Os predecessores do Romantismo: Os poetas
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Verdadeiramente é do século XIX
que podemos datar a existência de uma literatura brasileira, tanto quanto pode
existir literatura sem língua própria.
Se a Independência do Brasil
oficialmente começa em 1822, de fato a sua autonomia, e até hegemonia no
sistema político português, data de 1808, quando, emigrando para cá, a dinastia
portuguesa, na realidade, fez do Rio de Janeiro a capital da monarquia.
Virtualmente o Império do Brasil estava criado desde que o príncipe regente, D.
João, realizando um velho, intermitente mas nunca desvanecido pensamento
político português, proclamou que o seu protesto contra a violência napoleônica
se erguia do seio de um novo império.
Ardores e alentos novos criou
então o povo que há três séculos se vinha aqui formando e cuja consciência
nacional, desde o século XVII, com as guerras holandesas, entrara a despontar.
O fato do Ipiranga, precedido da singular situação resultante da estada aqui da
família real e consequente transformação da colônia em reino unido ao de
Portugal, perfizera essa consciência e lhe influíra a vontade de existir com a
vida distinta que faz as nações. Em tais momentos, como em todos os partos, são
infalíveis as roturas. Deu-se aqui o rompimento entre brasileiros e
portugueses, pode dizer-se o levante de uns contra outros, fenômeno necessário
da separação dos dois povos. Para completá-la devia esse sentimento
forçosamente interessar a todos aos aspectos da vida do brasileiro, até aí
comum com a do português, e as várias feições do seu pensamento e sentimento.
Não foi maior a rotura porque o fato político que a produziu foi antes uma
transação que uma revolução e por se haver passado justamente no momento em que
a metrópole se afeiçoava ao mesmo modelo político adotado pela colônia. Em todo
caso, foi suficiente para diferençar desde então como entidades políticas
distintas portugueses e brasileiros.
Exageravam estes a ruindade da
administração colonial, aumentavam-lhe com as mais deslavadas hipérboles de um
patriotismo exaltado os vexames e as incapacidades. Aos seus olhos, com a
importância de metrópole, perdia também Portugal o prestígio moral e mental, de
criador, educador e guia dessa sociedade que aqui se emancipava.
Era precisamente a hora em que na
Europa, na verdadeira Europa, em Alemanha, em Inglaterra, em França,
manifestavam-se claramente já os sinais da renovação literária que iria
interessar todos os aspectos do pensamento e ainda do sentimento europeu: o
Romantismo. Quaisquer que hajam sido os seus motivos e característicos, sejam
quais forem as definições que comporte (e inúmeras lhe tem sido dadas), o
Romantismo foi sobretudo um movimento de liberdade espiritual, primeiro, se lhe
remontarmos às últimas origens, filosófica, literária e artística depois, e
ainda social e política. Em arte e literatura seu objetivo foi fazer algo
diferente do passado e do existente, e até contra ambos. Excedeu o seu
propósito, e em todos os ramos de atividade mental, até nas ciências, foi uma
reação contra o espírito clássico, que, embora desnaturado, ainda dominava em
todos.
Iniciou-se na Alemanha pelos
últimos vinte e cinco anos do século XVIII. Reinava então em Portugal o pseudoclassicismo
da Arcádia. No Brasil cantavam os poetas mineiros, alguns deles românticos por
antecipação, mas em suma era o mesmo Arcadismo o tom dominante nas letras. Da
Alemanha irradiou por Inglaterra e França. Nestes países as suas primeiras
manifestações consideráveis são já do princípio do século XIX. Só quase vinte e
cinco anos mais tarde começaria a sua influência a se fazer sentir em Portugal,
onde as suas ainda indecisas manifestações datam exatamente do princípio do
segundo quartel do século. Com a sua terceira década entra ele no Brasil. Não
foi, entretanto, de Portugal que o recebemos, senão de França, que ia ser e
permanecer a principal fornecedora de ideias, de sentimentos e até de estilo à
nossa literatura.
Mas entre o fim do renascimento
poético aqui operado (dentro aliás só de si mesmo e sem irradiação notável)
pela plêiade mineira e as primeiras manifestações do nosso Romantismo, isto é,
entre o último decênio do século XVIII e o terceiro do XIX, dá-se na poesia
brasileira uma paralisação do movimento que parecia prenunciar-lhe a autonomia.
Pode mesmo dizer-se que se dá um regresso ao estafado Arcadismo português.
Nunca tivera o Brasil tantos poetas, se a esses versejadores se pode atribuir o
epíteto. Relativamente aos progressos que já fizéramos, nunca os tivera tão
ruins, tão insípidos e incolores.
Nesta fase arrolam os historiadores
ou simples noticiadores da nossa literatura mais de vinte. Na vã presunção de
lhes emprestarem valor, pois não é crível que efetivamente lho encontrem, sobre
nomeá-los adjetivam-nos com qualificativos que a leitura dos seus poemas não só
desabona mas prejudica.
São, calando ainda bastantes
nomes, e na ordem cronológica, Francisco de Melo Franco (1757-1823), Antônio
Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), José Bonifácio de Andrada e Silva
(1763-1838), Silvério Ribeiro de Carvalho (1746-1843?), José Elói Otoni
(1764-1851), Fr. Francisco de São Carlos (1768-1829), Francisco Vilela Barbosa
(marquês de Paranaguá) (1769-1846), Luís Paulino Pinto da França (1771-1824),
Paulo José de Melo Azevedo e Brito (1779-1848), Januário da Cunha Barbosa
(1780-1846), Domingos Borges de Barros (visconde de Pedra Branca) (1780-1855),
João Gualberto Ferreira dos Santos Reis (1787-185?), Manoel Alves Branco
(visconde de Caravelas) (1797-1854), Joaquim José da Silva (?), Ladislau dos
Santos Titara (1802-1861), Álvaro Teixeira de Macedo (1807-1849?), Antônio
Augusto de Queiroga (1812-1855), Francisco Bernardino Ribeiro (1815-1837),
Joaquim José Lisboa (?).
A máxima parte destes compridos
nomes não despertará na memória do leitor, ainda ilustrado, reminiscência
literária alguma. É como se lhe citassem poetas chineses. Os que não morreram
de todo, de morte aliás merecidíssima, vivem apenas numa vaga e indefinida
tradição, mantida pelos professores de literatura. Algum raro amador das letras
pátrias, mais por curiosidade que por gozo literário, lerá ainda, ou melhor
terá lido, José Bonifácio, Elói Otoni, Fr. Francisco de São Carlos, Sousa
Caldas, talvez Pedra Branca. Os outros nem mais essa curiosidade despertam.
Tais como Pinto de França e algum outro, que, idos moços e até crianças para
Portugal, lá se criaram, educaram e deixaram ficar, são de educação e
sentimento portugueses, e português é o seu estro e estilo poético. Custa a
reconhecer nesta lista um verdadeiro poeta. Na grande maioria, são apenas
versejadores de mais ou menos engenho e arte, os melhores com a erudição
poética e literária comum aos doutos do tempo, com a qual, a custo e raro,
conseguem realçar a penúria do seu estro, sem disfarçar entretanto a
trivialidade do seu estilo poético, repetição insulsa e fraco arremedo do da
metrópole, então igualmente miserável. Já entrado o século XIX, versejavam
copiosamente odes, sonetos, epitalâmios, cantatas, glosas, liras, epigramas,
ditirambos, metamorfoses, epístolas, enfim toda a farta e extravagante
nomenclatura dos séculos passados. Versejavam sem inspiração nem sentimento,
artificialmente, por ofício ou presunção. Repetiam sem o talento de os renovar
os tropos e imagens da mitologia clássica e as formas estafadas de uma poética
anacrônica e obsoleta. Natividade Saldanha, com a falsa eloquência que de bom
grado confundimos com poesia, celebra os feitos e vultos patrícios com
reminiscência, epítetos, figuras e apelidos clássicos e pagão. É "a
fatigante ênfase do ditirambo histórico", de que fala Morley, aqui
vulgaríssima. A fecundidade poética de alguns é assombrosa. Ladislau Titara, de
1827 a
1852, publicou oito tomos em formato de 8.º de Obras poéticas, somando 1819 páginas de versos, e o seu irmão
Gualberto, em seis anos, quatro tomos do mesmo formato. Que exemplo a futuros
escritores!
À imitação do seu Horácio, que
sabem talvez de cor, mas cujo íntimo sentimento mal alcançam, e de cujo talento
andam afastadíssimos, e seguindo velhos hábitos arraigados dos poetas
portugueses, são-lhes motivos de inspiração fatos e datas de pessoas gradas, a
cuja benevolência armam com lisonjas metrificadas, elogios poéticos,
epitalâmios por casamentos, nascimentos e quejandos.
Sousa Caldas é certamente o
melhor deles todos, o mais vigoroso lírico dos predecessores imediatos do
Romantismo. Ele fez um trabalho considerável de erudito e poeta traduzindo em
vernáculo os Salmos atribuídos a Davi. Algumas dessas traduções não são em
verdade indignas dos louvores que é de praxe fazer-lhes. Não teria, porém, ideia
muito exata da poesia hebraica quem por elas houvesse de julgá-la. Mas, ainda
excelente, perderia o lavor do nosso patrício muito do seu valor pelo mesmo
desinteresse com que hoje a maioria dos leitores se dispensam de ler traduções
dos poemas de pura invenção religiosa e de uso devoto. Conquanto se digam
católicos, não é certamente neles que procuram nem acham a emoção estética de
que acaso sintam necessidade. Os Salmos de Davi, traduzidos pelo padre Sousa
Caldas para língua falada por muitos milhões de católicos, ficaram na primeira
e única edição. Publicados há noventa anos, não são ainda um livro raro.
Escreveu também Sousa Caldas Poesias
sacras e profanas, impressas no tomo II das Obras poéticas. Padecem as primeiras do mesmo percalço dos Salmos,
pois não é mais, se alguma vez foi, sob as formas e maneiras da poesia profana,
odes, cantatas e outras tais que buscamos a edificação religiosa ou a
satisfação estética para a nossa piedade. De resto, em nossa gente o sentimento
religioso não foi jamais tal que comportasse a espécie de deleite proveniente
da leitura e meditação dos poemas bíblicos versificados em vulgar. Mais devotos
que religiosos, preferimos sempre as aparências e exteriorizações da religião
sob a forma oral dos sermões ou visual e sensitiva das pompas cultuais.
Como poeta profano, Sousa Caldas
se não extrema dos portugueses seus contemporâneos, se bem valha mais que
qualquer dos seus patrícios coevos. E, salvo os mineiros, mais que todos os
poetas seus antecessores. É mais correto e mais rico versejador que estes, e
sobretudo mais vernáculo. Sob o aspecto da língua pode, entre os brasileiros,
passar por distinto. As suas produções originais consideradas melhores são a
cantata Pigmalião e a ode Ao Homem Selvagem. Àquela infelizmente
se depara na cantata Dido, de Garção,
um desfavorável confronto. A ode Ao homem
selvagem, essa é realmente formoso transunto das ideias de Rousseau, em
sustentação das quais foi escrita. Os seis sonetos que nos deixou Sousa Caldas,
sem distinção alguma, antes lhe desabonam que lhe acreditam o estro.
À imitação das Lettres Persannes,
de Montesquieu, Sousa Caldas escrevera uma obra em prosa de filosofia prática e
moral em forma epistolar. Dela apenas nos restam duas cartas que não bastam
para autorizar um juízo do seu trabalho. Revela-se contudo aí escritor fácil,
castiço e, para o seu tempo, meio e estado, espírito liberal e tolerante.
Versam justamente essas duas cartas sobre a atitude da Igreja perante os
escritos contrários à sua moral e dogmas, o que o leva a considerar o tema
geral geral da livre expressão do pensamento. Fá-lo Sousa Caldas com aquele
latitudinarismo que foi sempre a marca do ultramontanismo franco-italiano.
Não pode divergir muito o juízo
que devemos fazer de José Elói Otoni, que, como Sousa Caldas, foi poeta sacro e
profano. Mas o foi com menos talento, e principalmente, com menos vigor. As
suas traduções dos pseudos Provérbios de
Salomão e do Livro de Jó, feitos
do latim da Vulgata, são antes
paráfrases que traduções. Não há achar-lhes o sabor que do original parecem
guardar algumas traduções diretamente feitas em prosa ou verso. As poesias
originais de Otoni não destoam da comum mediocridade da poesia sua
contemporânea. José Elói Otoni nasceu na cidade do Serro, em Minas Gerais , em
1764. Depois dos primeiros estudos em sua terra, esteve na Itália e em
Portugal, onde ainda voltou duas vezes em outras épocas de sua vida, vindo a
falecer no Rio de Janeiro, num emprego público subalterno, em 1851.
Um frade franciscano fluminense,
Fr. Francisco de São Carlos, compôs pela mesma época, "em honra da Santa
Virgem", segundo reza o título, um poema, A Assunção, que é uma das mais insulsas e aborridas produções da
nossa poesia. Em oito estirados cantos de versos decassílabos, rimados
uniformemente em parelha, monotonia que é aumentada pela pobreza das rimas e
geral mesquinheza da forma, descreve o poeta a Assunção da Virgem desde a
ressurreição do seu túmulo, em Éfeso, até à sua chegada ao Paraíso, através de
várias peripécias maravilhosas por ele imaginadas. O poema é do princípio ao
fim prosaico, sem se lhe poder tirar algum episódio ou trecho realmente belo, a
inventiva pobre, balda de novidades ou grandeza, a língua mesquinha e vulgar.
Entretanto críticos houve que o acharam digno de rivalizar com o Paraíso Perdido, de Milton, e a Messíada, de Klopstock, e não duvidaram
de qualificá-lo de "poema eminentemente nacional" e de considerá-lo
como "um dos monumentos que nos legou a geração passada (do princípio do
século XIX) para a formação da nossa literatura". Chamar-lhe "poema eminentemente
nacional", porque introduziu nas suas descrições frutas, plantas e animais
do Brasil e alguns aspectos da natureza brasileira, é equivocar-se sobre o
sentido da expressão. O vezo de cantar as coisas da terra, de nomeá-las,
citá-las ou descrevê-las, às vezes comovidamente, mas também às vezes sem
emoção alguma, era velho na nossa poesia. Vinha, conforme mostramos, dos fins
do século XVI; praticou-o Durão no Caramuru, cultivaram-no alguns dos poetas
mineiros e outros. Tal sestro revia o despontar do sentimento nativista e o seu
sucessivo desenvolvimento. Ao tempo de Fr. Francisco de São Carlos era já tão
comum o emprego desse recurso poético, que nada tinha de particularmente
notável. Tanto mais que o usou o franciscano poeta sem a menor distinção.
Apenas continuava uma tradição criada, da qual há exemplos noutros poetas seus
contemporâneos deste infausto período das nossas letras, como na Discrição curiosa, do ruim poeta mineiro
Joaquim José Lisboa. E como a continuava sem a relevar por quaisquer virtudes
de fundo ou de forma, fazendo apenas nomenclaturas áridas, não sabendo tirar
desse expediente nenhum partido estético, não lhe pode servir isso de
recomendação ao seu insípido poema. O que era nos seus predecessores novidade
interessante, reveladora de um sentimento, uma emoção, uma inspiração nova na
poesia portuguesa, era nele simples repetição, não levantada por algum talento
superior de expressão.
Destas duas dúzias de poetas
menores, o único, além de Sousa Caldas, que porventura se destaca por uma
inspiração mais sincera e dons de expressão que o extremam, é José Bonifácio de
Andrada e Silva, o José Bonifácio, principal cooperador da nossa independência
nacional. As circunstâncias que o fizeram e em que foi poeta, lhe explicam o
destaque.
José Bonifácio nasceu em Santos,
São Paulo, aos 13 de junho de 1763. Feitos os seus primeiros estudos no Brasil
e completos os seus dezoito anos, passou-se a Portugal, e ali, em Coimbra, se
formou em filosofia e leis. Fundada em 1774, pelo duque de Lafões, a Academia
Real das Ciências de Lisboa, foi, com o patrocínio daquele magnata, seu membro
e depois secretário. Ao mesmo apoio deveu a comissão especial de estudar nos
principais centros científicos europeus ciências naturais e metalurgia. Dez
anos empregou nestes estudos, percorrendo os principais países da Europa, onde
os podia com mais proveito fazer. De volta a Portugal, foi nomeado intendente
geral das minas, com a graduação de desembargador, recebendo também o grau de
doutor em ciências naturais e o encargo de inaugurar na Universidade de Coimbra
uma cadeira de metalurgia e geognosia, a qual regeu até à invasão francesa de
1807. Criado, por motivo desta invasão, um batalhão acadêmico, foi dele José
Bonifácio major e logo depois tenente-coronel. Mais tarde serviu o cargo de
intendente de polícia do Porto. Em 1819 retirou-se, com licença, para o Brasil.
Vivia em, sua província natal, quando sobrevieram os acontecimentos de 1820 e
1821 e começaram no Rio de Janeiro os primeiros movimentos da Independência.
Estes despertaram-lhe o sentimento nacional, acaso adormecido por cerca de
quarenta anos de existência portuguesa. Fez-se parte conspícua nesse movimento,
do qual foi, com D. Pedro, o principal protagonista. Como ministro e
conselheiro muito ouvido do recém fundado império e deputado à sua assembleia
constituinte, teve um grande papel nessa primeira fase da construção do país
sob o novo regime, sendo, pelos seus talentos e capacidades, a primeira figura
dela. A excessiva energia que, como primeiro-ministro, empregou contra os seus
oposicionistas, ia comprometendo a causa que tão bem servira. Em todo caso
motivou a excitação dos ânimos que produziu os sucessos donde resultou a
demissão de José Bonifácio e o seu exílio.
Era José Bonifácio uma natureza
pessoalíssima, de índole autoritária e violenta. Como todos os políticos do seu
temperamento, tanto era despótico no poder como abominava o despotismo em não
sendo ele o déspota. Nimiamente orgulhoso e demasiado convencido da sua
superioridade, aliás real, no meio político donde o expulsavam, doeu-lhe
profundamente o exílio a que o constrangiam os seus adversários, desterrando-o
da pátria cuja independência, com mais presunção que razão, exclusivamente se
atribuía. Encheu-se de despeito e raiva contra o soberano, a quem com mau gosto
reprochou de ingrato, contra os políticos seus adversários, e até contra a
pátria. Foi neste estado d'alma de homem que se crê indispensável e a quem
dispensam, de homem soberbo de si e humilhado pelos mesmos a quem se julgava
proeminente e tinha por seus devedores, que repontou em José Bonifácio ,
aos sessenta e dois anos, o estro poético de que já dera amostras quando
estabelecido em
Portugal. Facit indignatio versum. Em Bordéus, em cujos
arredores se fixara durante o exílio, publicou o volume das Poesias avulsas, de Américo Elísio, em 1825. A sua forte e não
comum cultura literária e científica, e grandes experiências da vida,
fortificaram-lhe o engenho poético. A paixão real fez o resto. Era um
apaixonado e estava apaixonado. Aquela deu-lhe aos versos, não obstante o
ressaibo arcádico que se lhe descobre no estilo, no feitio e até na alcunha com
que se disfarçou o autor, uma vida, uma emoção, uma sinceridade como se não
encontra em nenhum dos poetas seus patrícios e contemporâneos, e que fazem dele
acaso o único que tem personalidade e que, por isso, possamos ouvir ainda hoje.
Ao contrário de toda a poesia do tempo, a sua, ao menos a inspirada da sua
situação atual, é pessoal, vibrante das suas paixões políticas e patrióticas e
dos seus mesmos sentimentos egoístas, do seu orgulho, da sua soberba, da sua
vaidade malferida, e que ele não procura dissimular. Soam nelas queixas,
reproches, imprecações e brados pela liberdade que ele próprio, de essência
despótico, recusara aos seus antagonistas quando no poder. E mais, sem embargo
de queixas e exprobrações que chegam à negação da pátria,
Morrerei no desterro em terra estranha,
Que no Brasil só vis escravos medram:
Para mim o Brasil não é mais pátria,
Pois faltou à justiça.
Vivíssimo amor dela e fervorosos
anseios por ela. Ainda quando, por distrair-se das suas angústias de repúblico
despeitado, recorre aos prazeres reais ou imaginários de que Baco era o patrono
clássico, o pensamento saudoso e amargurado se lhe volve à pátria distante:
Em bródio festivo
Mil copos retinam;
Que a nós não nos minam
Remorsos cruéis;
Em júbilo vivo
Juremos constantes
De ser como dantes
À pátria fiéis
.........................................
Gritemos unidos
Em santa amizade
Salve, ó liberdade!
E viva o Brasil!
Sim, cessem gemidos,
Que a pátria adorada
Veremos vingada
Do bando servil.
A sua forte cultura, desempeçada
do caturrismo português por longo comércio com a melhor da Europa, e aliviada
do aparelho escolástico e clássico pela sua paixão, deu-lhe à expressão poética
mais calor, mais vida e movimento do que tinha a do tempo. Há versos seus que,
pela liberdade e personalismo da sua inspiração, pelo subjetivismo dos
sentimentos, exuberância usual da expressão e despejo de apetites, como que
aventam já o Romantismo. A sua ode A
Natureza, no seu sincretismo do pseudoclássico com o que se chamava
romântico nas terras por onde José Bonifácio peregrinou, é exemplo e testemunho
de que nele a nova corrente literária começava, ainda a despeito seu, a
influir. Lembre-se que José Bonifácio traduziu para nova língua, em verso, o
pseudo Ossian, um dos ídolos do Romantismo.
Manifestações patrióticas como as
de José Bonifácio, mas sem a vibração das suas, são aliás comuns na poesia
desta fase. Raro será dos citados o poeta em que se não deparem. Ainda
portugueses pela retórica, são já brasileiros pelo coração. Vimos como Caldas
Barbosa, predecessor imediato desses poetas, não obstante as condições em que
se lhe desenvolveu o engenho e em que poetou, conservou um íntimo sentimento da
sua terra e espontaneamente o exprimia. O poema de Fr. Francisco de São Carlos
superambunda de manifestações do mesmo sentimento. Joaquim Lisboa consagra à
terra natal uma descrição em verso, da qual aliás só se salva a intenção.
Bartolomeu Cordovil celebra em seus poemas as coisas e melhorias do seu Goiás.
Natividade Saldanha, esse mais que todos, canta as glórias do seu Pernambuco e
os seus heróis, comparando-os aos da poesia e história clássicas. De envolta,
celebrando o Brasil, proclama aos brasileiros:
Ó jovens brasileiros,
Descendentes de heróis, heróis vós mesmos
Pois a raça de heróis não degenera,
Eis o vosso modelo:
O valor paternal em vós reviva
A pátria que habitais comprou seu sangue,
Que em vossas veias pulsa.
Imitai-os, porque eles no sepulcro
Vos chamem com prazer seus caros filhos.
Vilela Barbosa festeja a
primavera do seu "pátrio Brasil", retoricamente ainda, mas revendo o
sentimento, desajudado de engenho, que o inspirava. O mesmo é exato dizer do
Cônego Januário da Cunha Barbosa, cujo talento era também muito inferior às
suas boas intenções e cuja obra, em todos os gêneros medíocre, apenas tem o
mérito destas. A poesia brasileira deve-lhe entretanto um inestimável serviço,
a compilação e publicação do Parnaso Brasileiro,
com que salvou de total perda grande número de produções dos nossos poetas da
época colonial.
A atividade destes poetas é toda dos últimos anos do século
XVIII e dos trinta primeiros do XIX. Muitos deles viram as suas obras
publicadas, já em volume, já em coleções ou periódicos, na mesma época em que
as compuseram. As de outros correram manuscritas ou impressas em folhas
avulsas. Afora a tendência assinalada de celebrar a terra, com um mais vivo
sentimento do que se pode chamar a sua capacidade política, com que continuavam
a inspiração nativista de desde o início da nossa poesia, não há nesta fase
nada que a distinga da ruim poesia portuguesa contemporânea, ou que a aproxime
do que nesta havia de melhor. Excetuados José Bonifácio e Sousa Caldas, cuja
obra é mais sólida e revela mais talento, os mais são de fato insignificantes. Em José Bonifácio só
tem aliás valor os poemas inspirados da sua paixão de repúblico fundamente
ferido na sua soberba, ou em que ele mais misturou essa paixão. O resto se não
sobreleva à mediocridade comum. É de um árcade imbuído de filintismo.
Predecessores do Romantismo, não lhe são os precursores, pois bem pouco é o que
se lhes possa descobrir pronunciando o movimento que aqui se ia em breve
iniciar, e do qual alguns destes poetas foram contemporâneos, inadvertidos. Não
souberam sequer continuar os mineiros, dos quais não há neles outro sinal que o
apontado, nem preceder os românticos. Ocupam apenas um vazio, a fase entre os
dois movimentos poéticos, sem o preencherem. E tomados em conjunto, não se lhes
sente na poesia impressão ou influxo da evolução que desde a chegada da família
real portuguesa se operava aqui, nem mesmo da independência cujos
contemporâneos e testemunhas muitos deles foram. Árcades de decadência,
mostraram-se verdadeiramente impassíveis, muito antes que o desinteligente
parnasianismo houvesse importado de Paris a moda de o ser de caso pensado.
Imagens:
Hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital
http://memoria.bn.br/
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