No
seio da mulher há tanto aroma...
Nos
seus beijos de fogo há tanta vida...
Castro Alves
Tu
deixarás na liça o férreo guante
Que
há de colher a geração futura.
Castro Alves
Só o que é humano interessa ao homem.
Diretamente, quase sempre, indiretamente no que parece escapar a esta regra.
No domínio do sentimento ela não tem
exceção. Por isso, a nossa inteligência é vã, quando imagina, e o sonho ou a
ficção não comove e não se grava na alma, se em vez da humanidade sensível, se
não sentida, deu-nos o artista criação maravilhosa do seu engenho. As cem
páginas de Manon Lescaut, Werther, ou
Adolfo, sobreviverão às bibliotecas
com que o romantismo alastrou pela terra o seu delírio de imaginação,
fantasiado e, por isso, efêmero.
É a razão porque aos romances e
fábulas dos grandes homens prefere-se o romance ou a fábula que foi e é a vida
de um grande homem, que se lê ou se adivinha com maior curiosidade de que os
outros que ele escreveu. Não que seja mais verdadeiro, mas será por certo mais
verossímil. Toda a gente tem o seu romance, pois que o romance é apenas uma
história de amor, e amar é sina do mundo. Raramente a história interessará, se
as personagens não forem interessantes: por isso a grande dificuldade do ofício
literário está menos em contar a anedota, do que em apresentar e inspirar
simpatia humana aos heróis das novelas. Ora, mais fácil será invocar o herói
vivido, e que já nos interessa à memória pela sua inteligência, sua bondade,
seus feitos, com o que conquistou o direito de se nos impor como exemplar
humano, digno de ser admirado. É a razão pela qual as obras de fantasia vão
rareando, e as indiscrições sobre a vida íntima dos grandes homens são os
romances hoje em dia mais lidos. Que nos importam os cem volumes de George
Sand? Com eles conquistou apenas a glória de ser uma personagem no vasto
romance do mundo real; o episódio de sua vida nos comove mais do que os
milhares de palavras vãs que escreveu com esse destino. Não é impiedade malsã a
de revolver cinzas, flores murchas, cartas amarelecidas pelo tempo, recompor
com o testemunho, a lembrança, as conjecturas, as adivinhações, essas novelas
do passado, porque, não só eles nos encantam como os melhores livros, mas nos
dizem menos imperfeitamente de um homem ou um autor do que as apologias, as
críticas, os juízos tontos e parciais dos contemporâneos ou sobreviventes. A
obra de um sábio será melhor conhecida na história da sua inteligência; a de um
estadista na do seu caráter; a de um poeta na do seu coração. A de Castro Alves
tem a mais linda história. Propus-me a vô-la recordar, porque ela explica a sua
glória. Procurarei fazê-lo com palavras dele: ao menos esses versos queridos
que lembraremos juntos, essa peregrinação sentimental que vamos fazer através
da sua obra, me alcançarão a vossa indulgência e darão por bem paga a vossa
fadiga.
INICIAÇÃO SENTIMENTAL
Data de 1863, tinha apenas 16 anos, a
iniciação amorosa.
É bem o primeiro amor, tímido,
recolhido, que se desabafa nas estrofes do Meu
segredo. O poeta diz que tem um, guarda-o dentro d'alma, receoso do escárnio
do mundo. É a Senhora D... que vira talvez num baile, a dona desse amor:
"Criei-o
numa noite não dormida,
Após
vê-la, entre todas, a rainha.
.....................................
A
imagem que eu seguia? É meu segredo!
Seu
nome? Não o digo... tenho medo."
Entretanto,
prefigura o poeta:
"Que
loucura! Aos teus lânguidos olhares,
Beber,
louco de amor, seiva de vida...
Sorver
perfume em teus cabelos negros,
Sentir
a alma de si mesmo esquecida...
E
de gozo de amar, louco, sedento,
Viver
a eternidade num momento!
.........................................
Que
ventura! Fitar-te os negros olhos
Desmaiados
de amor e de quebranto...
E
reclinada a fronte no teu seio,
Sentir
lânguido arfar em doce enleio..."
Mas esses sonhos são loucura... o
amante continuará a amar em silêncio; a amada nunca ouvirá sequer uma palavra
de amor e menos desmaiará algum dia nos seus braços... Embora por ela viva e
tresnoite cismando em suas graças... nada ousará, se treme, só "ao roçar
do seu vestido".
Quem foi essa mulher? Ninguém o sabe.
Xavier Marques acredita que já seja Eugênia Câmara, que em 63 estreara no
Recife, com grande sucesso. A poesia vem datada da Bahia, de junho desse ano,
quando aí não estava Castro Alves.
Será errada a data ou o lugar. Seria
cômica, aplaudida de longe, ou dama da sociedade, essa dona da trança negra e
dos olhos negros? Seja quem for, foi neles, febril e delirante, que o poeta
"Bebeu
de amor a inspiração primeira,
Mas
de um desengano teve medo,
E
guardou dentro d'alma o seu segredo!"
A quem falta essa coragem, e tem
ansioso o coração, depara o mundo o amor fácil e, nem por isso, às vezes, menos
doloroso. Parece encontrou Castro Alves um desses, pois em 64, nos versos
imortais da sua Dalila, chora todas
as lágrimas da paixão traída e vilipendiada. Era uma hetaira.
"........Em
noite nevoenta,
Ela
passou sozinha, macilenta,
Tremendo
a soluçar...
.................................
E
eu disse-lhe: — Tens frio? — arde minha alma
—
Tens os pés a sangrar? — podes em calma
Dormir
no peito meu.
.................................
E
amamos... Este amor foi um delírio...
Foi
ela minha crença, foi meu lírio...
Minha
estrela sem véu...
Seu
nome era o meu canto de poesia.
Que
com o sol — pena de ouro — eu escrevia
Nas
lâminas do céu."
Durou pouco, como é sorte desses
amores, e o poeta tem, no desengano, aquele mesmo desespero exagerado que Tolstoi
atribui às decepções do prazer físico, no início dos primeiros amores...
Mas
um dia acordei... E mal desperto
Olhei
em torno a mim... Tudo deserto,
Deserto
o coração...
Ao
vento que gemia pelas franças
Por
ela perguntei... de suas tranças
À
flor que ela deixou...
Debalde...
Seu lugar era vazio...
E
meu lábio queimado e o peito frio,
Foi
ela que o queimou...
Minh'alma
nodoou no ósculo imundo
Bem
como Satanás — beijando o mundo —
Manchou
a criação;
Simoun
— crestou-me de esperança as flores.
Tormenta
— ela afogou nos seus negrores
A
luz da inspiração..."
Ameaça-a com o bordel, em que terminam
ainda as hetairas de luxo, e com a mortalha, que recebe também os que viveram
nas orgias... Depois em gesto de clemente generosidade, de quem a si próprio
atribui as meias-culpas do amor:
"Não
te maldigo, não!... Em vasto campo,
Julguei-te
— estrela — e eras pirilampo
Em
meio à cerração...
Prometeu
— quis dar luz à fria argila...
Não
pude... Pede a Deus, louca Dalila,
A
luz da redenção!!..."
Quem foi esta? Também não o sabe
ninguém, o que não importa suponham ser ainda Eugênia Câmara. Segundo esta e a
outra suposição, o poeta teria em 63 medo de lhe confiar o seu segredo, como a
vestal cujo recato reconhecia; um ano depois, já amado e desenganado,
amaldiçoava a rameira que lhe manchara o coração. Dessa interpretação não há
prova. São sentidos, vividos, os acentos da poesia, mas nada diz de tal
influição pessoal. Era então Eugênia Câmara artista festejada, que o amor de um
estudante de 17 anos — que não se revelara ainda Castro Alves! — não devia
exalçar, proteger e menos talvez contentar. Dera-lhe a atriz, apenas, as
comparações com as personagens que vivia no palco e eram na ocasião aplaudidas
por todo o país: a Lenora de Dalila,
de Octavio Feuillet, a Marcô das Mulheres de Mármore, de Barrière e
Thiboust, réplicas à Dama das Camélias
de Alexandre Dumas Filho, e que negavam, contra este, a redenção das hetairas.
A de Castro Alves seria uma dessas, nada provando que fosse a comediante que as
representava por esse tempo, percorrendo triunfalmente, de sul a norte, o
Brasil. Amigo do poeta o Des. J. J. de Palma crê que se trata antes de uma
impressão de teatro: é a opinião que adoto. Na poesia há alusões claras e
situações do drama: Rafael, o moço escultor, quando se desenlaça da feiticeira que
o empobreceu e degradou, não tem mais gênio nem sensibilidade. O "lábio
queimado", o "peito frio", crestadas "as flores da
esperança", "afogada a luz da inspiração", nada mais lhe resta,
senão morrer.
A não ser, tudo é possível... que
Eugênia Câmara que lhe desse desejos e esperanças não correspondidas ou
continuadas, com a partida para as suas excursões artísticas, de onde o
abandono ou a traição, na mente inflamada do adolescente.
Como quer que tenha sido, ganhara o
poeta experiência e, amando, abreviara a idade dos amores. Tímido em 63,
desesperado na primeira decepção em 64, vamos achá-lo em 65, nos seus 18 anos,
na paz bucólica de um idílio, em que o amor de jovem e formosa mulher não lhe
impede realizar também, o coração satisfeito, as suas ambições de poesia e de
glória. Regueira Costa narrou a Alfredo de Carvalho o começo dessa amizade
depois de uma noite de triunfo do poeta, dos seus primeiros triunfos públicos,
com a recitação de O Século, no salão
de honra da Faculdade de Direito, em 19 de agosto de 65. "Residia então
Castro Alves na rua do Lima, em Santo Amaro, e aí o fui encontrar no doce
convívio de sua encantadora Idalina, a preparar o poema d'Os Escravos". "Nessa vivenda, continua Regueira Costa,
além de mim e de Fagundes Varela, poucos o frequentavam, não porque se
esquivassem de se aproximar do laureado poeta, mas pelo retraimento em que este
vivia, obedecendo à influência natural do seu temperamento".
O próprio Castro Alves melhor exprime
a razão desse retiro
"O
poeta trabalha! A fronte pálida
Guarda
talvez fatídica tristeza...
Que
importa? A inspiração lhe acende o verso,
Tendo
por musa — o amor e a natureza!"
O amor era essa Idalina, cujo nome não
escreve, (poderia acaso escrevê-lo?), a quem chama Julieta, Adalgiza, Ela, enfim, nessa formosa poesia que
viria a escrever mais tarde, em 70, e em lugar distante, no Curralinho, com a
saudade do coração, que não esquece, lembrando por epígrafe aqueles outros
versos de Fagundes Varela, o qual conhecera a musa encantadora da casinha de
Santo Amaro:
"Pensava em ti nas horas de tristeza
Quando
estes versos pálidos compus."
D. Adelaide de Castro Alves Guimarães,
a dileta irmã do poeta, mo testifica. "Em Pernambuco, diz-me ela, ligou-se
a uma moça, chamada Idalina. Amores ligeiros, passados em uma casinha
pitoresca, fora da cidade. São as Aves de
Arribação uma reminiscência desse episódio amoroso". Entretanto, a
obsessão de Eugênia Câmara, fez acreditar a mais de um biógrafo que ainda essa
poesia lhe era devida como inspiração.
Foi uma doce aventura, destinada a
durar pouco, amores de aves de arribação, que encheriam essas férias de 65 e
com elas se acabariam na primavera próxima, chamados aos deveres abandonados. É
um quadro delicioso que ele descreve:
"Era
o tempo em que as ágeis andorinhas
Consultam-se
na beira dos telhados,
E
inquietas conversam, perscrutando
Os
pardos horizontes carregados...
Em
que as rolas e os verdes periquitos
Do
fundo do sertão descem cantando...
Em
que a tribo das aves peregrinas,
Os
Zíngaros do Céu formam-se em bando!
Viajar!
viajar! A brisa morna
Traz
de outro clima os cheiros provocantes
A
primavera desafia as asas,
Voam
os passarinhos e os amantes!"
Foi assim, que
"Um
dia Eles chegaram. Sobre a estrada
Abriram-se
à tardinha as persianas;
E
mais festiva a habitação sorria
Sob
os festões de trêmulas lianas."
Quem
eram? Donde vinham?... — Pouco importa
Quem
fossem da casinha os habitantes.
—
São noivos: — as mulheres murmuravam!
E
os pássaros diziam: — são amantes!
Ela era risonha, tinha os olhos
brandos, os cabelos ondados faziam inveja às "lianas" e, como eram
moços, "o idílio cantava noite e dia": é o poeta, indiscreto, como
todos os amorosos, quem o diz:
"E
a casa branca à beira do caminho
Era
asilo do amor e da poesia.
Quando
a noite enrolava os descampados,
O
monte, a selva, a choça do serrano,
Ouviam-se,
alongando a paz dos ermos,
Os
doces sons, plangentes, de um piano.
Depois,
suave, plena, harmoniosa,
Uma
voz de mulher se alevantava...
E
o pássaro inclinava-se das ramas
E
a estrela do infinito se inclinava."
Quando não cantavam, não riam, não se
amavam na casinha, saíam juntinhos às tardes, para vê-las morrer e buscarem ao
amor uma melancolia. Aos felizes vai bem, por contraste, uma pontinha de
tristeza:
"O
crepúsculos mortos! Voz dos ermos!
Montes
azuis! Sussurros da floresta!
Quando
mais vós tereis tantos afetos,
Vicejando
convosco em vossa festa?...
E
o sol poente inda lançava um raio
Do
caçador na longa carabina...
E
sobre a fronte dela por diadema
Nascia
ao longe a estrela vespertina."
À noite, enquanto ela dormia, velava o
poeta... e nessas vigílias começou Castro Alves a compor o poema d'Os Escravos, que foi a sua maior
aspiração e a sua glória, de apóstolo da libertação de uma raça inteira de
oprimidos.
"Hoje
a casinha já não abre a tarde
Sobre
a estrada as alegres persianas.
Os
ninhos desabaram... no abandono
Murcharam-se
as grinaldas de lianas.
Que
é feito do viver daqueles tempos?
Onde
estão da casinha os habitantes?
A
Primavera que arrebata as asas...
Levou-lhe
os passarinhos e os amantes."
Ficou apenas a saudade e a recordação
nesses versos, dos mais formosos que escreveu Castro Alves. Por mim, não me
esquece também essa encantadora Idalina, que deu ao poeta a serena felicidade
para realizar a sua obra e cuja suave lembrança é tão vivaz que lhe inspira,
ainda depois do tumulto de outros amores, esses versos deliciosos, que nos dão
por ela uma doce ternura comovida.
O GRANDE AMOR
Em 66 é que hei de colocar o fato
culminante da vida amorosa de Castro Alves: a sua paixão por Eugênia Infante da
Câmara, a artista portuguesa que percorria o Brasil desde 58, que ele conheceu,
e talvez aplaudisse de antes, se apenas isso, aí mesmo no Recife. Tenho as
minhas razões. Por elas discordo de Múcio Teixeira que, embora sem ousar
nomeá-la, descreve cena de fascinação do poeta pela "Dama Negra",
como lhe chama, tomando o apelido a Castro Alves (no Gondoleiro do Amor e outras poesias), acontecida em 62, teria 15
anos, na cidade da Bahia. Transfere Xavier Marques a cena do coup de foudre para o ano imediato, pois
nesse de 62 nem Castro Alves nem Eugênia estavam na Bahia, e transfere-a para o
Recife, onde estreia em 63 a Companhia Dramática do ator Furtado Coelho, da
qual era "estrela" aquela atriz. Xavier não aduz provas nesse
sentido, a não serem as alusões do Meu
Segredo, da Dalila e até
reminiscência das Aves de Arribação,
que nada dizem sobre o caso e até se dirigem, duas pelo menos, a outras
pessoas. Tenho razões, repito, e essas positivas, para colocar em 66 a paixão
de Castro Alves por Eugênia, que estreara em Lisboa, em 52, no Ginásio,
"onde fez bela carreira", diz Sousa Bastos, veio ao Brasil em 58, ao
Rio de Janeiro, "onde agradou muito, não só aqui, como em todos os teatros
do Império", que percorreu. Com efeito, encontram-se traços de sua passagem
em Santos (60), em São Paulo (61), em Santa Catarina nesse mesmo ano, no
Recife, finalmente, em 63. Aí, sempre com a sua companhia e o seu repertório,
produz grande sucesso, mas não se detém: no fim deste ano está no Pará, onde
começa o de 64, chegando em março ao Ceará. Eugênia Câmara, autora de um livro
de versos, Esboços poéticos,
publicados em Portugal, faz deles uma segunda edição sob o título Segredos d'alma, impressos em Fortaleza,
em 64. Nesse volume publica também várias poesias a ela dedicadas "durante
as suas viagens no Império do Brasil". Aí estão versos de Augusto Emílio
Zaluar, de Fagundes Varela, de Vitoriano Palhares e outros menos conhecidos, de
Santos, de São Paulo, do Recife, do Pará. Nada de Castro Alves. Seria possível
fosse o poeta discreto com a mulher de sua adoração, não lhe manifestando o
entusiasmo, que outros não encobriam, e ele mesmo, mais tarde, viria a
proclamar, de público, em 66?
Também não creio que se Castro Alves
houvesse feito versos a Eugênia, não os publicasse ela, entre e com os outros.
Não é crível que se a cristalização, para falar como Stendhal, se tivesse já
operado nesse tempo, fosse o poeta reservado ou a cômica discreta: concluo que,
em 64, ainda nada havia entre os dois, a não ser os aplausos e talvez os
desejos de um tímido rapaz à atriz festejada, da qual se não aproximara
intimamente.
A minha segunda razão é que, em 65,
houve a Idalina, a encantadora Idalina da casinha de Santo Amaro, onde Regueira
Costa e Fagundes Varela a encontraram amando o poeta, que escrevia Os Escravos. Não é de crer que se Castro
Alves amasse Eugênia desde 63, se tivesse mostrado, além de indiferente à sua
glória, silencioso à própria paixão, para em 64 lhe exprobrar como monstruoso
crime tê-lo deixado, ele que sabia ser fado dos artistas em excursão
peregrinarem de déu em déu: a Dalila
é exaltação injusta, ou não é a atriz portuguesa. Seria ilógico ainda, ele que
sabia queixar-se dessa infidelidade nela, consolar-se facilmente, pouco depois,
na casinha de Santo Amaro, "tendo por musa o amor e a natureza".
É exato que estou pondo lógica nessas
cousas de amor, onde, parece, ela nunca existiu: as razões opostas são
entretanto sem nenhuma coerência. Como foi ela, a comediante, a grande paixão
de Castro Alves, todos os fatos obscuros de sua vida amorosa, todas as
discordâncias de data desses seus romances de coração são sumariamente
resolvidos, com a atribuição a Eugênia Câmara.
Finalmente, a terceira razão, que
acredito a mais poderosa, senão decisiva. Ela se funda num testemunho, digno do
maior crédito, o do Snr. Des. Sousa Pitanga, amigo íntimo do nosso poeta, e
contemporâneo dele no Recife, desde o começo de 66, quando para aí fora
concluir os seus preparatórios. Estava então Castro Alves no seu 2º ano e já
era o poeta consagrado na academia, nos saraus, nos espetáculos públicos: o seu
jovem patrício, recém-chegado, acompanhava com simpatia e admiração essa glória
precoce. Foi desse ano a campanha teatral que dividiu os estudantes, a
sociedade e o público em geral, em favor de duas atrizes, dois partidos, como,
tantas vezes, viram os teatros do Brasil. Sousa Pitanga não podia esquecer,
pois, os fatos e a data precisa deles: é no ano de 66.
Eugênia viera do norte do Brasil, de
uma das suas excursões artísticas, diretamente do Natal ao Recife, na companhia
de um amante, seu patrício, Veríssimo Chaves, guarda-livros abastado, dado às
letras, e que convivia com a mocidade inteligente da época. Depois dos
espetáculos e das festas havia ceias alegres, comparsas eram jornalistas e estudantes,
poetas e oradores, todos entusiasmados pela atriz, também poetisa e que os
seduzia nos seus estos arroubados da Dalila,
da Onfália, das Mulheres de Mármore... Foi então que, antigo admirador, se
aproximou Castro Alves da comediante e daí, dessa assiduidade, que se gerou a
paixão mútua que os prendeu, aos dois, nos seus elos de fogo... ao menos
durante algum tempo. É fato que por ele abandonou o outro amante, e com ele foi
morar numa casinha do Barro, povoação acima de Afogados, caminho de Tijipió e Jaboatão.
Os comentários e os doestos não faltaram — os que os amantes felizes têm sempre
— e na roda dos antigos convivas, agora desfeita, até as vivacidades armadas,
uns porque condenavam o ato do Castro, outros porque os justificavam: assim,
por exemplo, aconteceu entre o estudante Manuel Pedro Cardoso Vieira, depois
deputado geral pela Paraíba, e o letrado português Belmiro Salgado, certa
noite, depois do espetáculo.
Portanto, em 66, Castro Alves se
apaixona, e é correspondido, por Eugênia Câmara, que tão forte influência teve
sobre o seu gênio e na sua vida. Tinha ele então 19 anos e era o mais formoso
rapaz, o mais belo homem que se pode imaginar. Alto, forte, esbelto, de tez
levemente morena, ampla testa, olhos negros rasgados e pestanudos, nariz direito,
lábios sensuais, sombreados por um buço arrogante, linda boca, queixo dominador
e, sobretudo, na cabeça poderosa a coma negra, retinta, luzidia, de basta e
longa cabeleira, cuja sedução ele conhecia. Conta-se que muitas vezes, ao sair
de casa, penteava-a com afago e com os dedos entreabertos da mão, e ajeitando
na cabeça o custoso chapéu do Chile dizia, sorridente:
— Tremei, pais de família! D. Juan vai
sair!
A voz quente, de notação grave,
abaritonada, máscula e melodiosa, sabia corresponder ao gesto e à presença,
quando dominava as multidões, da academia ou do teatro, presas aos acentos de
bronze das suas estrofes. Fossem a Visão
dos mortos, Pedro Ivo, O Século... o entusiasmo era o mesmo, e
indescritível.
Se os homens não lhe regateavam
aplausos, como resistiriam as mulheres aos agrados? A Eugênia Câmara, pelo
muito mal que dela se há de dizer, não se lhe negará que não resistiu e o amou,
como pôde e quanto pôde. (Caberia aqui a palavra do cético: os homens põem a
eternidade no amor, diz Anatole France, não é culpa das mulheres...) A prova é
que por ele, simples estudante, abandonou o amante rico, e pelo conforto da
cidade trocou a casinha do Barro; a prova é que mais tarde, quando a companhia
Furtado Coelho embarcava para a Bahia, "com todo o seu elenco, diz Xavier
Marques, ela ficou. E ficou por amor do poeta, e para ele". Trocava por
ele empresário amigo
e esperançado, antigo amante talvez,
pois diziam que era sua uma filhinha que a acompanhava; em todo o caso, perdia
novas glórias e outras fortunas ou aventuras.
Por enquanto bastava-lhe o poeta.
Ele ama-a e de público celebra-lhe o
talento no Voo do gênio, que é de maio, e A
uma atriz (no seu benefício), em setembro de 66. Nesses, alude à guerra que
dividia a plateia do teatro de Santa Isabel; alguns partidários da atriz
Adelaide do Amaral, chefiados por Tobias Barreto, menos numerosos, e por isso
mais violentos, que desafiavam o outro partido, a favor de Eugênia Câmara,
encabeçado por Castro Alves, mais fervorosos e entusiastas. Ficou memorável
essa campanha artística, a que não faltou, na regra, o doesto e a invectiva.
Consola o nosso poeta a sua dama de algum agravo, dizendo-lhe:
"Do
gênio a maior grandeza
O
ser divino é sofrer."
Na hora das aclamações havia de
sentir:
"Longe
os silvos das serpentes,
Que
tentam morder-te os pés..."
A razão, e de uma filosofia profunda,
ele a diz ainda:
"Ai!
quem sobe ao Capitólio
Vai
precedido de pó..."
Haverá exagero sobre esse gênio e essa
glória. Naquele tempo, para tal mocidade, não havia outros epítetos para as
famas do teatro: não é só Castro Alves, são todos os poetas e oradores, para
todos os artistas de algum merecimento. Um dessa geração, Manuel Vitorino,
embora vice-presidente da República, virá dizê-lo a uma atriz peregrina. Nós de
hoje perdemos, com o entusiasmo às cousas do palco, a compreensão desses
arrebatamentos: ficou-nos por consolo a compostura.
Mais queridas ainda que as
representações teatrais, eram as cômicas que representavam: dos sorrisos e
aplausos trocados germinavam paixões. Isto explica talvez uma das razões da de
Castro Alves.
Embora Fagundes Varela em São Paulo
dissesse, em 61, a Eugênia
Tens
no rosto a beleza, o gênio n'alma
Linda
flor d'além mar...
ela não era bonita. Ainda que Stendhal
prove que todos os atores e atrizes que nos comovem ou nos entusiasmam têm
beleza, o reparo constante, como que surpreso, que acode a biógrafos e
testemunhos, quando referem a paixão de Castro Alves, é sempre este... ela não
era bonita! Como se amadas fossem apenas as mulheres bonitas, quando, quase
sempre, não são as mais amáveis. Raramente dessas se fazem as grandes amorosas.
As feias sabem mais amar e esta é sempre a melhor condição para ser amada.
Sirva de exemplo Julie de Lespinasse. Demais, no jogo ou na guerra do amor,
cumpre não esquecer o antagonista. Os bonitos não são exigentes e, em caso de
formosura, satisfazem-se com a própria, pedindo apenas ao parceiro compensação,
de outra natureza. Castro Alves tinha beleza para dois.
Se não era bonita, também não seria
feia: Eugênia era graciosa e travessa, experimentada na vida e na galantaria,
mulher feita e bem feita, iniciadora preciosa e apreciada de um adolescente,
belo e sedutor como um semideus, que por ela, e com ela, abreviaria todas as
provações de uma grande vida sentimental. Que precisavam de mais?
A diferença de idade — tinha ela 29
anos, ele apenas 19 — não seria oposição; bem pelo contrário. Um dos tipos
encantadores da paixão humana é aquele Cherubim, do Mariage de Figaro, cujo amor de menino comove mais que se tivera
vinte anos. Estou que chegando à corte de Menelau, à procura do pai, Telêmaco
atentaria mais na divina Helena do que na tenra Hermione; essa era a opinião de
Jules Lemaître. Na vida, como na ficção: os adolescentes se parecem todos com
aquele jovem embaixador de Espanha, cuja nobreza não esperara idade para o
cargo, e que dizia nos salões da Princesa de Lieven, a amiga de Guizot, diante
de Lady Seymour, a mais nova e radiosa beleza do seu tempo:
— Muito moça e muito fresca... gosto
de mulheres um pouco passadas...
Era Eugênia Câmara principalmente, não
o esqueçamos, mulher de teatro. Essa condição vale por conjunto de mais encanto
e sedução que o de muita beleza peregrina, enquadrada nas serenas e severas
relações familiares. São, incontestavelmente, as atrizes as mulheres mais
amadas. De tanto solicitadas, para o pendor mais fatal da natureza, para a
única inclinação natural do sexo, é incompreensível que não acabem na
galantaria, como aliás é a regra, tão difícil é não contentar a alguns dos
inúmeros que as desejam. Estes também têm as suas razões, das quais a maior é
sem dúvida aquela que o futuro Marquês de Três Rios definia, pitorescamente, no
camarim de uma delas, a bela Ada Adini, quando, entre dois chamados à cena, lhe
gozava das carícias, ao som de estrepitosos aplausos, cujo eco lhes chegava da
plateia:
— Parece que é a mim que eles estão
aplaudindo...
Esse amor lhe deu à vida, até aí
reservada e discreta, a despeito de alguns triunfos, de academia ou de teatro,
vibração nova e intensa. Da "república" da rua do Hospício passou a
morar com Eugênia, na casinha do Barro. Acompanhava-a aos espetáculos, depois
às ceias alegres, "gastando em duas ou três noites a mesada," dando à
amante, travessa e licenciosa, a festa querida de seu temperamento e dos seus
hábitos. Depois, tresnoitado, ainda lhe velava o sono, compondo na vigília
rimas de amor, odes cívicas, escrevendo o drama Gonzaga ou a Revolução de Minas, que ela devia representar. Eram
desleixados a saúde e os estudos, mas o coração ardente do poeta se queimava
nas aras do amor, que dele havia de fazer o nosso maior e melhor lírico, ao
sopro da paixão pública com que seria o apóstolo da Abolição e da República e,
por isso, o nosso mais alto poeta heroico e, até agora, o nosso único poeta
épico.
Nesse fim de 66 deu-se uma crise
sentimental de que ficaram traços doloridos nos versos do poeta. Eugênia ia
embarcar para o Sul com a sua Companhia: era a separação! Daí os belos versos
de Fatalidade (outubro de 66):
"Vai!
flor virente! no rumor das festas
Entre
esplendores, como o sol viver,
Enquanto
eu subo — tropeçando incerto
Pelo
patib'lo — que se diz sofrer!..."
A consciência desse horrível
desconforto ele a tinha, desde aqueles versos de julho — afastado dela alguns
dias, recolhido ao Convento de São Francisco, de onde escrevia Horas de martírio, Amar e ser amado e provavelmente Amemos, todas de uma saudade aflita e de uma terna e ardente
necessidade de vê-la e amá-la, ânsia e tortura que se resumem neste apelo:
"Não
tardes tanto assim... Esquece tudo
Amemos,
porque amar é um santo escudo
Amar
e não sofrer..."
e nesta certeza:
"Eu
não posso ser de outra... Tu és minha..."
Por isso, por enquanto disso
convencida, Eugênia ficou e foi com o poeta viver aqueles Sonhos da Boemia na casinha do Barro, onde nas pausas do amor
compôs o drama que ela devia representar (fevereiro de 67).
Assim, até março desse ano, quando
deixaram a casinha do subúrbio e a vida do Recife, para continuarem o idílio na
Bahia. Com ela se hospeda no hotel Figueiredo, na praça que hoje tem o seu
nome, e depois se transfere para a Boa Vista, agora Asilo de São João de Deus,
casa de infância, então abandonada pela família do poeta que passara a habitar
o palacete do Sodré, onde foi depois o Colégio Florêncio e hoje é o Ipiranga. Continuou
a amar e a poetar, vida feliz, airada e folgazã, com amigos e admiradores que
logo conseguiu, cuidando principalmente de representar o seu drama. Eugênia se
engaja na Companhia que trabalhava no teatro de São João e estreia com pleno
sucesso a 20 de junho. Abre-se uma série de noitadas ruidosas, a aplausos e
entusiasmos, para a atriz e para o poeta, cujos versos candentes são recitados
do palco por ela, e por ele, que assomava, a chamado da multidão, de um dos
camarotes da sala, para fazê-la estremecer de aclamações.
Enfim, a 7 de setembro, sobe o Gonzaga à cena, representando Eugênia o
papel de Maria, festa literária memorável que consagrou definitivamente Castro
Alves, coroado em palco aberto, no delírio da turba que o vitoriava. Teve um
triunfo, diz em carta a um amigo íntimo, "como não consta que alguém
tivesse na Bahia... vitoriado quanto era possível e coroado; fui além disso
levado a nossa casa em triunfo".
Eugênia, além de participar dessa
glória, tinha o seu quinhão reservado, pelos admiradores que lhe surgiram, que
lhe ofereceram uma coroa de prata no seu benefício, e, quando veio a romper com
a companhia do São João, que lhe construíram um teatro improvisado, na baixada
do Bonfim, para os seus espetáculos. Descontado o que era devido à artista,
ficavam ainda homenagens à mulher. Começou o ciúme a magoar ao amante. Apesar
de guardá-la bem na Boa Vista, de afastar dela os importunos admiradores, não
raras cenas violentas narram testemunhos, tributo forçado dos zelos, sem os
quais, dizem, não há amor que conte.
Reconciliados, davam-se os amantes a
novos espetáculos e outras festas, nas quais se passaram os últimos meses de
67. No começo do ano seguinte cumpria seguir para o Sul, a terminar os estudos
em São Paulo e, de passagem, conquistar o Rio. Pensava em publicar Os Escravos e o Gonzaga. Com a atriz embarcou em fevereiro de 68 para aqui, onde
encantou a José de Alencar e ao escol das letras e da sociedade carioca,
produzindo espanto no reticente Machado de Assis, cuja admiração a prazo esperava
que a ênfase lhe passasse, com a mocidade. Recitara versos do balcão do Diário do Rio de Janeiro, em cujos
salões de honra lera o seu drama a uma assembleia de letrados que o aplaudiram
calorosamente. Em março já estava em São Paulo, sempre com Eugênia Câmara.
A mocidade da academia e da imprensa
dada às letras e à política, cerca-o, encoraja-o e leva-o a se exibir nas
sessões cívicas e comemorativas e nos espetáculos públicos. Testemunha aqui
presente, e que me não deixará mentir, contou-me que na sua vida assistira às
mais ferventes campanhas do abolicionismo e da república, ouvira os mais
inflamados e cultos verbos de que há notícia no Brasil, mas nada se lhe
comparou nunca às manifestações do entusiasmo com que era aclamado Castro
Alves, recitando a Visão dos mortos
ou o Pedro Ivo. "Vinha abaixo o
teatro", na frase expressiva dessas ruidosas comunhões de sentimento,
quando o poeta, com a sua voz de bronze quente e o seu vulto de jovem semideus,
martelava as estrofes ciclópicas dos seus poemas revolucionários.
Distrai-lo-ia a vida mais intensa de
ideias, a vida mais dispersiva de sociedade, dos seus cuidados de amor? Pode-se
crer. Eugênia procuraria, de outro lado, distrair-se também, com outros amores.
Dizem contemporâneos que ela lhe fora sempre infiel, sem por isso deixar de ser
constante. Há quem não compreenda essas mulheres, conquanto sejam muito
vulgares os homens que correspondem a tais mulheres. Também Manon amava a Des
Grieux e, apesar das infidelidades, até o fim não lhe faltou constância: foi
por ter copiado da realidade esse tipo de mulher que o Abade Prévost, que a
amou e a sofreu, fez obra-prima.
Castro Alves, como todos os
apaixonados, veio a sabê-lo muito tarde, só ali em São Paulo, quando, com a
experiência da cegueira do amante, foi Eugênia menos cuidadosa na dissimulação.
Na Canção do Boêmio, entre risonho e
triste, nota de humorismo, que nem essa faltou à sua obra, tornando talvez
impessoal o seu caso, ele se revela.
"E
tu fugiste, pressentindo o inverno,
Mensal
inverno do viver boêmio...
Sem
te lembrar que por um riso terno
Mesmo
eu tomara a primavera a prêmio
.............................................
Se
tu viesses, de meus lábios tristes,
Rompera
o canto... Que esperança inglória!...
Ela
esqueceu o que jurar-lhe vistes
Ó
Pauliceia! ó Ponte Grande! ó Glória!"
É,
entretanto, apenas impaciência.
"Batem!...
Que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se
as trevas... fabricou-se a luz...
Nini!
pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam
teus braços... do martírio a cruz!"
Era o desapego, que antecedia ao
abandono. O poeta previa-o e pedia ao sono esquecimento:
"Com
teu divino bálsamo
Cala-me
a ansiedade?
Mata-me
esta saudade
Apaga-me
esta dor.
.............................
Mas
quando, ao brilho rútilo
Do
dia deslumbrante,
Vires
a minha amante
Que
volve para mim;
Então
ergue-me súbito...
É
minha aurora linda...
Meu
anjo... mais ainda...
É
minha amante enfim!"
Viu Castro Alves finalmente o que em
São Paulo se via sem nenhum resguardo, e dava comentários brejeiros a toda a
mocidade do tempo. O poeta com as reminiscências de alguma cena real viria a
descrever essa traição naquela Página de Escola Realista, na qual um namorado
moribundo é enganado pela amante, impaciente de passar a outros braços. As
cenas se amiudavam, rupturas e reconciliações, desânimos e êxtases líricos,
desde agosto, a outubro, quando é representado o Gonzaga por ela, até os primeiros dias de novembro, em que ainda
fala dela, em carta a Luís Cornélio.
Teria sido durante aqueles
crudelíssimos momentos em que sofreu do corpo e do espírito, noites e dias
amargurados que se seguiram ao acidente de caçada, na qual recebera um tiro,
empregando-se toda a carga de chumbo no calcanhar? Dessangrado, febril, em
risco de perder, senão a vida — o pé, — que veio a perder de fato, — operado,
dolorido, acesos padecimentos pulmonares... tudo sofreu o poeta, embora cercado
de colegas e amigos... sem ela. Um ano depois, em novembro de 69, aqui no Rio,
mutilado, mas não resignado, no doloroso Adeus que lhe dirige, relembra:
"Sabes
o que é sepultar-se
Um
ano inteiro na dor,
Esquecido,
abandonado,
Sem
crença, ambição e amor!
Ver
cair dia após dia
Sem
um riso de alegria
Sem
nada, nada, Jesus!
Ver
cair noite após noite
Sem
ninguém que nos acoite
Ninguém
que nos tome a cruz?"
No fluxo e refluxo do coração, que
condena e perdoa, que insulta e desculpa, ele escreve sob uma impressão Immensis orbibus anguis e o Tonel das Danaides. Como a índia
adormecida à cobra
"Entrega
um seio nu, moreno, luzidio,
..........................................
Assim,
minh'alma deste o seio (ó dor imensa!)
Onde
a paixão corria indômita e fremente!
Assim
bebeu-te a vida, a mocidade e a criança
Não
boca de mulher... mas de fatal serpente!"
Como o tonel das Danaides, que se não
farta nem se enche, assim é o coração da "fria Messalina": é o dela!
"Na
gruta do chacal ao menos restam ossos...
Mas
tudo sepultou-me aquele amor cruel!"
Na poesia É tarde! ela é a "negra feiticeira", a "libertina,
lúgubre bacante"... Na Fabíola, dos Anjos
da Meia Noite, ela ainda:
"É
sangue que referve-te na taça!
É
sangue que borrifa-te estas flores!
E
este sangue é meu sangue... é meu... desgraça!"
Entretanto lhe diz Adeus, lembra-se do
passado e se comove ao perdão:
"Que
saudades que eu tenho do passado,
Da
nossa mocidade ardente e amante!
Meu
Deus! Eu dera o resto da existência
Por
um momento assim, por um instante!"
Amava-a
ainda. Ela é que mudara.
"Viste-me
e creste um momento
Qu'inda
me tinhas amor!...
Pobre
amiga! Era lembrança,
Era
saudade, era dor!
Obrigado!
mas na terra
Tudo
entre nós se acabou!
Adeus!
É o adeus extremo,
A
hora extrema soou!"
E faz-lhe esta confissão a mais íntima
e dolorosa que um coração ferido mas não esquecido jamais fez tão sinceramente:
"Quis-te
odiar, não pude. — Quis na terra
Encontrar
outro amor. — Foi-me impossível.
Então
bem disse a Deus que no meu peito
Pôs
a gérmen cruel de um mal terrível.
Sinto
que vou morrer! Posso portanto
A
verdade dizer-te santa e nua:
Não
quero mais teu amor! Porém, minh'alma
Aqui,
além, mais longe, é sempre tua."
Esse adeus ela o recebeu e a ele
responde por carta, que se perdeu, e por versos que se conservam, e são, embora
sem beleza, de alguma emoção. Não se consola com o jamais! que ele pronunciou;
diz-se descrente da felicidade:
"Pode-se
encontrar outra alma
Depois
de reinar na tua?"
Relembra a noite fatídica:
"Aquela
noite! oh silêncio
Noite
de fel e de amor
Em
que dentro de duas almas
Houve
um poema de dor..."
Apesar disso,
"Eu não me iludo. Eu te amo
Quer
na vida, quer na morte;
A
um só dos teus olhares
Será
tua a minha sorte."
E conclui:
"Adeus!
se um dia o destino
Nos
fizer inda encontrar
Como
irmã ou como amante
Sempre!
sempre! me hás de achar!"
Não há que ver! É Manon!... Cada vez
que Des Grieux lhe aparecia, era toda dele, como o coração sempre fora, ainda
quando se dava a outros. Desgraçadamente os Des Grieux nem sempre compreendem
como o corpo se lhes vai, às vezes, a elas, longe do coração. Viria Castro
Alves muitas vezes a lembrar-se ainda, mas apenas com a saudade de amor, que
dói mais do que as outras saudades:
"Vento
frio do deserto
Onde
ela está? Longe ou perto?"
Mas
como hálito incerto,
—
Oh! minha amante, onde estás?...
....................................
E
hoje que o meu passado
Para
sempre morto jaz...
Vendo
finda a minha sorte,
Pergunto
aos ventos do norte:
—
Oh! minha amante, onde estás?...
ÚLTIMOS AMORES
Embora a grande paixão o ocupasse,
sempre ao poeta sobrava tempo e coração, senão apenas estro, para pequenas
aventuras de sentimento, flirts, como
se diria hoje, que têm entretanto a sua poesia. Assim, em 66, vindo do Recife à
terra natal, namorou-se de duas formosas raparigas que moravam perto de casa,
duas lindas judias, filhas de Isaac Amzalack, negociante na Bahia, e
escreve-lhes A Hebreia, joia de
poesia bíblica, que Tobias Barreto ouviria mais tarde rezada em louvor da
Virgem, numa igreja do Norte. Mandou-lhes com a dedicatória: à mais bela! o que
produz naturalmente discórdia às irmãs, cada qual se julgando com direito à
prenda. Coube a Simy, a cujo casamento anunciado para breve não pôde o poeta
resistir de despeito, apunhalando-se, à vista dela... com um punhal de papel.
Simy Amzalack mereceu esse trecho de Cântico
dos Cânticos e estou que hoje me ouvindo, porque deve estar aqui presente,
a memória lhe representará, com a suave emoção que dá sempre a saudade da
juventude e da beleza, o formoso vate que lhe rendeu o preito dos mais lindos
versos que inspirou:
"Ai!
guia o passo ao viajor perdido,
Estrela
vésper do pastor errante..."
Esther, a outra, teve a sua
compensação, de mais amor, talvez. Nos Devaneios,
ela é a "pálida madona dos meus sonhos"... "em toda a
parte", "meu pensamento segue o passo teu..." O poeta se extasia
"à janela", diante da sua "trança solta", das "lindas
mãos" que acariciam o piano, que ouve perto, para concluir numa soberba
impiedade de apaixonado:
"Oh dize,
dize, que inda posso um dia
De teus lábios
beber o mel dos céus;
Que eu te
direi, mulher dos meus amores
Amar-te ainda
é melhor do que ser Deus."
Mais tarde, nos Anjos da Meia Noite,
quando a sombra das mulheres que amou o poeta, lhe passa pela memória, lá está
ela:
"Qual
nas algas marinhas desce um astro...
Linda
Esther! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só
me resta um perfume... um canto... um rastro..."
Por São Paulo, em 68, escreveu o Laço de fita:
"Não
sabes, criança! Estou louco de amores...
Prendi
meus afetos, formosa Pepita,
Mas
onde? No tempo, no espaço, nas névoas?!
Não
rias, prendi-me num laço de fita."
Eu preferiria continuar... mas me
obriguei a dizer-vos quem é essa formosa Pepita. Contou-me ilustre
jurisconsulto, condiscípulo de Castro Alves em São Paulo, o Dr. Sancho de
Barros Pimentel, que o vira em aula, ao seu lado, entretido a rimar e corrigir
esses versos. Soube então que eram feitos a uma bela rapariga, de nome Maria
Carolina, filha do Dr. José Carlos de Almeida Torres e enteada de D. Mariana,
sua esposa, irmã de Álvares de Azevedo. Outro depoimento, igualmente fidedigno,
de letrado e entusiasta do poeta, o Dr. Antônio Baptista Pereira, refere que o Laço de fita foi feito a Sinhá, linda
filha do Dr. Lopes dos Anjos, médico e amigo de Castro Alves, o qual deu a
poesia a sua musa, em meio de um baile, na casa paterna, à rua do Imperador,
hoje Marechal Deodoro: era companheira da jovem a mãe do depoente, que
assistira às emoções dessa leitura deliciosa. Qual das duas realmente é a
Pepita? Concluo que ambas, e outras ainda, que não faltariam ao poeta.
Castro Alves seguia neste passo, não o
seu hábito, que era dar nomes diversos à mesma amada, mas a usança clássica que
veio a ser de Lamartine, o qual só fez versos a uma mulher... neles Graziela é
Elvira, Julie Charles também é Elvira... até Miss Birch, depois Madame
Lamartine será Elvira, como Elvira foi de fato Mlle. Lamartine. Maria Carolina
e Sinhá Lopes dos Anjos foram a Pepita: a fidelidade no amor é mais fácil aos
poetas que aos outros mortais.
No Rio, em 69, atravessando as
angústias que terminaram na mutilação do pé, cercava-o o carinho dos amigos. Um
ex-colega do Recife, inteligente e bom, abastado e generoso, dos seus maiores
entusiastas, Luís Cornélio dos Santos (a quem dedicou os lindos versos A Luís) e a esposa, em cuja casa à rua
Silva Manuel se hospedara, foram a sua família. Para entreter o poeta
martirizado abriu os seus salões a rapazes de talento — entre estes Joaquim
Serra, Ferreira de Menezes, Melo de Morais, Rodrigues Peixoto, Monteiro de
Azevedo, Benjamim Filgueiras... — e a moças bonitas da sociedade que, com eles,
lhe faziam conversa, companhia e diversão literária. Desse Petit Salon, como
lhe chamavam discretamente, era Castro Alves soberano, às vezes até do coração
das mulheres, às quais inspirava logo ternos sentimentos. Dessas ficaram
lembradas Cândida e Laura nos Anjos da
Meia-Noite:
"Crianças
que trazeis-me a primavera"
Eram, entre menina e moça, ambas
formosas e já bem mulheres, pelos sentimentos que moviam e que as comoviam:
quanto ao poeta teria o destino de ter sempre o coração a dividir. Uma, Maria
Candinha, rosto de santa, "rosa de amor, celestial Maria",
inspirou-lhe os deliciosos versos d'Os
Murmúrios da Tarde, onde lhe suplica
"Minh'alma
é rosa que a geada esfria...
Dá-lhe
em teus seios um asilo brando...
Leva-me!,
leva-me! ó gentil Maria!..."
Em carta da Bahia diz a um amigo:
"E Maria Candinha, a quem cada vez a manhã beija mais linda, continua a
ser o riso e a festa dos corações e dos espíritos?" "Dize-lhe que eu
por aqui lhe tenho criado a justa reputação de uma das meninas mais
interessantes que tenho visto".
Da outra, Cândida de Campos (era seu
apelido em casa Dendém), foi a impressão mais profunda; despertou Castro Alves
paixão à ardente criatura e dela ainda falava na Bahia com o maior enlevo.
"A seu olhar que transbordava em fogo", sentiu-se o poeta reviver:
"E
ao doce influxo do clarão do dia
O
junco exausto, que cedera a enchente,
Levanta
a fronte da lagoa fria...
Mergulha
a fronte na lagoa ardente..."
Por isso, nessa Volta da Primavera, que foi para ele esse amor, exclama com
exaltação mística:
"...eu
digo, ao ver tua celeste fronte,
O
céu consola toda a dor que existe..."
Entretanto, não podia o poeta
corresponder, ou talvez mostrar que correspondia a estes castos amores: é o que
o coração lhe dita, a uma outra apaixonada, desse mesmo grupo, Lalinha
Filgueiras, naquela triste poesia É
tarde!
"E
tu, visão do céu! vens tateando
O
abismo onde uma luz sequer não arde?
Ai!
não vás resvalar no chão lodoso...
É
tarde... É muito tarde!"
Sem esperanças, restar-lhe-ia dizer (a
Lalinha ou a Dendém?), que ele chama Dulce nos Anjos da Meia-Noite:
"Mas
se tudo recusa-me o fadário.
Na
hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer
beijando a cruz do teu rosário!..."
Entre estas e com estas há outras.
Alguém inspirou aquele delicioso Adeus de
Teresa. Ainda há uma Bárbara nos Anjos
da Meia-Noite. Quem seriam, das suas três Marias, a da Confidência (de
outubro de 65, no Recife: Idalina?) e a da Boa-Noite (de agosto de 68, em São
Paulo: Eugênia?) E outras... e outras!... Foram tantas que faz lembrar
Sainte-Beuve, quando fala das amadas de Chateaubriand: são como as estrelas do
céu — mais a gente as contempla, mais elas aparecem!...
Tornando à Bahia, há um encontro a
bordo, numa noite de luar, que o poeta não pode esquecer:
"Inês!
nas terras distantes
Aonde
vives talvez,
Inda
lembram-te os instantes
Daquela
noite divina?
Estrangeira,
peregrina,
Quem
sabe?... Lembras-te, Inês?
..............................
Meus
olhos nos teus morriam...
..............................
Não
era cumplicidade
Do
céu, dos mares? Talvez!
..........................
E
como um véu transparente,
Um
véu de noiva... Talvez,
Da
lua o raio tremente
Te
enchia de casto brilho...
E
a rastos no tombadilho
Caia
a teus pés... Inês!
E
essa noite delirante
Pudeste
esquecer? — Talvez...
Ou
talvez que neste instante,
Lembrando-te
inda saudosa,
Suspires,
moça formosa!...
Talvez
te lembres... Inês!..."
Não terminei ainda... Entre os mais
lindos versos de Castro Alves estão certamente O Hóspede e Os Perfumes.
Ambas estas poesias são datadas de Curralinho, do ano de 70. Dizia-me o
pressentimento que eram inspirados pela mesma criatura. Os Perfumes trazem
enigmática dedicatória, "a L". Na correspondência do poeta há uma
carta à irmã preferida, na qual ele lhe pede mande a L. a Vida Parisiense. Quem seria? Devia eu tentar sabê-lo. Consegui
confidência, que não me autorizou entretanto a dizer tudo. Não sei porquê...
Estou que sirvo à história enternecedora desses dois corações, em não ser
reservado. L. foi Leonídia Fraga, bonita moça, inteligente e meiga, que o poeta
conhecera ainda criança, revira em 65 num namoro inocente e, tornado em 70, a
que renuncia, com a morte n'alma.
Ele
o diz na poesia Fé, Esperança e Caridade:
"Quando
a infância corria alegre, à toa,
Como
a primeira flor, que na lagoa
Sobre
o cristal das águas, se revê,
Em
minha infância refletiu-se a tua...
.......................................
Depois
eu te revi... Na fronte branca
Radiava
entre pérolas mais franca
A
altiva c'roa que a beleza trança!
.......................................
Hoje
é o terceiro marco dessa história
Por
ti em rosas mudam-se os martírios!"
Fé, Esperança e Caridade que ela foi
sucessivamente, podia o poeta dizer na epígrafe que "eram três anjos e uma
só mulher". Ela é ainda a Marieta
dos Anjos da Meia-Noite:
Furtivos
passos morrem no lajedo...
Resvala
a escada do balcão discreta...
Matam
lábios os beijos em segredo...
Afoga-me
os suspiros, Marieta!
Ó
surpresa! ó palor! ó pranto! ó medo!
Ai!
noites de Romeu e Julieta!...
Com o disfarce rústico de serrana, é
ainda Leonídia quem acolhe "o hóspede" e que lhe pergunta depois,
quando ele quer tornar:
"Onde
vais, estrangeiro! porque deixas
O
solitário albergue do deserto?
O
que buscas além dos horizontes?
Porque
transpor o píncaro dos montes,
Quando
podes achar amor tão perto?...
.....................................
Queres
voltar a esse país maldito,
Onde
a alegria e o riso te deixaram?
Eu
não sei a tua história... mas que importa?...
Boia
em teus olhos a esperança morta,
Que
as mulheres de lá te apunhalaram.
.....................................
A
choça do deserto é nua e fria!
O
caminho do exílio é só de abrolhos!
Que
família melhor que os meus desvelos?...
Que
tenda mais sutil que meus cabelos
Estrelados
no pranto de teus olhos?...
.....................................
Talvez tenhas além servos e amantes,
Um
palácio em lugar de uma choupana.
E
aqui só tens uma guitarra e um beijo,
Co'o
fogo ardente do ideal desejo
Nos
seios virgens da infeliz serrana!..."
No
entanto Ele partiu!... Seu vulto ao longe
Escondeu-se
onde a vista não alcança...
Mas
não penseis que o triste forasteiro
Foi
procurar nos lares do estrangeiro
O
fantasma sequer de uma esperança!...
Só depois que ele morreu, ela casou,
sem achar entretanto a felicidade, porque veio a enlouquecer. No seu delírio
não lhe esquecia o amor passado, conservando todas as relíquias dele — flores,
fitas, desenhos e poesias — que lhe segredavam ainda as lembranças do seu
poeta. Amor divino, que sobreviveu a duas mortes, do coração amado e da razão
amante, que não devíamos omitir sem ingratidão. Essa aventura de Leonídia terá
na vida de Castro Alves o cheio suave e terno das flores do campo, entretanto
penetrante e vivaz, como o daqueles Perfumes que ela lhe inspirou.
Tornou à Bahia, não a buscar "o
fantasma sequer de uma esperança", como ele dizia à sua serrana, mas veio
achá-la. Cercou-o no palacete da rua do Sodré não só o carinho da família, mas
a admiração de toda a sociedade culta da Bahia. Nem lhe faltou a sua corte
predileta, a das mulheres, que o amaram sempre. O seu prestígio era tamanho
que, nas festas a que concorria, nenhuma moça se comprometeria a dançar antes
que o Castro fixasse a sua escolha. Ele já não dançava, impedido pelo seu pé
artificial, dissimulado porém incapaz, mas enquanto os pares revolteavam pelos
salões, conversava com a dama que distinguira e que as outras todas invejavam.
Foi nesse meio que se lhe deparou o
último amor. Era uma jovem e formosa italiana, atriz que viera com uma
companhia lírica e na sociedade da Bahia ficara a ensinar piano e canto.
Passados trinta anos, conheci-a, Agnese Trinci Murri, que ainda vive, na Itália
— e pude compreender toda a paixão do poeta. Era alta, esbelta, alva como um
mármore de Carrara, mãos aristocráticas, olhos e cabelos negros, boca e voz
deliciosas — a boca e a voz das florentinas — principalmente tinha o coração
sensível e dado à admiração. "Ela foi todo o encantamento, toda a ocupação
do derradeiro período da sua existência. Foi a sua Consuelo, com Aquela mão".
Consolo em que o coração do poeta pôde aliviado adormecer, coroada a fronte dos
louros que ele quisera:
Uma
noite sonhei que, em minha vida,
Deus
acendia a estrela prometida,
Que
leva os Reis ao berço da ventura,
Mas,
quando, ao longe da poema estrada,
O
suor me escorria da amargura...
Passava
em meus cabelos perfumada
Aquela
mão tão pura!
Durante um temporal, deslembrado do perigo
de coriscos e vagalhões, nela somente pensa:
Que
importa o vendaval, a noite, os euros,
Os
trovões predizendo o cataclismo...
Se
em ti pensando some-se o universo,
E
em ti somente eu cismo...
Parecia entretanto inacessível. Num
sarau literário, ao escol da Bahia, reunido em casa amiga do Conselheiro Prof.
Salustiano Ferreira Souto, Castro Alves recitou ao piano, acompanhado em
surdina por sua irmã Adelaide, e em frente
Ela?!
bela a fazer a terra inteira louca
Alma
feita de um astro! e o corpo de um jasmim
a quem de público fazia a mais efusiva
declaração de amor que se pode imaginar, e para quem apaixonado apelava
Só
vós, bela diva! da música aos trenos
Meu
pálido sonho podeis aquecê-lo
Afogue-se
a musa nas asas brilhantes
E
se inda tu queres
Sonhar
Consuelo
Co'as
mãos no piano, co'os olhos no espaço
Trementes
os seios, revolto o cabelo
Num
mar de harmonias nos leva a Sorrento
Desperta-me
a Itália!
Revive
Consuelo!
"Um frêmito de entusiasmo
percorreu todo o auditório e mais se acentuou quando a eleita erguendo-se
palpitante sob a comoção que a dominava chegou-se por sua vez ao piano e
"Na voz clara, sonora, ardente, larga,
extensa
Escada
de Jacob — prendia a terra ao Céu!"
respondeu-lhe com a balada do
"Guarany": "Tutti dobbiamo amar... Não sei de declaração de amor
feita com tamanho esplendor" diz-me a irmã do poeta, que para mim evocou a
cena.
Entretanto esse amor foi até o fim,
como devia ser, casto e respeitoso. O poeta acusa a amada de fria,
"bronze" ou "gesso", "mármore florentino", que
terá "Remorsos" por lhe ter negado um beijo. Mas ela, pelo respeito à
sociedade que a acolhera e estimava, impôs silêncio ao coração e não pôde
coroar o amor do poeta com a sagração que merecia e que ela sofreu não lhe dar.
É ela ainda quem lhe inspira Noite de maio, A um Coração, A Virgem dos
últimos Amores, Remorsos, Em que pensas, Gesso e bronze...
O poeta poderia entretanto dizer numa
das suas últimas poesias:
E
— perto de morrer — a amar anseio ainda!...
Esse a que se refere é, porém, o amor sagrado,
que ele votou, e lhe foi retribuído, pela mais santa e dedicada das irmãs, que
em vida o animou, o protegeu, o admirou, velou-lhe as insônias, consolou-lhe os
pesares, deu-lhe a confiança na glória, e, ainda agora, quase cinquenta anos
depois que ele se extinguiu, chora-lhe a lembrança, exalta-lhe a memória, com
um fervor que só alto e grande coração, digno de gênio de Castro Alves, seria
capaz. É Dona Adelaide de Castro Alves Guimarães, a irmã mais querida do poeta,
também poetisa, musicista, desenhista, de fino gosto artístico, viúva do Dr.
Augusto Álvares Guimarães, amigo e companheiro dedicado de Castro Alves,
jornalista de nomeada na campanha liberal da Abolição. Ela será, ainda por
longos anos, a zeladora dessa memória sublime, até que seja Castro Alves
inteiramente possuído por aquele Último
Fantasma dos Anjos da Meia-Noite,
que ele vira em sonho, que "buscara do Sul ao Norte", "bela e
branca desposada", o eterno amor, — a Glória! — que ele mereceu, e que
finalmente alcançou.
A GLÓRIA DE CASTRO ALVES
Castro Alves, não vacilo em o
proclamar, é o primeiro poeta nacional: foi o poeta da minha adolescência! Se
esta é a razão das nossas preferências durante a vida, segundo a aguda
observação de Anatole France, sou imediatamente levado a acrescentar que ele
foi, neste meio século, o poeta do maior número de brasileiros, porque nenhum
logrou o favor de tantos leitores. Impressionava a José Veríssimo — e agora a
Alberto de Oliveira — o número de edições dos versos dele e tanto que, a seu
pedido, investiguei uma bibliografia do poeta, que o crítico não chegou a
conhecer. Contudo, no seu livro póstumo, a História
da Literatura Brasileira lá vêm aludidas "oito ou dez edições"
das Espumas Flutuantes, o que faz
dizer "poucos livros brasileiros e menos de versos têm sido tão
lidos". Veríssimo ficou aquém da realidade, porque, só no Rio, consegui
examinar nada menos de vinte e três, mais do dobro da parada, sendo algumas
delas, como as de Garnier, de muitos milheiros de exemplares: de todas as suas
obras cinquenta edições. Nenhum poeta, nenhum escritor brasileiro, alcançou
sequer aproximar-se dele.
Não só é o mais lido dos nossos
poetas, como é o melhor e o deles mais intimamente querido. Sacudia Lamartine
com desdém os ombros aos seus censores: "tenho por mim as moças e os
rapazes!" Além destes, Castro Alves tem ainda as pessoas graves e os
homens sisudos. Cada um de nós terá provas deste acerto; cito de passagem dois
fatos. Tornava de viagem à Europa e um dos meus companheiros de vapor, sábio de
nascença que a vida desviara para a alta finança, apesar da idade e das
responsabilidades, recitava-me poesias inteiras de Castro Alves. Ainda há
poucos dias ouvi, numa sala severa da Corte de Apelação, venerando juiz e
jurisconsulto declamar, a propósito de um incidente da vida sentimental do
poeta, as estrofes candentes do Immensis
orbibus anguis. Este fervor já tem cinquenta anos e não diminuirá, porque
as edições e os eleitores se sucedem, mudados, é verdade, como diria o nosso
Constâncio Alves, outro, e dos maiores, devotos do poeta; mas tantas são as
razões de admirar que o culto é, e há de permanecer, inalterável.
Acordara cedo Castro Alves. Na
adolescência há como que um estonteamento de emoções e de ideias, sensações
cuja novidade deliciosa nos tira o sono, pensamentos cuja reflexão não
conseguiu ainda exprimir-se em forma precisa. A ênfase será sempre pecado dos
vinte anos; a caudal de um talento ainda latente, na represa de ambição que não
achou seu caminho, ferve em cachão, e a veia líquida, que primeiro lhe deriva,
há de ser turva e revolta. Por isso a mocidade dele — dizia José de Alencar a
Machado de Assis, — era uma divina impaciência. Essa ânsia de dizer tudo o que
nos sufoca, na expressão de nossas tumultuosas e atrevidas emoções, faz aos
jovens não só enfáticos, mas obscuros, apocalípticos, absurdos: nunca
mesquinhos. Nem sempre os entendemos: haverá contudo outros moços que os
entendam, possuídos do mesmo delírio, o que lhes dá uma clarividência de
intuição que a razão estreita não pode explicar.
É por isso que os autores difíceis —
as sibilas, os profetas, os místicos, os metafísicos, os simbolistas — têm nos
efebos os seus adeptos mais fervorosos, devotos que os compreendem de primeira
mão. Não há dificuldades para um cérebro de dezoito anos; nessa idade a
admiração prescinde da razão e adora exatamente porque não pode perceber. Não
há glória mais duradoira e mais estridente do que a desses autores felizes,
porque terão por si a fiel mocidade, eterna, ainda quando arrependida nas
idades menos belas e menos tontas, que lhe sucedem.
A ênfase de Castro Alves era porém
compreendida por todos, pois que o país atravessava todo ele a sua crise de
puberdade, com as veemências do romantismo literário, com a exaltação
humanitária do abolicionismo, com a idealização liberal da república...de sorte
que aquelas "bombas" atiradas à multidão repercutiam em ânimos
preparados nos ecos retumbantes da vitória e da aclamação.
O seu público, a multidão das praças e
dos teatros, não desejava senão isso. De Bocage, o improvisador popular, disse
Garrett: "mais ele repetia eternidade, orbes, fúrias, górgonas, mais
dobrava o aplauso, delirava ele, mais o admiravam; ao cabo nem ele a si, nem os
outros a ele, o entendiam". O nosso Castro Alves era sentido, se não entendido,
quando se arroubava e arrebatava os outros, clamando pelo porvir, no arrebol,
ao infinito, sobre os Andes, para a amplidão... Contudo, a imagem nunca lhe
saiu ridícula, ainda quando absurda. O Jeová que fez a América é "um
estatuário de colossos". O continente que desperta, "molhado ainda do
dilúvio, tem "os Andes petrificados", "como braços
levantados" "que apontam para a amplidão", isto é, que lhe
apontam para a sublimidade dos seus ideais. "O livro é um audaz guerreiro,
que conquista o mundo inteiro, sem nunca ter Waterloo". "Num poema
amortalhado, nunca morre uma nação". "Quando o tempo entre os dedos,
quebra um século, uma nação, encontra nomes tão grandes, que não lhe cabem na
mão". "O motim, Nero profano, no ventre da cova, insano, mergulha os
dedos cruéis. Da guerra nos paroxismos, se abismam mesmo os abismos e o morto
morre outra vez!" A noite e os astros, debruçados do céu, contemplam a
pugna da Independência. É "o inglês, marinheiro frio, que ao nascer no mar
se achou, porque a Inglaterra é um navio, que Deus na Mancha ancorou". A
França é muito pequena "p'ra conter tantos heróis". "A terra é
como um inseto friorento, dentro da flor azul do firmamento, cujo cális
pendeu!"
E sempre assim, para falar como ele,
proceloso, magnífico, divino! Com esse verbo heroico e genial fez a campanha da
abolição, maior que Pedro II, que Paranhos, que Nabuco, porque falas do trono,
leis preparatórias, arengas parlamentares, não moveram tanto a opinião
nacional, de adultos endurecidos no egoísmo do interesse, como esses versos
martelados em bronze, essas rimas estreladas de pranto, que se dirigiam aos
adolescentes e às mulheres, idade e sexo do entusiasmo e da generosidade,
preparando então essa aspiração nacional — que não o era então — a abolição da
escravatura, — mas que viria a sê-lo, de fato, dez a vinte anos depois. Os
jovens brasileiros do tempo de Castro Alves, e depois dele, tocados da sua
graça, contaminados de seus arroubos liberais, formaram duas décadas após, a
geração dos libertadores.
Depois de servir à causa nacional com
que foi o único poeta heroico que possuímos, ainda o gênio lhe sobrou para
servir a própria causa, coroando-se o maior dos nossos poetas líricos.
Demonstrou José Oitica, dos mais lúcidos de seus críticos, que dele provem, e
ele melhor representa, a poesia genuinamente nacional. Indianista, colonial,
portuguesa, arcádica, clássica... o que quiserem... até aí, com os que o
precederam, só com ele é verdadeiramente brasileira. Apenas Casimiro de Abreu e
Fagundes Varela, com sinceridade, mas sem o mesmo prestígio, se aproximaram
dele.
Pela primeira vez a nossa natureza
refletiu-se em estrofes magníficas. Contaram-me que um dia, a Eça de Queiroz,
lera Eduardo Prado as Aves de Arribação:
Às
vezes, quando o sol nas matas virgens
As
fogueiras das tardes acendia...
O grande artista deteve o outro, para
exclamar:
—
Ai está, em dois versos, toda a poesia dos trópicos!
Nos outros, em muitos dos outros de
Castro Alves, está toda a poesia do Brasil. Poesia inata, vivida, sentida, não
imitada de livros lusitanos, ou copiada de modas francesas, como esses versos
sem poesia que tanto por aí encontramos.
Que
flores de ouro pelas veigas belas!
Foi
um anjo com a mão cheia de estrelas
Que
na terra as perdeu.
..........................................
A
surdina da tarde ao sol, que morre lento...
..........................................
Ontem
à tarde, quando o sol morria,
A
natureza era um poema santo.
De
cada moita a escuridão saía,
De
cada gruta rebentava um canto
Ontem
à tarde quando o sol morria
..........................................
Estava
aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam
as silvas da campina...
E
ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se
a noite plácida e divina...
Poderia multiplicar os exemplos. Se em
vez dos quadros da natureza, interrogarmos a elevação do pensamento, ficamos
espantados dessa facilidade do conceito filosófico que nos mostra um mundo
interior tão formoso quanto o outro que via cá fora o poeta. Poetas filósofos
teríamos a louvar outros — Antero do Quental ou Raimundo Correia, — porém não é
isto a que nos referirmos, mas à produção surpreendente que das imagens e dos
fatos é librada logo a uma ideia geral, lei ou conceito moral, de uma beleza às
vezes incomparável: em nossa língua, só Camões se lhe compara nesse talento. O
gênio é com o Ahasverus:
Invejado!
a invejar os invejosos...
.....................................
E
sempre a caminhar... sempre a seguir...
.....................................
Mas
quando a terra diz: — Ele não morre"
Responde
o desgraçado: — Eu não vivi..."
.....................................
...
aos heróis — aos miseráveis grandes
Há
duas coisas neste mundo santas
O
rir do infante e o descansar do morto...
Pois
eu sei que o filho torpe
Faz
o morto soluçar...
.....................................
Quando
o tempo entre os dedos
Quebra
um séc'lo, uma nação,
Encontra
nomes tão grandes
Que
não lhe cabem na mão!
O
século — traça que medra
Nos
livros feitos de pedra
Rói
o mármore cruel
.................................
O
tempo — Átila invisível
Quebra
com a pata insensível
Sarcófago
e capitel.
.................................
E
me curvo no túmulo das idades
Crânios
de pedra cheios de verdade
E
da sombra de Deus.
.................................
P'ra
nós o vento da espr'ança
Traz
o pólen do porvir...
.................................
O
óleo que lava os pés do Cristo
É
uma reza também de pecadora
.................................
...ser
formosa é ser melhor ainda
E
se és boa — és luz... mas, se formosa, estrela
Pôde por isso Antônio Nobre chamá-lo
"o primeiro poeta brasileiro": sem contradição válida dos
contemporâneos.
Para compreender esse prodígio de
expressão das cenas da natureza, da elevação do pensamento, das intimidades do
coração, em rapaz que viveu apenas vinte e quatro anos, num terço dos quais
realizou essa obra maravilhosa que ainda agora nos comove e nos entusiasma,
pensei que a beleza e o gênio, com que nasceu, e se lhe desenvolveram no seu
torrão, tiveram seu desabrochar e sua maturidade apressados pelo amor, com que
viveu, gozou e sofreu, como se tivera longa vida e esforço de sobra, para
traduzir fielmente seus encantos e mágoas.
Foi só por isso, para vos proclamar
uma, que eu quis por miúdo vos dizer da outra, que a explica, e a faz entender,
que vos entretive aqui sobre a Paixão e a Glória de Castro Alves.
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