Os assassínios de Calas e Labarre
Publicado em o
"Almanach do Mundo", do ano de 1910. Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Antes da revolução, a construção social era isto:
Embaixo, o povo; acima do povo, a religião
representada pelo clero; ao lado da religião, a justiça representada pela
magistratura E, neste momento da sociedade humana, que era o povo? Era a ignorância.
Que era a religião? Era a intolerância. E que era a justiça? Era a injustiça. Vou
porventura muito longe nas minhas palavras? Julgai-o. Limitar-me-ei a citar
dois fatos, mas decisivos.
Em 13 de outubro de 1761, em Tolosa, é encontrado um
mancebo enforcado no sótão de uma casa. A multidão amotina-se, o clero fulmina,
a magistratura investiga.
É um suicídio de que se faz um assassínio por
interesses da religião. E quem acusam? O pai. É um huguenote, e quis impedir o
filho de se fazer católico. Há aqui uma monstruosidade moral e uma
impossibilidade material: não importa! Este pai matou seu filho, este velho
enforcou este mancebo. A justiça trabalha, e eis aqui o desenlace. Em 2 de
março de 1762 um homem de cabelos brancos, João Calas, é conduzido à praça pública,
despem-no, estendem-no sobre uma roda, com os membros ligados e o corpo em
falso, de cabeça pendente. Há três homens sobre o cadafalso: um almotacel
chamado David, encarregado de vigiar o suplício, um sacerdote, com um
crucifixo, e o carrasco, com uma barra de ferro. O paciente, estupefato e terrível,
não olha para o padre e olha para o carrasco. O carrasco levanta a barra de
ferro e quebra-lhe um braço. O paciente ruge e desmaia. O almotacel
aproxima-se, é faz respirar sais ao condenado, que volta à vida; então nova
pancada da barra, novo rugido, e Calas perde os sentidos; reanimam-no e o
carrasco recomeça: e, como cada membro deve ser quebrado em dois pontos, são
oito suplícios. Depois do oitavo desmaio o sacerdote dá-lhe o crucifixo a
beijar. Calas afasta a cabeça e o carrasco dá-lhe o golpe de misericórdia, isto
é, escangalha-lhe o peito com a extremidade mais grossa da barra de ferro.
Assim expirou João Calas. Durou isto duas horas. Depois da sua morte, apareceu
a evidência do suicídio. Mas tinha sido perpetrado um assassínio. Por quem?
Pelos juízes.
Depois do velho, o mancebo. Três anos mais tarde, em
1765, em Abbeville, no dia seguinte a uma tempestade e ventania, é encontrado
no chão, sobre a calçada de uma ponte, um velho crucifixo de pau carunchoso que
há três séculos estava chumbado ao parapeito. Quem lançou a terra o crucifixo?
Quem cometeu o sacrilégio? Ignora-se. Talvez alguém que passasse. Talvez o
vento. Quem é culpado? O bispo de Amiens expede uma monitória. Eis o que é uma monitória:
é uma ordem a todos os fiéis, sob pena do inferno, de dizer o que sabem ou julgam
saber sobre tal ou tal fato; injunção homicida do fanatismo à ignorância. A
monitória do bispo de Amiens produz os seus efeitos, as amplificações da
bisbilhotice tomam as proporções da denúncia. A justiça descobre, ou julga
descobrir, que, na noite em que o crucifixo foi lançado a terra, dois homens,
dois oficiais, Labarre e d’Etallonde, passaram na ponte de Abbeville, que
estavam embriagados e que cantaram uma canção de corpo de guarda. O tribunal a senescalia de Abbeville. Os senescais
de Abbeville valem os almotacés de Tolosa. Eles não são menos justos.
Expedem-se dois mandados de captura. D’Etallonde foge, Labarre é preso.
Entregam-no à instrução judiciária. Ele nega ter passado na ponte, e confessa
ter cantado a canção. A senescalia de Abbeville condena-o, ele apela para o parlamento
de Paris. Trazem-no a Paris, a sentença é julgada boa e confirmada. Conduzem-no
a Abbeville, encadeado. Vou resumir. Chega a hora horrorosa. Principiam por
submeter Labarre à questão ordinária e extraordinária para ele declarar os seus
cúmplices. Cumplices de quê? De ter passado numa ponte e de ter cantado uma
canção. Esmagam-lhe um joelho na tortura; o confessor, ouvindo estalar os
ossos, desmaia; no dia seguinte, 5 de junho de 1766, Labarre é arrastado à praça
grande de Abbeville: flameja lá uma fogueira ardente; leem a sentença a
Labarre, depois decepam-lhe um punho, depois arrancam-lhe a língua com uma tenaz
de ferro, depois, por misericórdia,
cortam-lhe a cabeça, que é lançada à fogueira. Assim morreu Labarre. Tinha dezanove anos.
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