenas isso, aí mesmo no Recife. Tenho as minhas razões. Por elas discordo de Múcio Teixeira que, embora sem ousar nomeá-la, descreve cena de fascinação do poeta pela "Dama Negra", como lhe chama, tomando o apelido a Castro Alves (no Gondoleiro do Amor e outras poesias), acontecida em 62, teria 15 anos, na cidade da Bahia. Transfere Xavier Marques a cena do coup de foudre para o ano imediato, pois nesse de 62 nem Castro Alves nem Eugênia estavam na Bahia, e transfere-a para o Recife, onde estreia em 63 a Companhia Dramática do ator Furtado Coelho, da qual era "estrela" aquela atriz. Xavier não aduz provas nesse sentido, a não serem as alusões do Meu Segredo, da Dalila e até reminiscência das Aves de Arribação, que nada dizem sobre o caso e até se dirigem, duas pelo menos, a outras pessoas. Tenho razões, repito, e essas positivas, para colocar em 66 a paixão de Castro Alves por Eugênia, que estreara em Lisboa, em 52, no Ginásio, "onde fez bela carreira", diz Sousa Bastos, veio ao Brasil em 58, ao Rio de Janeiro, "onde agradou muito, não só aqui, como em todos os teatros do Império", que percorreu. Com efeito, encontram-se traços de sua passagem em Santos (60), em São Paulo (61), em Santa Catarina nesse mesmo ano, no Recife, finalmente, em 63. Aí, sempre com a sua companhia e o seu repertório, produz grande sucesso, mas não se detém: no fim deste ano está no Pará, onde começa o de 64, chegando em março ao Ceará. Eugênia Câmara, autora de um livro de versos, Esboços poéticos, publicados em Portugal, faz deles uma segunda edição sob o título Segredos d'alma, impressos em Fortaleza, em 64. Nesse volume publica também várias poesias a ela dedicadas "durante as suas viagens no Império do Brasil". Aí estão versos de Augusto Emílio Zaluar, de Fagundes Varela, de Vitoriano Palhares e outros menos conhecidos, de Santos, de São Paulo, do Recife, do Pará. Nada de Castro Alves. Seria possível fosse o poeta discreto com a mulher de sua adoração, não lhe manifestando o entusiasmo, que outros não encobriam, e ele mesmo, mais tarde, viria a proclamar, de público, em 66?

Também não creio que se Castro Alves houvesse feito versos a Eugênia, não os publicasse ela, entre e com os outros. Não é crível que se a cristalização, para falar como Stendhal, se tivesse já operado nesse tempo, fosse o poeta reservado ou a cômica discreta: concluo que, em 64, ainda nada havia entre os dois, a não ser os aplausos e talvez os desejos de um tímido rapaz à atriz festejada, da qual se não aproximara intimamente.

A minha segunda razão é que, em 65, houve a Idalina, a encantadora Idalina da casinha de Santo Amaro, onde Regueira Costa e Fagundes Varela a encontraram amando o poeta, que escrevia Os Escravos. Não é de crer que se Castro Alves amasse Eugênia desde 63, se tivesse mostrado, além de indiferente à sua glória, silencioso à própria paixão, para em 64 lhe exprobrar como monstruoso crime tê-lo deixado, ele que sabia ser fado dos artistas em excursão peregrinarem de déu em déu: a Dalila é exaltação injusta, ou não é a atriz portuguesa. Seria ilógico ainda, ele que sabia queixar-se dessa infidelidade nela, consolar-se facilmente, pouco depois, na casinha de Santo Amaro, "tendo por musa o amor e a natureza".

É exato que estou pondo lógica nessas cousas de amor, onde, parece, ela nunca existiu: as razões opostas são entretanto sem nenhuma coerência. Como foi ela, a comediante, a grande paixão de Castro Alves, todos os fatos obscuros de sua vida amorosa, todas as discordâncias de data desses seus romances de coração são sumariamente resolvidos, com a atribuição a Eugênia Câmara.

Finalmente, a terceira razão, que acredito a mais poderosa, senão decisiva. Ela se funda num testemunho, digno do maior crédito, o do Snr. Des. Sousa Pitanga, amigo íntimo do nosso poeta, e contemporâneo dele no Recife, desde o começo de 66, quando para aí fora concluir os seus preparatórios. Estava então Castro Alves no seu 2º ano e já era o poeta consagrado na academia, nos saraus, nos espetáculos públicos: o seu jovem patrício, recém-chegado, acompanhava com simpatia e admiração essa glória precoce. Foi desse ano a campanha teatral que dividiu os estudantes, a sociedade e o público em geral, em favor de duas atrizes, dois partidos, como, tantas vezes, viram os teatros do Brasil. Sousa Pitanga não podia esquecer, pois, os fatos e a data precisa deles: é no ano de 66.

Eugênia viera do norte do Brasil, de uma das suas excursões artísticas, diretamente do Natal ao Recife, na companhia de um amante, seu patrício, Veríssimo Chaves, guarda-livros abastado, dado às letras, e que convivia com a mocidade inteligente da época. Depois dos espetáculos e das festas havia ceias alegres, comparsas eram jornalistas e estudantes, poetas e oradores, todos entusiasmados pela atriz, também poetisa e que os seduzia nos seus estos arroubados da Dalila, da Onfália, das Mulheres de Mármore... Foi então que, antigo admirador, se aproximou Castro Alves da comediante e daí, dessa assiduidade, que se gerou a paixão mútua que os prendeu, aos dois, nos seus elos de fogo... ao menos durante algum tempo. É fato que por ele abandonou o outro amante, e com ele foi morar numa casinha do Barro, povoação acima de Afogados, caminho de Tijipió e Jaboatão. Os comentários e os doestos não faltaram — os que os amantes felizes têm sempre — e na roda dos antigos convivas, agora desfeita, até as vivacidades armadas, uns porque condenavam o ato do Castro, outros porque os justificavam: assim, por exemplo, aconteceu entre o estudante Manuel Pedro Cardoso Vieira, depois deputado geral pela Paraíba, e o letrado português Belmiro Salgado, certa noite, depois do espetáculo.

Portanto, em 66, Castro Alves se apaixona, e é correspondido, por Eugênia Câmara, que tão forte influência teve sobre o seu gênio e na sua vida. Tinha ele então 19 anos e era o mais formoso rapaz, o mais belo homem que se pode imaginar. Alto, forte, esbelto, de tez levemente morena, ampla testa, olhos negros rasgados e pestanudos, nariz direito, lábios sensuais, sombreados por um buço arrogante, linda boca, queixo dominador e, sobretudo, na cabeça poderosa a coma negra, retinta, luzidia, de basta e longa cabeleira, cuja sedução ele conhecia. Conta-se que muitas vezes, ao sair de casa, penteava-a com afago e com os dedos entreabertos da mão, e ajeitando na cabeça o custoso chapéu do Chile dizia, sorridente:

— Tremei, pais de família! D. Juan vai sair!

A voz quente, de notação grave, abaritonada, máscula e melodiosa, sabia corresponder ao gesto e à presença, quando dominava as multidões, da academia ou do teatro, presas aos acentos de bronze das suas estrofes. Fossem a Visão dos mortos, Pedro Ivo, O Século... o entusiasmo era o mesmo, e indescritível.

Se os homens não lhe regateavam aplausos, como resistiriam as mulheres aos agrados? A Eugênia Câmara, pelo muito mal que dela se há de dizer, não se lhe negará que não resistiu e o amou, como pôde e quanto pôde. (Caberia aqui a palavra do cético: os homens põem a eternidade no amor, diz Anatole France, não é culpa das mulheres...) A prova é que por ele, simples estudante, abandonou o amante rico, e pelo conforto da cidade trocou a casinha do Barro; a prova é que mais tarde, quando a companhia Furtado Coelho embarcava para a Bahia, "com todo o seu elenco, diz Xavier Marques, ela ficou. E ficou por amor do poeta, e para ele". Trocava por ele empresário amigo

e esperançado, antigo amante talvez, pois diziam que era sua uma filhinha que a acompanhava; em todo o caso, perdia novas glórias e   outras fortunas ou aventuras. Por enquanto bastava-lhe o poeta.

Ele ama-a e de público celebra-lhe o talento no Voo do gênio, que é de maio, e A uma atriz (no seu benefício), em setembro de 66. Nesses, alude à guerra que dividia a plateia do teatro de Santa Isabel; alguns partidários da atriz Adelaide do Amaral, chefiados por Tobias Barreto, menos numerosos, e por isso mais violentos, que desafiavam o outro partido, a favor de Eugênia Câmara, encabeçado por Castro Alves, mais fervorosos e entusiastas. Ficou memorável essa campanha artística, a que não faltou, na regra, o doesto e a invectiva. Consola o nosso poeta a sua dama de algum agravo, dizendo-lhe:

"Do gênio a maior grandeza
O ser divino é sofrer."

Na hora das aclamações havia de sentir:

"Longe os silvos das serpentes,
Que tentam morder-te os pés..."

A razão, e de uma filosofia profunda, ele a diz ainda:
"Ai! quem sobe ao Capitólio
Vai precedido de pó..."

Haverá exagero sobre esse gênio e essa glória. Naquele tempo, para tal mocidade, não havia outros epítetos para as famas do teatro: não é só Castro Alves, são todos os poetas e oradores, para todos os artistas de algum merecimento. Um dessa geração, Manuel Vitorino, embora vice-presidente da República, virá dizê-lo a uma atriz peregrina. Nós de hoje perdemos, com o entusiasmo às cousas do palco, a compreensão desses arrebatamentos: ficou-nos por consolo a compostura.

Mais queridas ainda que as representações teatrais, eram as cômicas que representavam: dos sorrisos e aplausos trocados germinavam paixões. Isto explica talvez uma das razões da de Castro Alves.

Embora Fagundes Varela em São Paulo dissesse, em 61, a Eugênia

Tens no rosto a beleza, o gênio n'alma
Linda flor d'além mar...

ela não era bonita. Ainda que Stendhal prove que todos os atores e atrizes que nos comovem ou nos entusiasmam têm beleza, o reparo constante, como que surpreso, que acode a biógrafos e testemunhos, quando referem a paixão de Castro Alves, é sempre este... ela não era bonita! Como se amadas fossem apenas as mulheres bonitas, quando, quase sempre, não são as mais amáveis. Raramente dessas se fazem as grandes amorosas. As feias sabem mais amar e esta é sempre a melhor condição para ser amada. Sirva de exemplo Julie de Lespinasse. Demais, no jogo ou na guerra do amor, cumpre não esquecer o antagonista. Os bonitos não são exigentes e, em caso de formosura, satisfazem-se com a própria, pedindo apenas ao parceiro compensação, de outra natureza. Castro Alves tinha beleza para dois.

Se não era bonita, também não seria feia: Eugênia era graciosa e travessa, experimentada na vida e na galantaria, mulher feita e bem feita, iniciadora preciosa e apreciada de um adolescente, belo e sedutor como um semideus, que por ela, e com ela, abreviaria todas as provações de uma grande vida sentimental. Que precisavam de mais?

A diferença de idade — tinha ela 29 anos, ele apenas 19 — não seria oposição; bem pelo contrário. Um dos tipos encantadores da paixão humana é aquele Cherubim, do Mariage de Figaro, cujo amor de menino comove mais que se tivera vinte anos. Estou que chegando à corte de Menelau, à procura do pai, Telêmaco atentaria mais na divina Helena do que na tenra Hermione; essa era a opinião de Jules Lemaître. Na vida, como na ficção: os adolescentes se parecem todos com aquele jovem embaixador de Espanha, cuja nobreza não esperara idade para o cargo, e que dizia nos salões da Princesa de Lieven, a amiga de Guizot, diante de Lady Seymour, a mais nova e radiosa beleza do seu tempo:

— Muito moça e muito fresca... gosto de mulheres um pouco passadas...

Era Eugênia Câmara principalmente, não o esqueçamos, mulher de teatro. Essa condição vale por conjunto de mais encanto e sedução que o de muita beleza peregrina, enquadrada nas serenas e severas relações familiares. São, incontestavelmente, as atrizes as mulheres mais amadas. De tanto solicitadas, para o pendor mais fatal da natureza, para a única inclinação natural do sexo, é incompreensível que não acabem na galantaria, como aliás é a regra, tão difícil é não contentar a alguns dos inúmeros que as desejam. Estes também têm as suas razões, das quais a maior é sem dúvida aquela que o futuro Marquês de Três Rios definia, pitorescamente, no camarim de uma delas, a bela Ada Adini, quando, entre dois chamados à cena, lhe gozava das carícias, ao som de estrepitosos aplausos, cujo eco lhes chegava da plateia:

— Parece que é a mim que eles estão aplaudindo...

Esse amor lhe deu à vida, até aí reservada e discreta, a despeito de alguns triunfos, de academia ou de teatro, vibração nova e intensa. Da "república" da rua do Hospício passou a morar com Eugênia, na casinha do Barro. Acompanhava-a aos espetáculos, depois às ceias alegres, "gastando em duas ou três noites a mesada," dando à amante, travessa e licenciosa, a festa querida de seu temperamento e dos seus hábitos. Depois, tresnoitado, ainda lhe velava o sono, compondo na vigília rimas de amor, odes cívicas, escrevendo o drama Gonzaga ou a Revolução de Minas, que ela devia representar. Eram desleixados a saúde e os estudos, mas o coração ardente do poeta se queimava nas aras do amor, que dele havia de fazer o nosso maior e melhor lírico, ao sopro da paixão pública com que seria o apóstolo da Abolição e da República e, por isso, o nosso mais alto poeta heroico e, até agora, o nosso único poeta épico.

Nesse fim de 66 deu-se uma crise sentimental de que ficaram traços doloridos nos versos do poeta. Eugênia ia embarcar para o Sul com a sua Companhia: era a separação! Daí os belos versos de Fatalidade (outubro de 66):

"Vai! flor virente! no rumor das festas
Entre esplendores, como o sol viver,
Enquanto eu subo — tropeçando incerto
Pelo patib'lo — que se diz sofrer!..."

A consciência desse horrível desconforto ele a tinha, desde aqueles versos de julho — afastado dela alguns dias, recolhido ao Convento de São Francisco, de onde escrevia Horas de martírio, Amar e ser amado e provavelmente Amemos, todas de uma saudade aflita e de uma terna e ardente necessidade de vê-la e amá-la, ânsia e tortura que se resumem neste apelo:

"Não tardes tanto assim... Esquece tudo
Amemos, porque amar é um santo escudo
Amar e não sofrer..."

e nesta certeza:

"Eu não posso ser de outra... Tu és minha..."

Por isso, por enquanto disso convencida, Eugênia ficou e foi com o poeta viver aqueles Sonhos da Boemia na casinha do Barro, onde nas pausas do amor compôs o drama que ela devia representar (fevereiro de 67).

Assim, até março desse ano, quando deixaram a casinha do subúrbio e a vida do Recife, para continuarem o idílio na Bahia. Com ela se hospeda no hotel Figueiredo, na praça que hoje tem o seu nome, e depois se transfere para a Boa Vista, agora Asilo de São João de Deus, casa de infância, então abandonada pela família do poeta que passara a habitar o palacete do Sodré, onde foi depois o Colégio Florêncio e hoje é o Ipiranga. Continuou a amar e a poetar, vida feliz, airada e folgazã, com amigos e admiradores que logo conseguiu, cuidando principalmente de representar o seu drama. Eugênia se engaja na Companhia que trabalhava no teatro de São João e estreia com pleno sucesso a 20 de junho. Abre-se uma série de noitadas ruidosas, a aplausos e entusiasmos, para a atriz e para o poeta, cujos versos candentes são recitados do palco por ela, e por ele, que assomava, a chamado da multidão, de um dos camarotes da sala, para fazê-la estremecer de aclamações.

Enfim, a 7 de setembro, sobe o Gonzaga à cena, representando Eugênia o papel de Maria, festa literária memorável que consagrou definitivamente Castro Alves, coroado em palco aberto, no delírio da turba que o vitoriava. Teve um triunfo, diz em carta a um amigo íntimo, "como não consta que alguém tivesse na Bahia... vitoriado quanto era possível e coroado; fui além disso levado a nossa casa em triunfo".

Eugênia, além de participar dessa glória, tinha o seu quinhão reservado, pelos admiradores que lhe surgiram, que lhe ofereceram uma coroa de prata no seu benefício, e, quando veio a romper com a companhia do São João, que lhe construíram um teatro improvisado, na baixada do Bonfim, para os seus espetáculos. Descontado o que era devido à artista, ficavam ainda homenagens à mulher. Começou o ciúme a magoar ao amante. Apesar de guardá-la bem na Boa Vista, de afastar dela os importunos admiradores, não raras cenas violentas narram testemunhos, tributo forçado dos zelos, sem os quais, dizem, não há amor que conte.

Reconciliados, davam-se os amantes a novos espetáculos e outras festas, nas quais se passaram os últimos meses de 67. No começo do ano seguinte cumpria seguir para o Sul, a terminar os estudos em São Paulo e, de passagem, conquistar o Rio. Pensava em publicar Os Escravos e o Gonzaga. Com a atriz embarcou em fevereiro de 68 para aqui, onde encantou a José de Alencar e ao escol das letras e da sociedade carioca, produzindo espanto no reticente Machado de Assis, cuja admiração a prazo esperava que a ênfase lhe passasse, com a mocidade. Recitara versos do balcão do Diário do Rio de Janeiro, em cujos salões de honra lera o seu drama a uma assembleia de letrados que o aplaudiram calorosamente. Em março já estava em São Paulo, sempre com Eugênia Câmara.

A mocidade da academia e da imprensa dada às letras e à política, cerca-o, encoraja-o e leva-o a se exibir nas sessões cívicas e comemorativas e nos espetáculos públicos. Testemunha aqui presente, e que me não deixará mentir, contou-me que na sua vida assistira às mais ferventes campanhas do abolicionismo e da república, ouvira os mais inflamados e cultos verbos de que há notícia no Brasil, mas nada se lhe comparou nunca às manifestações do entusiasmo com que era aclamado Castro Alves, recitando a Visão dos mortos ou o Pedro Ivo. "Vinha abaixo o teatro", na frase expressiva dessas ruidosas comunhões de sentimento, quando o poeta, com a sua voz de bronze quente e o seu vulto de jovem semideus, martelava as estrofes ciclópicas dos seus poemas revolucionários.

Distrai-lo-ia a vida mais intensa de ideias, a vida mais dispersiva de sociedade, dos seus cuidados de amor? Pode-se crer. Eugênia procuraria, de outro lado, distrair-se também, com outros amores. Dizem contemporâneos que ela lhe fora sempre infiel, sem por isso deixar de ser constante. Há quem não compreenda essas mulheres, conquanto sejam muito vulgares os homens que correspondem a tais mulheres. Também Manon amava a Des Grieux e, apesar das infidelidades, até o fim não lhe faltou constância: foi por ter copiado da realidade esse tipo de mulher que o Abade Prévost, que a amou e a sofreu, fez obra-prima.

Castro Alves, como todos os apaixonados, veio a sabê-lo muito tarde, só ali em São Paulo, quando, com a experiência da cegueira do amante, foi Eugênia menos cuidadosa na dissimulação. Na Canção do Boêmio, entre risonho e triste, nota de humorismo, que nem essa faltou à sua obra, tornando talvez impessoal o seu caso, ele se revela.

"E tu fugiste, pressentindo o inverno,
Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno
Mesmo eu tomara a primavera a prêmio
.............................................
Se tu viesses, de meus lábios tristes,
Rompera o canto... Que esperança inglória!...
Ela esqueceu o que jurar-lhe vistes
Ó Pauliceia! ó Ponte Grande! ó Glória!"

É, entretanto, apenas impaciência.
"Batem!... Que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços... do martírio a cruz!"

Era o desapego, que antecedia ao abandono. O poeta previa-o e pedia ao sono esquecimento:

"Com teu divino bálsamo
Cala-me a ansiedade?
Mata-me esta saudade
Apaga-me esta dor.
.............................
Mas quando, ao brilho rútilo
Do dia deslumbrante,
Vires a minha amante
Que volve para mim;
Então ergue-me súbito...
É minha aurora linda...
Meu anjo... mais ainda...
É minha amante enfim!"

Viu Castro Alves finalmente o que em São Paulo se via sem nenhum resguardo, e dava comentários brejeiros a toda a mocidade do tempo. O poeta com as reminiscências de alguma cena real viria a descrever essa traição naquela Página de Escola Realista, na qual um namorado moribundo é enganado pela amante, impaciente de passar a outros braços. As cenas se amiudavam, rupturas e reconciliações, desânimos e êxtases líricos, desde agosto, a outubro, quando é representado o Gonzaga por ela, até os primeiros dias de novembro, em que ainda fala dela, em carta a Luís Cornélio.

Teria sido durante aqueles crudelíssimos momentos em que sofreu do corpo e do espírito, noites e dias amargurados que se seguiram ao acidente de caçada, na qual recebera um tiro, empregando-se toda a carga de chumbo no calcanhar? Dessangrado, febril, em risco de perder, senão a vida — o pé, — que veio a perder de fato, — operado, dolorido, acesos padecimentos pulmonares... tudo sofreu o poeta, embora cercado de colegas e amigos... sem ela. Um ano depois, em novembro de 69, aqui no Rio, mutilado, mas não resignado, no doloroso Adeus que lhe dirige, relembra:

"Sabes o que é sepultar-se
Um ano inteiro na dor,
Esquecido, abandonado,
Sem crença, ambição e amor!
Ver cair dia após dia
Sem um riso de alegria
Sem nada, nada, Jesus!
Ver cair noite após noite
Sem ninguém que nos acoite
Ninguém que nos tome a cruz?"

No fluxo e refluxo do coração, que condena e perdoa, que insulta e desculpa, ele escreve sob uma impressão Immensis orbibus anguis e o Tonel das Danaides. Como a índia adormecida à cobra

"Entrega um seio nu, moreno, luzidio,
..........................................
Assim, minh'alma deste o seio (ó dor imensa!)
Onde a paixão corria indômita e fremente!
Assim bebeu-te a vida, a mocidade e a criança
Não boca de mulher... mas de fatal serpente!"

Como o tonel das Danaides, que se não farta nem se enche, assim é o coração da "fria Messalina": é o dela!

"Na gruta do chacal ao menos restam ossos...
Mas tudo sepultou-me aquele amor cruel!"

Na poesia É tarde! ela é a "negra feiticeira", a "libertina, lúgubre bacante"... Na Fabíola, dos Anjos da Meia Noite, ela ainda:

"É sangue que referve-te na taça!
É sangue que borrifa-te estas flores!
E este sangue é meu sangue... é meu... desgraça!"

Entretanto lhe diz Adeus, lembra-se do passado e se comove ao perdão:

"Que saudades que eu tenho do passado,
Da nossa mocidade ardente e amante!
Meu Deus! Eu dera o resto da existência
Por um momento assim, por um instante!"

Amava-a ainda. Ela é que mudara.
"Viste-me e creste um momento
Qu'inda me tinhas amor!...
Pobre amiga! Era lembrança,
Era saudade, era dor!

Obrigado! mas na terra
Tudo entre nós se acabou!
Adeus! É o adeus extremo,
A hora extrema soou!"

E faz-lhe esta confissão a mais íntima e dolorosa que um coração ferido mas não esquecido jamais fez tão sinceramente:

"Quis-te odiar, não pude. — Quis na terra
Encontrar outro amor. — Foi-me impossível.
Então bem disse a Deus que no meu peito
Pôs a gérmen cruel de um mal terrível.

Sinto que vou morrer! Posso portanto
A verdade dizer-te santa e nua:
Não quero mais teu amor! Porém, minh'alma
Aqui, além, mais longe, é sempre tua."

Esse adeus ela o recebeu e a ele responde por carta, que se perdeu, e por versos que se conservam, e são, embora sem beleza, de alguma emoção. Não se consola com o jamais! que ele pronunciou; diz-se descrente da felicidade:

"Pode-se encontrar outra alma
Depois de reinar na tua?"

Relembra a noite fatídica:

"Aquela noite! oh silêncio
Noite de fel e de amor
Em que dentro de duas almas
Houve um poema de dor..."

Apesar disso,

"Eu não me iludo. Eu te amo
Quer na vida, quer na morte;
A um só dos teus olhares
Será tua a minha sorte."

E conclui:

"Adeus! se um dia o destino
Nos fizer inda encontrar
Como irmã ou como amante
Sempre! sempre! me hás de achar!"

Não há que ver! É Manon!... Cada vez que Des Grieux lhe aparecia, era toda dele, como o coração sempre fora, ainda quando se dava a outros. Desgraçadamente os Des Grieux nem sempre compreendem como o corpo se lhes vai, às vezes, a elas, longe do coração. Viria Castro Alves muitas vezes a lembrar-se ainda, mas apenas com a saudade de amor, que dói mais do que as outras saudades:

"Vento frio do deserto
Onde ela está? Longe ou perto?"
Mas como hálito incerto,
— Oh! minha amante, onde estás?...
....................................
E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do norte:
— Oh! minha amante, onde estás?...


ÚLTIMOS AMORES

Embora a grande paixão o ocupasse, sempre ao poeta sobrava tempo e coração, senão apenas estro, para pequenas aventuras de sentimento, flirts, como se diria hoje, que têm entretanto a sua poesia. Assim, em 66, vindo do Recife à terra natal, namorou-se de duas formosas raparigas que moravam perto de casa, duas lindas judias, filhas de Isaac Amzalack, negociante na Bahia, e escreve-lhes A Hebreia, joia de poesia bíblica, que Tobias Barreto ouviria mais tarde rezada em louvor da Virgem, numa igreja do Norte. Mandou-lhes com a dedicatória: à mais bela! o que produz naturalmente discórdia às irmãs, cada qual se julgando com direito à prenda. Coube a Simy, a cujo casamento anunciado para breve não pôde o poeta resistir de despeito, apunhalando-se, à vista dela... com um punhal de papel. Simy Amzalack mereceu esse trecho de Cântico dos Cânticos e estou que hoje me ouvindo, porque deve estar aqui presente, a memória lhe representará, com a suave emoção que dá sempre a saudade da juventude e da beleza, o formoso vate que lhe rendeu o preito dos mais lindos versos que inspirou:

"Ai! guia o passo ao viajor perdido,
Estrela vésper do pastor errante..."

Esther, a outra, teve a sua compensação, de mais amor, talvez. Nos Devaneios, ela é a "pálida madona dos meus sonhos"... "em toda a parte", "meu pensamento segue o passo teu..." O poeta se extasia "à janela", diante da sua "trança solta", das "lindas mãos" que acariciam o piano, que ouve perto, para concluir numa soberba impiedade de apaixonado:

"Oh dize, dize, que inda posso um dia
De teus lábios beber o mel dos céus;
Que eu te direi, mulher dos meus amores
Amar-te ainda é melhor do que ser Deus."

Mais tarde, nos Anjos da Meia Noite, quando a sombra das mulheres que amou o poeta, lhe passa pela memória, lá está ela:

"Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Esther! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro..."

Por São Paulo, em 68, escreveu o Laço de fita:

"Não sabes, criança! Estou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita,
Mas onde? No tempo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me num laço de fita."

Eu preferiria continuar... mas me obriguei a dizer-vos quem é essa formosa Pepita. Contou-me ilustre jurisconsulto, condiscípulo de Castro Alves em São Paulo, o Dr. Sancho de Barros Pimentel, que o vira em aula, ao seu lado, entretido a rimar e corrigir esses versos. Soube então que eram feitos a uma bela rapariga, de nome Maria Carolina, filha do Dr. José Carlos de Almeida Torres e enteada de D. Mariana, sua esposa, irmã de Álvares de Azevedo. Outro depoimento, igualmente fidedigno, de letrado e entusiasta do poeta, o Dr. Antônio Baptista Pereira, refere que o Laço de fita foi feito a Sinhá, linda filha do Dr. Lopes dos Anjos, médico e amigo de Castro Alves, o qual deu a poesia a sua musa, em meio de um baile, na casa paterna, à rua do Imperador, hoje Marechal Deodoro: era companheira da jovem a mãe do depoente, que assistira às emoções dessa leitura deliciosa. Qual das duas realmente é a Pepita? Concluo que ambas, e outras ainda, que não faltariam ao poeta.

Castro Alves seguia neste passo, não o seu hábito, que era dar nomes diversos à mesma amada, mas a usança clássica que veio a ser de Lamartine, o qual só fez versos a uma mulher... neles Graziela é Elvira, Julie Charles também é Elvira... até Miss Birch, depois Madame Lamartine será Elvira, como Elvira foi de fato Mlle. Lamartine. Maria Carolina e Sinhá Lopes dos Anjos foram a Pepita: a fidelidade no amor é mais fácil aos poetas que aos outros mortais.

No Rio, em 69, atravessando as angústias que terminaram na mutilação do pé, cercava-o o carinho dos amigos. Um ex-colega do Recife, inteligente e bom, abastado e generoso, dos seus maiores entusiastas, Luís Cornélio dos Santos (a quem dedicou os lindos versos A Luís) e a esposa, em cuja casa à rua Silva Manuel se hospedara, foram a sua família. Para entreter o poeta martirizado abriu os seus salões a rapazes de talento — entre estes Joaquim Serra, Ferreira de Menezes, Melo de Morais, Rodrigues Peixoto, Monteiro de Azevedo, Benjamim Filgueiras... — e a moças bonitas da sociedade que, com eles, lhe faziam conversa, companhia e diversão literária. Desse Petit Salon, como lhe chamavam discretamente, era Castro Alves soberano, às vezes até do coração das mulheres, às quais inspirava logo ternos sentimentos. Dessas ficaram lembradas Cândida e Laura nos Anjos da Meia-Noite:

"Crianças que trazeis-me a primavera"

Eram, entre menina e moça, ambas formosas e já bem mulheres, pelos sentimentos que moviam e que as comoviam: quanto ao poeta teria o destino de ter sempre o coração a dividir. Uma, Maria Candinha, rosto de santa, "rosa de amor, celestial Maria", inspirou-lhe os deliciosos versos d'Os Murmúrios da Tarde, onde lhe suplica

"Minh'alma é rosa que a geada esfria...
Dá-lhe em teus seios um asilo brando...
Leva-me!, leva-me! ó gentil Maria!..."

Em carta da Bahia diz a um amigo: "E Maria Candinha, a quem cada vez a manhã beija mais linda, continua a ser o riso e a festa dos corações e dos espíritos?" "Dize-lhe que eu por aqui lhe tenho criado a justa reputação de uma das meninas mais interessantes que tenho visto".

Da outra, Cândida de Campos (era seu apelido em casa Dendém), foi a impressão mais profunda; despertou Castro Alves paixão à ardente criatura e dela ainda falava na Bahia com o maior enlevo. "A seu olhar que transbordava em fogo", sentiu-se o poeta reviver:

"E ao doce influxo do clarão do dia
O junco exausto, que cedera a enchente,
Levanta a fronte da lagoa fria...
Mergulha a fronte na lagoa ardente..."

Por isso, nessa Volta da Primavera, que foi para ele esse amor, exclama com exaltação mística:

"...eu digo, ao ver tua celeste fronte,
O céu consola toda a dor que existe..."


Entretanto, não podia o poeta corresponder, ou talvez mostrar que correspondia a estes castos amores: é o que o coração lhe dita, a uma outra apaixonada, desse mesmo grupo, Lalinha Filgueiras, naquela triste poesia É tarde!

"E tu, visão do céu! vens tateando
O abismo onde uma luz sequer não arde?
Ai! não vás resvalar no chão lodoso...
É tarde... É muito tarde!"

Sem esperanças, restar-lhe-ia dizer (a Lalinha ou a Dendém?), que ele chama Dulce nos Anjos da Meia-Noite:

"Mas se tudo recusa-me o fadário.
Na hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer beijando a cruz do teu rosário!..."

Entre estas e com estas há outras. Alguém inspirou aquele delicioso Adeus de Teresa. Ainda há uma Bárbara nos Anjos da Meia-Noite. Quem seriam, das suas três Marias, a da Confidência (de outubro de 65, no Recife: Idalina?) e a da Boa-Noite (de agosto de 68, em São Paulo: Eugênia?) E outras... e outras!... Foram tantas que faz lembrar Sainte-Beuve, quando fala das amadas de Chateaubriand: são como as estrelas do céu — mais a gente as contempla, mais elas aparecem!...

Tornando à Bahia, há um encontro a bordo, numa noite de luar, que o poeta não pode esquecer:

"Inês! nas terras distantes
Aonde vives talvez,
Inda lembram-te os instantes
Daquela noite divina?
Estrangeira, peregrina,
Quem sabe?... Lembras-te, Inês?
..............................
Meus olhos nos teus morriam...
..............................
Não era cumplicidade
Do céu, dos mares? Talvez!
..........................
E como um véu transparente,
Um véu de noiva... Talvez,
Da lua o raio tremente
Te enchia de casto brilho...
E a rastos no tombadilho
Caia a teus pés... Inês!
E essa noite delirante
Pudeste esquecer? — Talvez...
Ou talvez que neste instante,
Lembrando-te inda saudosa,
Suspires, moça formosa!...
Talvez te lembres... Inês!..."

Não terminei ainda... Entre os mais lindos versos de Castro Alves estão certamente O Hóspede e Os Perfumes. Ambas estas poesias são datadas de Curralinho, do ano de 70. Dizia-me o pressentimento que eram inspirados pela mesma criatura. Os Perfumes trazem enigmática dedicatória, "a L". Na correspondência do poeta há uma carta à irmã preferida, na qual ele lhe pede mande a L. a Vida Parisiense. Quem seria? Devia eu tentar sabê-lo. Consegui confidência, que não me autorizou entretanto a dizer tudo. Não sei porquê... Estou que sirvo à história enternecedora desses dois corações, em não ser reservado. L. foi Leonídia Fraga, bonita moça, inteligente e meiga, que o poeta conhecera ainda criança, revira em 65 num namoro inocente e, tornado em 70, a que renuncia, com a morte n'alma.

Ele o diz na poesia Fé, Esperança e Caridade:
"Quando a infância corria alegre, à toa,
Como a primeira flor, que na lagoa
Sobre o cristal das águas, se revê,
Em minha infância refletiu-se a tua...
.......................................
Depois eu te revi... Na fronte branca
Radiava entre pérolas mais franca
A altiva c'roa que a beleza trança!
.......................................
Hoje é o terceiro marco dessa história
Por ti em rosas mudam-se os martírios!"

Fé, Esperança e Caridade que ela foi sucessivamente, podia o poeta dizer na epígrafe que "eram três anjos e uma só mulher". Ela é ainda a Marieta dos Anjos da Meia-Noite:

Furtivos passos morrem no lajedo...
Resvala a escada do balcão discreta...
Matam lábios os beijos em segredo...

Afoga-me os suspiros, Marieta!
Ó surpresa! ó palor! ó pranto! ó medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta!...

Com o disfarce rústico de serrana, é ainda Leonídia quem acolhe "o hóspede" e que lhe pergunta depois, quando ele quer tornar:

"Onde vais, estrangeiro! porque deixas
O solitário albergue do deserto?
O que buscas além dos horizontes?
Porque transpor o píncaro dos montes,
Quando podes achar amor tão perto?...
.....................................
Queres voltar a esse país maldito,
Onde a alegria e o riso te deixaram?
Eu não sei a tua história... mas que importa?...
Boia em teus olhos a esperança morta,
Que as mulheres de lá te apunhalaram.
.....................................
A choça do deserto é nua e fria!
O caminho do exílio é só de abrolhos!
Que família melhor que os meus desvelos?...
Que tenda mais sutil que meus cabelos
Estrelados no pranto de teus olhos?...
.....................................

Talvez tenhas além servos e amantes,
Um palácio em lugar de uma choupana.
E aqui só tens uma guitarra e um beijo,
Co'o fogo ardente do ideal desejo
Nos seios virgens da infeliz serrana!..."

No entanto Ele partiu!... Seu vulto ao longe
Escondeu-se onde a vista não alcança...
Mas não penseis que o triste forasteiro
Foi procurar nos lares do estrangeiro
O fantasma sequer de uma esperança!...

Só depois que ele morreu, ela casou, sem achar entretanto a felicidade, porque veio a enlouquecer. No seu delírio não lhe esquecia o amor passado, conservando todas as relíquias dele — flores, fitas, desenhos e poesias — que lhe segredavam ainda as lembranças do seu poeta. Amor divino, que sobreviveu a duas mortes, do coração amado e da razão amante, que não devíamos omitir sem ingratidão. Essa aventura de Leonídia terá na vida de Castro Alves o cheio suave e terno das flores do campo, entretanto penetrante e vivaz, como o daqueles Perfumes que ela lhe inspirou.

Tornou à Bahia, não a buscar "o fantasma sequer de uma esperança", como ele dizia à sua serrana, mas veio achá-la. Cercou-o no palacete da rua do Sodré não só o carinho da família, mas a admiração de toda a sociedade culta da Bahia. Nem lhe faltou a sua corte predileta, a das mulheres, que o amaram sempre. O seu prestígio era tamanho que, nas festas a que concorria, nenhuma moça se comprometeria a dançar antes que o Castro fixasse a sua escolha. Ele já não dançava, impedido pelo seu pé artificial, dissimulado porém incapaz, mas enquanto os pares revolteavam pelos salões, conversava com a dama que distinguira e que as outras todas invejavam.

Foi nesse meio que se lhe deparou o último amor. Era uma jovem e formosa italiana, atriz que viera com uma companhia lírica e na sociedade da Bahia ficara a ensinar piano e canto. Passados trinta anos, conheci-a, Agnese Trinci Murri, que ainda vive, na Itália — e pude compreender toda a paixão do poeta. Era alta, esbelta, alva como um mármore de Carrara, mãos aristocráticas, olhos e cabelos negros, boca e voz deliciosas — a boca e a voz das florentinas — principalmente tinha o coração sensível e dado à admiração. "Ela foi todo o encantamento, toda a ocupação do derradeiro período da sua existência. Foi a sua Consuelo, com Aquela mão". Consolo em que o coração do poeta pôde aliviado adormecer, coroada a fronte dos louros que ele quisera:

Uma noite sonhei que, em minha vida,
Deus acendia a estrela prometida,
Que leva os Reis ao berço da ventura,
Mas, quando, ao longe da poema estrada,
O suor me escorria da amargura...
Passava em meus cabelos perfumada
Aquela mão tão pura!

Durante um temporal, deslembrado do perigo de coriscos e vagalhões, nela somente pensa:

Que importa o vendaval, a noite, os euros,
Os trovões predizendo o cataclismo...
Se em ti pensando some-se o universo,
E em ti somente eu cismo...

Parecia entretanto inacessível. Num sarau literário, ao escol da Bahia, reunido em casa amiga do Conselheiro Prof. Salustiano Ferreira Souto, Castro Alves recitou ao piano, acompanhado em surdina por sua irmã Adelaide, e em frente

Ela?! bela a fazer a terra inteira louca
Alma feita de um astro! e o corpo de um jasmim

a quem de público fazia a mais efusiva declaração de amor que se pode imaginar, e para quem apaixonado apelava

Só vós, bela diva! da música aos trenos
Meu pálido sonho podeis aquecê-lo
Afogue-se a musa nas asas brilhantes
E se inda tu queres
Sonhar Consuelo
Co'as mãos no piano, co'os olhos no espaço
Trementes os seios, revolto o cabelo
Num mar de harmonias nos leva a Sorrento
Desperta-me a Itália!
Revive Consuelo!

"Um frêmito de entusiasmo percorreu todo o auditório e mais se acentuou quando a eleita erguendo-se palpitante sob a comoção que a dominava chegou-se por sua vez ao piano e

"Na voz clara, sonora, ardente, larga, extensa
Escada de Jacob — prendia a terra ao Céu!"

respondeu-lhe com a balada do "Guarany": "Tutti dobbiamo amar... Não sei de declaração de amor feita com tamanho esplendor" diz-me a irmã do poeta, que para mim evocou a cena.

Entretanto esse amor foi até o fim, como devia ser, casto e respeitoso. O poeta acusa a amada de fria, "bronze" ou "gesso", "mármore florentino", que terá "Remorsos" por lhe ter negado um beijo. Mas ela, pelo respeito à sociedade que a acolhera e estimava, impôs silêncio ao coração e não pôde coroar o amor do poeta com a sagração que merecia e que ela sofreu não lhe dar.

É ela ainda quem lhe inspira Noite de maio, A um Coração, A Virgem dos últimos Amores, Remorsos, Em que pensas, Gesso e bronze...

O poeta poderia entretanto dizer numa das suas últimas poesias:

E — perto de morrer — a amar anseio ainda!...

Esse a que se refere é, porém, o amor sagrado, que ele votou, e lhe foi retribuído, pela mais santa e dedicada das irmãs, que em vida o animou, o protegeu, o admirou, velou-lhe as insônias, consolou-lhe os pesares, deu-lhe a confiança na glória, e, ainda agora, quase cinquenta anos depois que ele se extinguiu, chora-lhe a lembrança, exalta-lhe a memória, com um fervor que só alto e grande coração, digno de gênio de Castro Alves, seria capaz. É Dona Adelaide de Castro Alves Guimarães, a irmã mais querida do poeta, também poetisa, musicista, desenhista, de fino gosto artístico, viúva do Dr. Augusto Álvares Guimarães, amigo e companheiro dedicado de Castro Alves, jornalista de nomeada na campanha liberal da Abolição. Ela será, ainda por longos anos, a zeladora dessa memória sublime, até que seja Castro Alves inteiramente possuído por aquele Último Fantasma dos Anjos da Meia-Noite, que ele vira em sonho, que "buscara do Sul ao Norte", "bela e branca desposada", o eterno amor, — a Glória! — que ele mereceu, e que finalmente alcançou.


A GLÓRIA DE CASTRO ALVES


Ilustração da casa onde o poeta cantou na poesia "Boa Vista"


Castro Alves, não vacilo em o proclamar, é o primeiro poeta nacional: foi o poeta da minha adolescência! Se esta é a razão das nossas preferências durante a vida, segundo a aguda observação de Anatole France, sou imediatamente levado a acrescentar que ele foi, neste meio século, o poeta do maior número de brasileiros, porque nenhum logrou o favor de tantos leitores. Impressionava a José Veríssimo — e agora a Alberto de Oliveira — o número de edições dos versos dele e tanto que, a seu pedido, investiguei uma bibliografia do poeta, que o crítico não chegou a conhecer. Contudo, no seu livro póstumo, a História da Literatura Brasileira lá vêm aludidas "oito ou dez edições" das Espumas Flutuantes, o que faz dizer "poucos livros brasileiros e menos de versos têm sido tão lidos". Veríssimo ficou aquém da realidade, porque, só no Rio, consegui examinar nada menos de vinte e três, mais do dobro da parada, sendo algumas delas, como as de Garnier, de muitos milheiros de exemplares: de todas as suas obras cinquenta edições. Nenhum poeta, nenhum escritor brasileiro, alcançou sequer aproximar-se dele.

Não só é o mais lido dos nossos poetas, como é o melhor e o deles mais intimamente querido. Sacudia Lamartine com desdém os ombros aos seus censores: "tenho por mim as moças e os rapazes!" Além destes, Castro Alves tem ainda as pessoas graves e os homens sisudos. Cada um de nós terá provas deste acerto; cito de passagem dois fatos. Tornava de viagem à Europa e um dos meus companheiros de vapor, sábio de nascença que a vida desviara para a alta finança, apesar da idade e das responsabilidades, recitava-me poesias inteiras de Castro Alves. Ainda há poucos dias ouvi, numa sala severa da Corte de Apelação, venerando juiz e jurisconsulto declamar, a propósito de um incidente da vida sentimental do poeta, as estrofes candentes do Immensis orbibus anguis. Este fervor já tem cinquenta anos e não diminuirá, porque as edições e os eleitores se sucedem, mudados, é verdade, como diria o nosso Constâncio Alves, outro, e dos maiores, devotos do poeta; mas tantas são as razões de admirar que o culto é, e há de permanecer, inalterável.

Acordara cedo Castro Alves. Na adolescência há como que um estonteamento de emoções e de ideias, sensações cuja novidade deliciosa nos tira o sono, pensamentos cuja reflexão não conseguiu ainda exprimir-se em forma precisa. A ênfase será sempre pecado dos vinte anos; a caudal de um talento ainda latente, na represa de ambição que não achou seu caminho, ferve em cachão, e a veia líquida, que primeiro lhe deriva, há de ser turva e revolta. Por isso a mocidade dele — dizia José de Alencar a Machado de Assis, — era uma divina impaciência. Essa ânsia de dizer tudo o que nos sufoca, na expressão de nossas tumultuosas e atrevidas emoções, faz aos jovens não só enfáticos, mas obscuros, apocalípticos, absurdos: nunca mesquinhos. Nem sempre os entendemos: haverá contudo outros moços que os entendam, possuídos do mesmo delírio, o que lhes dá uma clarividência de intuição que a razão estreita não pode explicar.

É por isso que os autores difíceis — as sibilas, os profetas, os místicos, os metafísicos, os simbolistas — têm nos efebos os seus adeptos mais fervorosos, devotos que os compreendem de primeira mão. Não há dificuldades para um cérebro de dezoito anos; nessa idade a admiração prescinde da razão e adora exatamente porque não pode perceber. Não há glória mais duradoira e mais estridente do que a desses autores felizes, porque terão por si a fiel mocidade, eterna, ainda quando arrependida nas idades menos belas e menos tontas, que lhe sucedem.

A ênfase de Castro Alves era porém compreendida por todos, pois que o país atravessava todo ele a sua crise de puberdade, com as veemências do romantismo literário, com a exaltação humanitária do abolicionismo, com a idealização liberal da república...de sorte que aquelas "bombas" atiradas à multidão repercutiam em ânimos preparados nos ecos retumbantes da vitória e da aclamação.

O seu público, a multidão das praças e dos teatros, não desejava senão isso. De Bocage, o improvisador popular, disse Garrett: "mais ele repetia eternidade, orbes, fúrias, górgonas, mais dobrava o aplauso, delirava ele, mais o admiravam; ao cabo nem ele a si, nem os outros a ele, o entendiam". O nosso Castro Alves era sentido, se não entendido, quando se arroubava e arrebatava os outros, clamando pelo porvir, no arrebol, ao infinito, sobre os Andes, para a amplidão... Contudo, a imagem nunca lhe saiu ridícula, ainda quando absurda. O Jeová que fez a América é "um estatuário de colossos". O continente que desperta, "molhado ainda do dilúvio, tem "os Andes petrificados", "como braços levantados" "que apontam para a amplidão", isto é, que lhe apontam para a sublimidade dos seus ideais. "O livro é um audaz guerreiro, que conquista o mundo inteiro, sem nunca ter Waterloo". "Num poema amortalhado, nunca morre uma nação". "Quando o tempo entre os dedos, quebra um século, uma nação, encontra nomes tão grandes, que não lhe cabem na mão". "O motim, Nero profano, no ventre da cova, insano, mergulha os dedos cruéis. Da guerra nos paroxismos, se abismam mesmo os abismos e o morto morre outra vez!" A noite e os astros, debruçados do céu, contemplam a pugna da Independência. É "o inglês, marinheiro frio, que ao nascer no mar se achou, porque a Inglaterra é um navio, que Deus na Mancha ancorou". A França é muito pequena "p'ra conter tantos heróis". "A terra é como um inseto friorento, dentro da flor azul do firmamento, cujo cális pendeu!"

E sempre assim, para falar como ele, proceloso, magnífico, divino! Com esse verbo heroico e genial fez a campanha da abolição, maior que Pedro II, que Paranhos, que Nabuco, porque falas do trono, leis preparatórias, arengas parlamentares, não moveram tanto a opinião nacional, de adultos endurecidos no egoísmo do interesse, como esses versos martelados em bronze, essas rimas estreladas de pranto, que se dirigiam aos adolescentes e às mulheres, idade e sexo do entusiasmo e da generosidade, preparando então essa aspiração nacional — que não o era então — a abolição da escravatura, — mas que viria a sê-lo, de fato, dez a vinte anos depois. Os jovens brasileiros do tempo de Castro Alves, e depois dele, tocados da sua graça, contaminados de seus arroubos liberais, formaram duas décadas após, a geração dos libertadores.

Depois de servir à causa nacional com que foi o único poeta heroico que possuímos, ainda o gênio lhe sobrou para servir a própria causa, coroando-se o maior dos nossos poetas líricos. Demonstrou José Oitica, dos mais lúcidos de seus críticos, que dele provem, e ele melhor representa, a poesia genuinamente nacional. Indianista, colonial, portuguesa, arcádica, clássica... o que quiserem... até aí, com os que o precederam, só com ele é verdadeiramente brasileira. Apenas Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, com sinceridade, mas sem o mesmo prestígio, se aproximaram dele.

Pela primeira vez a nossa natureza refletiu-se em estrofes magníficas. Contaram-me que um dia, a Eça de Queiroz, lera Eduardo Prado as Aves de Arribação:

Às vezes, quando o sol nas matas virgens
As fogueiras das tardes acendia...

O grande artista deteve o outro, para exclamar:

— Ai está, em dois versos, toda a poesia dos trópicos!

Nos outros, em muitos dos outros de Castro Alves, está toda a poesia do Brasil. Poesia inata, vivida, sentida, não imitada de livros lusitanos, ou copiada de modas francesas, como esses versos sem poesia que tanto por aí encontramos.

Que flores de ouro pelas veigas belas!
Foi um anjo com a mão cheia de estrelas
Que na terra as perdeu.
..........................................
A surdina da tarde ao sol, que morre lento...
..........................................
Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo.
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto
Ontem à tarde quando o sol morria
..........................................
Estava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina...

Poderia multiplicar os exemplos. Se em vez dos quadros da natureza, interrogarmos a elevação do pensamento, ficamos espantados dessa facilidade do conceito filosófico que nos mostra um mundo interior tão formoso quanto o outro que via cá fora o poeta. Poetas filósofos teríamos a louvar outros — Antero do Quental ou Raimundo Correia, — porém não é isto a que nos referirmos, mas à produção surpreendente que das imagens e dos fatos é librada logo a uma ideia geral, lei ou conceito moral, de uma beleza às vezes incomparável: em nossa língua, só Camões se lhe compara nesse talento. O gênio é com o Ahasverus:

Invejado! a invejar os invejosos...
.....................................
E sempre a caminhar... sempre a seguir...
.....................................
Mas quando a terra diz: — Ele não morre"
Responde o desgraçado: — Eu não vivi..."
.....................................
... aos heróis — aos miseráveis grandes
Há duas coisas neste mundo santas
O rir do infante e o descansar do morto...

Pois eu sei que o filho torpe
Faz o morto soluçar...
.....................................
Quando o tempo entre os dedos
Quebra um séc'lo, uma nação,
Encontra nomes tão grandes
Que não lhe cabem na mão!

O século — traça que medra
Nos livros feitos de pedra
Rói o mármore cruel
.................................
O tempo — Átila invisível
Quebra com a pata insensível
Sarcófago e capitel.
.................................
E me curvo no túmulo das idades
Crânios de pedra cheios de verdade
E da sombra de Deus.
.................................
P'ra nós o vento da espr'ança
Traz o pólen do porvir...
.................................
O óleo que lava os pés do Cristo
É uma reza também de pecadora
.................................
...ser formosa é ser melhor ainda
E se és boa — és luz... mas, se formosa, estrela

Pôde por isso Antônio Nobre chamá-lo "o primeiro poeta brasileiro": sem contradição válida dos contemporâneos.

Para compreender esse prodígio de expressão das cenas da natureza, da elevação do pensamento, das intimidades do coração, em rapaz que viveu apenas vinte e quatro anos, num terço dos quais realizou essa obra maravilhosa que ainda agora nos comove e nos entusiasma, pensei que a beleza e o gênio, com que nasceu, e se lhe desenvolveram no seu torrão, tiveram seu desabrochar e sua maturidade apressados pelo amor, com que viveu, gozou e sofreu, como se tivera longa vida e esforço de sobra, para traduzir fielmente seus encantos e mágoas.

Foi só por isso, para vos proclamar uma, que eu quis por miúdo vos dizer da outra, que a explica, e a faz entender, que vos entretive aqui sobre a Paixão e a Glória de Castro Alves.

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