Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
1 - Incontestavelmente a simples pirataria e o corso
nos fizeram muito maiores males que o intento de aventureiros que pretenderam
fazer, em pontos do nosso litoral, os seus quinhões de conquista.
É evidente, aliás, que Villegaignon no Rio de
Janeiro, mais tarde la Ravardière no Maranhão, e depois os holandeses na Bahia
e em Pernambuco, todos criaram embaraços ao desenvolvimento dos núcleos que
estavam criados.
Todo esse mal, no entanto, se compensava por uma
vantagem do maior e mais extenso valor para os destinos da colônia: a presença
de tais concorrentes valeu, para os colonos afrontados, como um imperioso
estímulo de união e de esforço solidário na defesa comirm.
Naturalmente, essa necessidade de defender a terra
contra pretensões de estrangeiros teria de despertar entre os moradores o
instinto de posse, e logo, com esse instinto, exagerado no sacrifício, o
sentimento de pátria, que dele decorre.
De modo que se pode mesmo entender que,
indiretamente, esses intrusos nos fizeram mais bem do que mal.
O mesmo não se pode dizer da ação dos piratas e corsários. Estes, durante os dois primeiros séculos, foram os maiores flagelos das colônias portuguesas.
Primeiro, os especuladores associavam ao tráfico o roubo na costa: sempre que podiam, assaltavam embarcações desgarradas, ou prendiam carregamentos em baías desguarnecidas.
Depois, organizaram o grande negócio. Começaram pelo
corso. Este, que se disfarçava, a princípio, como recurso político, gerou a
pirataria de profissão, que não foi naqueles tempos, menos honrosa do que
muitos outros ofícios nobilitantes.
Tornou-se então o tráfego marítimo, um mister de
bandidos; só os que se dispunham a jogar a fazenda e a vida é que se atreviam a
correr os riscos de atravessar o oceano, mesmo em comboio.
Mas a ganância dos flibusteiros nem sempre se
fartava de presas no alto mar; e então foram passando a agredir povoações
desprotegidas da costa. A história da América (e dos dois oceanos) está
naqueles tempos pontuada de horrores.
Contra o nosso litoral os ataques se tornaram mais
frequentes, depois que Portugal ficou sob o domínio da Espanha (1580 a 1640).
2 - Desde os primeiros dias do domínio espanhol, começou o Brasil a ser alvo de ataques por parte de quantos tinham interesse não só em concorrer agora nos mares com os dois povos da península, como sobretudo, em hostilizar a absorvente grandeza da Espanha, quando menos dividindo-lhe as forças de guerra para longe da Europa.
Já havia aquele tremendo Francis Drake, o furioso
inimigo dos castelhanos, assolado as costas do Pacífico em 1577, quando uma
outra expedição inglesa se apressa a seguir-lhe os rumos, no intuito de ver que
partido se poderia tirar do comércio e da conquista no novo mundo e no Extremo Oriente.
Era esta expedição comandada por um Edward Fenton, e
compunha-se apenas de dois galeões, mas bem armados e guarnecidos.
Desceu Fenton pelos nossos mares fingindo procurar o
Pacífico; mas antes de chegar ao estreito de Magalhães, deliberou retroceder
sob qualquer pretexto, e veio entrar no porto de Santos, dissimulando as suas
intenções.
Desconfiados da visita, fizeram os moradores retirar
as famílias, e prepararam-se para qualquer eventualidade.
Dentro de alguns dias tiraram o rebuço os bandidos e
resolveram tomar conta da vila. E tê-lo-iam decerto feito se não fora uma
coincidência providencial. Aconteceu que, ao mesmo tempo quase que a de Fenton,
saíra de Espanha a expedição de Diogo Flores Valdez, que vinha à caça do
temeroso Drake. Não tendo podido fazer a travessia do estreito, voltou Flores
Valdez para o Norte e de Santa Catarina, mandou um capitão (Andrés Higino) com
alguns navios correr a costa, por ter ouvido falar em corsários por estas
paragens. Estes navios vêm entrar no porto de Santos no momento em que os
ingleses iam executar o seu plano.
Entram logo em combate os navios contrários; e a
luta durou até o dia seguinte, quando os corsários se fizeram ao largo, e
desapareceram (1583).
Alguns anos depois, nova expedição depredadora vem
para a América, sob o comando de um Roberto Withrington. Desceu este até o
estuário do Prata, e ali capturou logo dois navios portugueses. Dali voltou
para o Norte, e de surpresa foi entrar na baía de Todos os Santos,
apoderando-se logo de algumas embarcações que ali carregavam.
A população, aterrorizada, só cuidou de fugir. Mas a
Junta inteira tratou de impedir o desembarque dos piratas.
Não tendo conseguido apossar-se da cidade,
procuraram os ingleses outros pontos do litoral, entregando-se durante cerca de
mês e meio a pilhagem desenfreada. Por sua parte, cobram ânimo os moradores, e
rebatem aos ímpetos dos inimigos.
Afinal, sentindo aquela resistência desesperada, e
havendo em vão tentado por vezes assaltar a cidade, retiram-se os flibusteiros,
depois de haverem, num furor de vândalos, devastado inutilmente muitas
povoações do Recôncavo.
3 - Logo depois, era a vila de Santos investida de
novo por piratas ingleses. É agora a vez do famoso Thomas Cavendish, o tipo do
ladrão dos mares, que sabia dar às suas façanhas e depredações uma cor de
elegância cavalheiresca, tornando-se popular, e sendo aplaudido, em vez de
renegado, pela própria aristocracia europeia.
Este bandido desalmado matava e destruía sem
proveito. Nesta segunda viagem à América do Sul perpetrou os maiores horrores e
devastações. Pela coisa mais insignificante, mandava prender à verga os míseros
que lhe caíam sob as mãos.
Já havia este, como Drake, feito (por 1585-1588) uma
viagem de volta ao mundo. Tendo esbanjado o fruto das suas proezas, deliberou
refazer-se ainda uma vez pelo corso.
Com alguns navios tomou caminho da América do Sul.
Da ilha de São Sebastião mandou gente a saquear a vila de Santos. Essa
quadrilha foi, pela madrugada de 25 de dezembro (1591), surpreender a população
na igreja, ouvindo a missa de Natal. Fecharam na igreja os moradores, e começaram
o saque. No outro dia, desembarcava o próprio chefe do bando.
Ali estiveram os piratas, arrecadando e destruindo,
durante mais de dois meses. Só se retiraram quando não havia mais nem víveres a
recolher. E antes de sair para o Sul, mandou Cavendish queimar os engenhos da
ilha.
Nem deu bem tempo o bandido a que reparassem de
todo, os moradores, aquelas destruições. As tormentas lhe dispersaram os
navios; e não podendo vencer o estreito, teve de voltar para o Norte, a bater
de novo as costas do Brasil.
Sem esperar pelos demais, vem ele com o capitânia
surgir na barra de Santos, fundeando "diante de um engenho sito à beira do
mar". Mandou uns vinte homens à terra, em busca de mantimentos.
Apreenderam logo uma lancha que estava no porto; encheram-na de víveres
recolhidos de grandes armazéns que ali havia, e mandaram tudo aquilo para
bordo, onde receberam a lancha — diz o cronista Knivet — "com mais alegria
do que se viera carregada de ouro".
4 - No outro dia, novo carregamento para bordo,
principalmente de açúcar e milho. O navio de Cavendish estava cheio agora.
Satisfeito com aquela abundância, ordenou ele àqueles homens que voltassem para
bordo.
Mas eles, que traziam fome longa e mal curtida,
entenderam que não deviam cumprir ordem tão mal avisada antes de haver
completamente varrido a terra.
Foi a desgraça dos insaciáveis ladrões:
surpreendidos por alguns portugueses e muitos índios, pagaram com a vida aquela
insânia de rapina, conseguindo salvar-se apenas um, que a nado alcançou o
navio.
Indignado com este desastre, ainda mandou Cavendish
à terra uns oitenta homens. Os moradores, porém, estavam agora prevenidos; e
não tendo probabilidade de tomar vingança, preferiu aquela malta tirar mais
proveito, pilhando algumas casas isoladas, e volvendo para bordo bem provida levantou
ferro o capitão pirata, tomando rumo norte, à procura do Espírito Santo, onde
contava fazer farta pilhagem.
Ao cabo de uma semana, foi surgir à entrada daquela
baía. Receoso, porém, não obstante o que afirmava um piloto português que fora
aprisionado, permitiu apenas o Almirante que fossem alguns mais afoitos
explorar em escaleres a paragem. Não se encontrou profundidade para os navios; e
o chefe corsário, julgando-se iludido pelo piloto, fez imediatamente, sem nenhuma
indagação, enforcar o pobre homem.
5 - A gente que tinha ido explorar a baía, contra as
ordens formais que levava, tentou aproximar-se da terra; mas foi recebida
hostilmente pelos moradores. Travou-se luta desesperada, perecendo a maior
parte dos ingleses. Dos que voltaram, "não havia um só que não estivesse
ferido de flecha". A própria gente dele, escarmentada, já discute as
ordens do comandante.
Este revés aniquilou de todo o ânimo do temeroso
bandido do mar. Além de ferido de tão rude golpe, apercebia-se, agora, de que
não tinha mais autoridade para dirigir aquele bando de sobreviventes
desalmados, entregues aos desvarios do seu infortúnio.
Saindo dali, não teve Cavendish a dita de rever a
pátria, falecendo durante a viagem para a Inglaterra — dizem que de doença, de
miséria e de remorsos.
Mas deixando o Espírito Santo, não rumou logo para a
Europa; voltou ainda, só com o seu navio, à ilha de São Sebastião.
Não quis o grande bandido deixar sem epílogo a vida
que vivera: naquela ilha abandonou os enfermos que iam a bordo. Eram umas vinte
criaturas, que nem podiam mais andar.
Entre esses desgraçados estava Antônio Knivet, o
marinheiro que depois ainda aventurou nos sertões, e nos deixou uma relação
muito curiosa das vicissitudes que sofrera.
Apesar de tais desastres, continuava o grande
negócio do tempo a estimular a ambição de aventureiros e a julgar-se pelos
créditos em que andava aquele banditismo heroico, tão cedo não conseguiriam as
colônias americanas libertar-se das contingências a que se achavam expostas.
6 - Poucos anos depois de Cavendish, preparam alguns
argentários de Londres uma outra expedição de corso, principalmente contra o
Brasil. Confiou-se o empreendimento a um James Lancaster, sujeito que se havia criado
e tinha vivido muito tempo em Portugal, de onde saíra com grande aversão aos portugueses.
Saindo de Londres (fins de 1594), ganhou Lancaster
uma das ilhas de Cabo Verde, a ilha de Maio, onde esteve muito tempo a capturar
navios que traziam a bandeira de Espanha. Teve ensejo ali de associar-se a
outro pirata (Venner).
Não tinham, pois, os salteadores perdido naquela
estação o seu tempo, nem malbaratado o seu heroísmo: e iam logo dali enviando
para a Europa os frutos que tão facilmente começaram a colher sem ter plantado.
Tendo recebido notícia de que os armazéns do Recife
estavam abarrotados de preciosas mercadorias da índia, resolveram Lancaster e
Venner tomar o rumo de Pernambuco, por não perderem aquele farto bocado tão a
alcance.
Ali chegaram alta noite (29 de março de 1595) com
doze navios e muita força de desembarque.
Conquanto surpreendidos, não esmoreceram os
pernambucanos. Abrigaram as famílias, e cuidaram de defender o Recife, onde
estava toda a fazenda que sabiam ser o alvo daquela investida.
Mas os piratas deram provas de incrível temeridade,
só explicável pelo fanatismo religioso, pelo ódio nacional, ou pela paixão de
fortuna (e eles tinham tudo isso junto a convulsioná-los!): o próprio
Lancaster, com algumas dezenas de homens escolhidos, em umas quantas lanchas,
toma de assalto o forte de São Jorge, o único obstáculo que lhe impedia a
entrada dos navios.
Desbaratados, mais de susto e terror que de armas,
tiveram os portugueses de fugir, abandonando o porto aos ingleses.
7 - Mas o tempo que ali passaram não tiveram os
piratas um instante de sossego, principalmente depois que Lancaster se recusou,
com desdém e insolência, a receber uns parlamentários dos pernambucanos.
Foi o Recife posto em cerco, mais apertado pela
gente agredida, infatigável
nos assaltos e emboscadas com que os ladrões se
viram dia e noite em grande atropelo.
No seu furor, inventaram os colonos toda espécie de
ardis contra aquele bando, ali fechado e tolhido na angústia do porto sem
deixar-lhe tempo mais que para aquela faina de encher à pressa os galeões.
Ao cabo de mais de um mês de ocupação do Recife,
prepararam-se afinal os salteadores para sair com os fartos despojos que haviam
recolhido.
Não quiseram, porém, deixar aquela terra sem punir
de escarmento o protesto das vítimas. Sentindo que os sitiantes se afoitavam a
ímpetos mais arrojados à medida que se aproximava o momento da partida, mandou Lancaster
contra eles o imediato Barker com 300 homens. Adiantaram-se estes temerariamente
pelo istmo, para os lados de Olinda; e quando se aperceberam, estavam
envolvidos pelos pernambucanos, e tiveram de fugir desordenadamente, perdendo
cerca de quarenta homens, entre os quais o próprio capitão Barker.
A insistir em tão penoso e arriscado desforço,
quando estava completa a liquidação dos seus negócios, preferiu Lancaster, na
tarde do outro dia, retirar-se, tendo tido a fortuna de chegar à Inglaterra com
toda a frota, carregada de copiosa rapina.
Foram essas, que nesta lição indicamos, algumas das
agressões mais sérias e de pura pirataria e corso, que sofremos até fins do
século XVI.
Estavam, porém, muito longe de cessar esses perigos
nos nossos mares. Até quase fins do século XVIII esteve o Brasil sujeito a
investidas, e mesmo pretensões de conquistas por parte de aventureiros europeus,
aberta ou dissimuladamente amparados pelos respectivos governos.
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