Origem e descendência intelectual de Castro Alves: os "cástridas"
Voz
de ferro! desperta as almas grandes
Do
Sul ao Norte... do Oceano aos Andes!
Castro Alves
Do
Sul, do Norte, do Oriente irrompem...
Castro Alves
Apesar daquela frase de Leonardo da Vinci
— triste do discípulo que não passa o mestre — tamanha é a honra de ter sido
mestre de Castro Alves, que Sílvio Romero levou quase meio século de vida
literária a dar-lhe, a impor-lhe, a ascendência, mais que contestável, de
Tobias Barreto. Não desconfiava talvez que, implicitamente, tal insistência era
o reconhecimento de uma grande honra: foi a secreta ironia de uma quizila de
cinquenta anos!
Como que receava não ficasse ao seu
ídolo outro mérito literário que o dessa precedência que é, entretanto, tudo
quanto pretende estabelecer. E não prova entretanto nada.
Os argumentos são, com efeito,
indignos da grande inteligência do crítico, a turvar ainda pela obcecação de um
capricho, a turvar ainda o mais lúcido entendimento. Tobias é seis anos mais
velho que Castro Alves, logo... é seu mestre... Castro Alves antes de 1862,
isto é antes dos quinze anos, não era o Castro Alves dos poemas vibrantes que o
caracterizaram (e dos quais nem sequer se aproximaram os do outro), só o foi
depois dessa idade... quando, e porque, conheceu Tobias... É tudo o que há de
mais indiscutível: igual título podem reivindicar todos os contemporâneos do
poeta, mais velhos do que ele... Apenas não devemos fazer carga, ainda ao
precoce Castro Alves... por não ter a sua completa individualidade mental e
moral antes dos quinze anos; conformemo-nos à natureza que não deixa a ninguém
ser púbere antes da puberdade, tenha ou não conhecido Tobias Barreto...
O necessário, o essencial à
demonstração, de dependência ou derivação de um talento a outro, essa não foi
feita, nem tentada. Com efeito entre 63 e 65 no Recife, Castro Alves achara a
sua vocação de poeta liberal, ensaiando os primeiros e mais numerosos dos seus
cantos abolicionistas: Tobias apesar de mestiço e, por dever, podendo ser defensor
da raça perseguida, nenhuma preocupação tem com a escravidão, que só ao tempo
movera parceiros seus como Luís Gama, e moveria outros depois como Rebouças e
Patrocínio, em auxílio dos brancos libertadores. Tobias andava pelo tempo a
poetar à guerra do Paraguai.
Pernambuco
abaixa a coma
Agacha-te
um pouco e toma
O
peso do Paraguai...
Foi Castro Alves indiferente a esta
veemência do nosso provocador imperialismo no Prata: a não ser à partida de um
amigo para a guerra, Maciel Pinheiro, o "peregrino audaz", — em uma
festa de caridade pelos órfãos, — cujos pais caíram "do vasto pampa no
funéreo chão", — só há uma de suas poesias O Pesadelo de Humaitá que trate deste assunto, e estava de hóspede
no Rio, na redação de um diário carioca, assistindo à passagem de uma
manifestação patriótica — e provocado ou solicitado, produziu aqueles versos,
que, embora aplaudidos, lhe mereceram a condenação de artista — "não se
publica": foi a nota que lhes pôs à margem.
Se os dois poetas não tiveram
sentimentos e ideias comuns, poderiam ter entretanto o estilo, a ênfase
altaneira de sua eloquência: nada mais diferente do que o tom e a execução
artística desses dois poetas, um medíocre, do qual não há uma só poesia que
inteiramente se possa citar com agrado, e o outro a quem sobejaram os triunfos
não só do povo que as ouviu, como da posteridade que as lê, ainda agora
comovido.
Pretende Sílvio Romero que a poesia
heroica, de origem hugoana, foi novidade aqui introduzida por Tobias Barreto, e
se Castro Alves foi hugoano, será depois de Tobias e, portanto, seu discípulo.
Nem a conclusão, nem a premissa estão
certas. O crítico esquece que Pedro Luís e José Bonifácio existiram, ou de
indústria os suprime, para o seu efeito... E Veríssimo lembrou que o primeiro
foi "o precursor da inspiração política e social e do que depois se chamou
condoreirismo, na nossa poesia". "Deixou meia dúzia de poemas, os
melhores no tom épico "Os Voluntários da Morte", "Terribilis
Déa" que todo o Brasil conheceu, recitou, admirou": e isto de 60 a 65.
Castro Alves sofreu tanto essa influência que até a sua Deusa Incruenta é uma antítese à Terribilis Déa, à Imprensa,
benfazeja, contra a guerra de extermínio: ficar-lhe-ia o tom, a Tobias ficara o
tom e a canção guerreira, a imitar, como imitou, entretanto sem a inspiração
épica de Pedro Luís. Se "condoreiro" deriva de condor, o nome que pôs
Capistrano de Abreu à poesia heroica que adotara esse "totem", não
convinha à de Tobias Barreto; com efeito, não existem "condores", "Andes",
"amplidão", em sua poesia, ao menos as que se imprimiram nos Dias e Noites: duas vezes, contadas,
usou a primeira palavra, uma vez a outra, nenhuma a terceira; Castro Alves é
que delas abusou e, como louvor ou censura, bem pode chamar-se
"condoreiro": mas foi um incidente ou uma fase da sua poesia.
Não esqueceu a Veríssimo o
condoreirismo de José Bonifácio, também esse precursor. Acredito mesmo que a
influência dele terá sido talvez a maior que, de brasileiro, sofreu Castro
Alves. José Bonifácio, com efeito, não foi só poeta épico do Redivivo, como o lírico, gracioso e
terno de Um pé ou do Meu testamento, íntimo e comovente de Teu nome e Os nossos sonhos, como poeta nacionalista, do pinturesco regional
do O Tropeiro, com que precede, em
quase todas as suas notas, a Castro Alves.
Apenas aqui seria o caso de lembrar da
Vinci. Aliás Castro Alves foi, de fato, discípulo de José Bonifácio. Achara a
lembrança dele no Recife, onde exerceu e lecionou pouco tempo, e em São Paulo
começara uma fama que ninguém teve maior como professor de Direito e arauto
liberal da mocidade. Com Marcolino de Moura premeditara logo o nosso poeta
transferir-se para a Faculdade de São Paulo e mais tarde aí chegado escrevia a
Luís Cornélio: "Estou na Academia ouvindo o grande José Bonifácio. Logo
depois, quando, dissolvida a Câmara, o tribuno parlamentar torna à sua cátedra,
e a terra natal o recebe jubilosa, diz O Ypiranga,
de 2 de agosto de 68, Castro Alves "soube num rapto sublime manifestar a
comoção de quantos acompanham o representante dos foros populares. A simpatia e
a admiração seria recíproca porque José Bonifácio foi dos primeiros a lhe
prantear a morte, n'À margem da corrente,
e num soneto comovido. Ele ouvia "o sabiá cantar",
Ouvi...
ouvi... terníssima
A
extrema nota, repetida ainda...
—
Eco saudoso das canções de outrora
...........................................
Mas
do teu coração, inda a saudade
Ficou
— murmúrio e flor, brisa e perfume.
Outro que a amizade e a admiração
deviam conceder alguma influência seria Fagundes Varela, de quem diz Regueira
Costa, que com ele frequentava o jovem Castro, quando, em Santo Amaro, no
Recife, numa vivenda bucólica, se ocupava em amar a "encantadora
Idalina" e a escrever o poema d'Os
Escravos. À reminiscência desses amores, mais tarde, em 1870, nas Aves de Arribação, juntou a lembrança do
amigo, numa epígrafe de lindos versos seus:
Pensava
em ti nas horas de tristeza
Quando
estes versos pálidos compus
Cercavam-me
planícies sem beleza
Pesava-me
na fronte um céu sem luz...
Contou-me o Dr. Rodrigues Peixoto
ouvira Castro Alves responder a alguém, que lhe indagava da preferência, entre
os poetas brasileiros: — "Dos contemporâneos, Fagundes Varela; dos
passados, Casimiro de Abreu". Isso foi em 69, encerrado o seu ciclo de
poesia social e épica, subsistente o lirismo efusivo e comovido, bem espontâneo
e bem brasileiro, de que esses dois poetas, com ele, seriam os nossos mais
altos representantes naquele tempo.
Mas, a influência, mais decisiva na
obra, ou em parte da obra de Castro Alves, é necessariamente a de Hugo. Não há
negar, se é honrosa a ascendência, senão para restringir, dizendo que a
preferência seria pela similitude do gênio. Uma das preocupações de nosso tempo
está em procurar as fontes de uma inspiração ou uma ideia, como se houvesse
alguma destas "criações" humanas que não seja uma
"reprodução" humana: La Bruyère deu idade de sete mil anos à menor de
nossas cogitações e parou aí, porque não há documentos de maior antiguidade.
Pôde Emerson dizer que "o maior gênio é o homem mais endividado"; sua
grandeza, Shakespeare ou Molière, faz-se com a contribuição de muitos: não são
pessoas, são multidões — um gênio é uma raça, às vezes uma era... Entretanto,
talvez por malicioso divertimento, nos comprazemos em dizer que Noventa e Três é a História dos Girondinos de Hugo, como a Joana d'Arc é a Vida de Jesus
de Anatole France: fazemos duvidosa homenagem a Lamartine e a Renan, de uma
similitude de propósito, sem indagar quais foram as deles.
Capistrano de Abreu, prolongando
Taine, completou-lhe uma lei de evolução intelectual, dizendo:
"começamos por imitar alguém,
depois não imitamos a ninguém, finalmente nos imitamos a nós mesmos". Sem
personalidade característica a princípio, depois individualizado em aspecto
inconfundível, por fim, dada a consagração, a mesmice sem mudança e sem
renovação, na rota batida do sucesso. Há nos extremos, porém, duas ordens de
exceção: os medíocres, que ficam sempre imitadores, e os extravagantes que nem
a si mesmo imitam e continuam sempre diversos e renovados: por isso a ambição
de d'Annunzio, manifestada naquele lema: "Renovar-se, ou morrer".
Castro Alves imitaria Hugo, talvez,
como imitaria, por vezes, a Lamartine, Musset, Byron, Espronceda... os poetas
de suas leituras prediletas, se é que tais preferências já não dizem na similitude
de gênio que o levaria, com os variados gostos deles, para as mesmas tendências
poéticas. Mas no seu tempo e com o seu gênio, pergunto, poderia ser ele diverso
do que foi... e em que de sua característica de poeta republicano e
abolicionista, de lírico tropical e nacionalista, estão os vestígios daqueles
grandes homens de seu tempo?
Uma escola literária definiu com
espírito e justiça um contemporâneo, Francis de Croisset, — é alguém que tem
talento, e é chefe, e muita gente, que não o tem, e são os sequazes. Um clama,
os outros reclamam. A Castro Alves ele sobrava o talento para não ser discípulo
dócil, fosse ainda do maior poeta do século. Rui Barbosa afirmou, pois com
razão: "Bem pouco valeria Castro Alves, se a estabilidade de seu nome se
achasse ligada às feições específicas e aos transitórios destinos dessa fase
literária a que entre nós se imprimiu o selo da influência e do nome de Hugo.
Na sua personalidade esses não passam, a meu ver, de traços acidentais. O que
faz a sua grandeza são essas qualidades superiores a todas as escolas que em
todos os estados da civilização constituíram e hão de constituir o poeta,
aquele que como o pai da tragédia grega, possa dedicar as suas obras "ao
Tempo": sentiu a natureza; teve a inspiração universal e humana; encarnou
artisticamente nos seus cantos o grande pensamento de sua época". Não se
dirá melhor.
Com a versatilidade dos sentimentos e
das ideias, deu Hugo a sua facúndia trasbordante à Revolução, ao Império, a
Luís XVIII, a Carlos X, à República... Essa generosidade descomedida era o
Romantismo, movimento nem hugoano, nem francês, nem literário, senão político,
social, europeu, que começara no século XVIII com os sensualistas ingleses,
Locke, à frente, no século anterior, propagados ao continente por Voltaire e
Montesquieu e ganhara na Rússia a Catarina II, na Prússia ao grande Frederico,
na Áustria a José II, na Toscana a Leopoldo, aos príncipes de Weimar, Bade,
Mogúncia, e até em Portugal, com Pombal, a D. José... Literariamente, Schlegel,
Goethe, Schiller... Young, Walter Scott, Byron... Manzoni, Foscolo, Monti...
como Rousseau, Madame de Stael, Chateaubriand... são os grandes nomes do
Romantismo e todos eles anteriores a Hugo, que seguiu com algumas infidelidades
também a corrente política, social, literária de seu tempo.
Castro Alves não podia escapar também
a esse seu tempo, mas fê-lo com um caráter e uma originalidade que são a sua
honra. Caráter porque não transigiu com a sua nativa generosidade por nenhum
interesse: num regime monárquico, foi republicano; num tempo em que a
escravidão era no Brasil res sacra, res integra, foi abolicionista; num
tempo em que havia uma guerra contra o Paraguai, desdenhou o sucesso fácil das
odes guerreiras e militares, foi humanitário e pacifista; quando o êxito
militar e político do império alemão acobardava o mundo e aqui mesmo lograva o
proselitismo que os fortes sempre impõem aos fracos, ele protestava e num apelo
patético confiava o destino futuro da Civilização aos filhos do Novo Mundo!
Originalidade porque lograva ser poeta da natureza brasileira, das causas
sociais brasileiras, com estilo próprio, seu, inconfundível entre todos os
poetas de seu tempo e de seu país...
Euclides da Cunha nos dará ainda
razões: "o aparecimento de Castro Alves, certo oportuno, como o de grande
homem é em grande parte inexplicável. Ele não teve precursores, na sua maneira
predominante. Os grandes pensamentos, sociais e políticos, que agitou não lhe
advieram, como em geral sucede, de longas ou bem acentuadas correntes, nos
agrupamentos que o rodeavam. Pertenciam, plenamente generalizados, à sua época.
Nasciam do patrimônio comum das conquistas morais da humanidade. A sua grandeza
está nisto: ele os viu antes e melhor do que seus contemporâneos. Compreende-se
que o estranhassem. Sem dúvida devera ser anômalo e, ao parecer, desorado, o
vidente que surgia, de improviso, num estonteamento de miragens, e a proclamar
uma nascença ainda remota, ou a descrever a era nova, que poucos adivinhavam,
numa linguagem onde — naturalmente — os mais belos lances do seu lirismo
incomparável teriam de golpear do abstruso e do impressionismo transcendental
das profecias...". "É que, não era Castro Alves apenas o batedor
avantajado dos pensamentos de seu tempo". Há no seu gênio muita coisa do
gênio obscuro da nossa raça". E prova-o Euclides da Cunha, para concluir
repetindo a premissa: "Castro Alves foi altamente representativo de sua
terra e de seu povo". Portanto, como Hugo, foi Castro Alves do seu tempo e
só hugoano se a esse tempo houvermos de dar, com parcialidade, o desígnio de
"hugoano": seria uma homenagem ao maior poeta do século XIX, mas não
seria justa, nem explicaria coisa alguma, porque não diria como e porquê, do
seu tempo, na cultura universal, não deixou de ser entretanto representativo de
sua terra e do seu povo, na expressão estética daquela cultura.
Dada esta restrição, quanto a Castro
Alves, também ela se fará para os menores poetas brasileiros que tiveram tais
acentos, descobre-se mais que um endereço geral, como uma conformidade de tom e
às vezes lembranças de outros versos do nosso poeta, que estão a sugerir a sua
ascendência, no seu meio e no seu tempo. Como homéridas, houve
"cástridas", pelo Brasil. O insuspeito Sílvio Romero não fugiu a
dizer: "quase toda a gente no Rio e províncias do Sul fazia versos,
imitando a maneira do poeta das Espumas
Flutuantes". Um curioso ensaio literário, se valesse a pena, seria
esse: basta à glória de Castro Alves documentar a afirmação de Sílvio Romero
com alguns exemplos, desses seus imitadores e discípulos, a quem o seu gênio se
impôs mais decisivamente.
Imitam-se mais facilmente os defeitos,
que as qualidades; os caracteres indiscretos e imponentes, que as virtudes
secretas e íntimas: os discípulos e imitadores saem assim caricaturas, que vem
a depor, injustamente, de um mestre inocente. Entre os encantos e as
"bombas" da poesia de Castro Alves foram as bombas que mais eco
despertaram, em ribombos clamorosos. Diz ainda Sílvio Romero: "a sua
maneira espalhou-se então por todo o país. Escusado é dizer que a mediocridade
dos maus discípulos foi-se tornando cada vez mais acentuada, até cair nos mais
extravagantes despropósitos". Antes destes, porém, houve muitos discípulos
que lhe fizeram honra, e se podem citar.
Carlos Ferreira foi um — e este seu
amigo, companheiro de casa, seu admirador e portanto, naturalmente, seu
discípulo. Nas suas Rosas loucas, impressas em 71, em São Paulo, logo a
primeira estrofe termina
Ave
saudosa que rolou dos Andes
As Vozes
da Mocidade, dirigidas também a um amigo, lembram Castro Alves:
"É belo o estremecer do vago anseio
Da
natureza inteira, e ver os mundos
Boiando
em mar de anil!
Oh!
é belo gravar em traços grandes
—
Glória! — Dos céus nos âmagos profundos
Quando
a ideia é buril!
É em Sab tegmine fagi que diz o outro, com o mesmo acento e forma:
Vem!
Do mundo leremos o problema
Nas
folhas da floresta, ou do poema
Nas
trevas ou na luz...
Não
vês?... Do céu a cúpula azulada,
Como
uma taça sobre nós voltada
Lança
a poesia a flux!
Nos
Homens de Roma há
reminiscências de tom com Os Jesuítas
e O Século. A Dalila deu ecos a Um canto do
Século. Diz o Castro:
Hoje
flores... A música soando
As
perlas da Champanhe gotejando
Em
taças de cristal
A
volúpia a escaldar na louca insônia
Mas
sufoca os festins de Babilônia
A
legenda fatal.
Responde o outro:
Ali
folga a Marcô dos beijos mornos
Da
lascívia cruel... Treme a inocência
E
goza o potentado!
Ouve-se
o tinir da dobla ferrugenta...
Rola
na banca um mundo de desgraça
E
Satã ri-se ao lado!
...........................................
Há
um templo de luz — o altar é negro!
Fumega
em vez da mirra — o vinho ardente
Aos
pés da meretriz!
Castro Alves dissera noutra poesia, É tarde!
É
tarde! É muito tarde! O templo é negro...
O
fogo-santo já no altar não arde.
Vestal!
não venhas tropeçar nas piras
É
tarde! é muito tarde!
A Duas
irmãs faz Carlos Ferreira uns versos:
São
duas gotas de orvalho
Pingando
do mesmo galho
Caindo
na mesma flor;
São
duas pombas de arminho
Cantando
no mesmo ninho,
A
mesma canção de amor...
Não são A duas flores de Castro Alves?
São
duas flores unidas,
São
duas rosas nascidas
Talvez
no mesmo arrebol
Vivendo
no mesmo galho
Da
mesma gota de orvalho
Do
mesmo raio do sol...
E outras, e outras, em que a forma e o
tom, a intenção e a maneira, vêm como uma reminiscência ou um eco de Castro
Alves. Onde porém Carlos Ferreira excedeu o seu modelo foi no Baile das múmias que deixou a perder de
vista as mais ousadas ou absurdas "bombas" de Castro Alves. Basta
citar, sem comentário, algumas estrofes:
Meia-noite!
hora de sangue,
Hora
de febres fatais,
Hora
em que gemem saudades
Dos
tempos que não vem mais;
Quando
os pálidos precitos
Requeimam
lábios malditos
Em
taças negras de fel!
Quando
as bocas dos finados
Soltam
gritos compassados
Pedindo
sangue ao bordel!
.......................................
Rompe
a orquestra, o baile rompe
A
tempestade assobia;
Giram
nas valsas os vultos,
Arde
a febre, vive a orgia!
Bem
como um bando de gralhas
Passam
nas brancas mortalhas
Os
convivas do festim;
E
as grutas fundas rasgadas
Respondem
com gargalhadas
Ao
som da orgia sem fim!
.......................................
Redobra
o baile das múmias
Gritam
as ondas além...
Passam
e repassam as sombras
Em
furibundo vaivém!
Soam
lúgubres trombetas...
Debatem-se
as nuvens pretas
—
Feras do espaço a rugir! —
Das
fauces negras do abismo
Rompe,
salta o cataclismo
Que
ameaça o baile extinguir!
........................................
"Bravo!"
"bravo!" diz o vento,
Grita
o trovão — "muito bem!"
Os
ciprestes batem palmas
Como
aplaudindo também...
Soa
o rufo... A festa aumenta...
Deus
sobre um raio se assenta
E
vem nas tumbas pousar!
Batem
nas lousas os crânios,
Somem-se
os vultos titânios,
Arde
em fogo o lupanar!
Outro "cástrida" é Francisco
Lobo da Costa, cujas Lucubrações, de
São Paulo, 1874, começam:
"Um dia, debruçado à amurada de
velejeira barca... meus olhos como que embebidos de ternura e saudade... Eram
os Tapes aquelas saudosíssimas cordilheiras... O passado..."
E também por isso escreve o seu poema,
como Castro Alves o dissera, no prefácio às Espumas
Flutuantes:
"Só e triste, encostado à borda
do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinito e minha alma
apegava-se à forma vacilante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus
arraiais da mocidade..." "Eram os cimos fantásticos da Serra dos
Órgãos... embebiam na distância, sumiam-se, abismavam-se numa espécie de
naufrágio celeste".
E lembra o passado, os amigos e para
eles, como a recordá-lo, escreve o seu livro... tal depois Lobo da Costa. Por
todos os seus versos, aqui e ali, há a influência de Castro Alves: ela é
explícita numa composição das Auras do
Sul (outro seu livro) — O Gênio e a arte que é como eco de O Fantasma e a Canção:
—
Quem bate à porta do pobre?
—
Abre não tenhas receio,
Eu
venho de fome cheio
Quero
pedir-vos um pão...
Andei
faminto e descalço
Pelas
ruas da cidade!
Ai!
senhor! a caridade
Já
não vive entre nós não!
Castro Alves, aliás inspirado pela Balada do desesperado, de Henrique
Murger, que traduzira, havia escrito:
—
Quem bate? — A noite é sombria!
—
Quem bate? — É o rijo tufão!
Não
ouvis? A ventania
Ladra
à lua, como um cão.
—
Quem bate? "O nome que importa
Chamo-me
dor... abre a porta!
Chamo-me
frio... abre o lar!
Dá-me
pão... chamo-me fome!
Necessidade
é o meu nome!"
—
Mendigo, podes passar!
Por fim, o mendigo de gênio, banido do
próprio lar, encontra uma pousada; diz Lobo da Costa:
—
Entra; meu albergue é pobre
Mas
há fogo na lareira...
dissera Castro Alves:
—
Entra! O verso — é uma pousada
Aos
reis que perdidos vão
A
estrofe — é a púrpura extrema,
Último
trono — é o poema!
Último
asilo — a Canção!
Lobo da Costa é o autor daquele soneto
Última Confissão de Eugênia Câmara em
que puniu a infeliz atriz com maus versos, fazendo-lhe dizer, entre penitente e
vaidosa:
E
Castro Alves morreu por meu respeito!
Francisco de Castro, pelo nome e pela
origem, da Bahia, estava certamente votado a admirar do vate das Espumas Flutuantes, nome que lhe
inspiraria o de seu livro Harmonias
errantes, impresso no Rio, em 1878. Desde os primeiros versos que a
influência se confirma:
A
hora em que a terra dorme
Em
fatal sonambulismo
Sentindo
a atração enorme
Do
mudo olhar de um abismo;
Quem
atira aos quatro ventos
Os
ousados pensamentos
Dos
eternos Prometeus?
E
assombrando a humanidade
A
lira da tempestade
Sacode
das mãos de Deus?
É Hugo
em Jersey eco d'As Duas Ilhas
(Jersey e Santa Helena), que tem a mesma forma, e idêntica emoção:
Quando
à noite — às horas mortas
O
silêncio e a solidão
Sob
o dossel do infinito
Dormem
do mar n'amplidão
Vê-se
por cima dos mares
Rasgando
o teto dos ares
Dois
gigantescos perfis...
...............................
São
— dois marcos miliários
Que
Deus nas ondas plantou
Dois
rochedos, onde o mundo
Dois
Prometeus amarrou!...
...............................
São
eles — os dois gigantes
No
século de pigmeus.
São
eles — que a majestade
Arrancam
da mão de Deus...
Ubirajara tem não só o
aspecto, como termina
E
dizer n'alma pungidos
Pela
mesma dor feridos
Nós
havemo-lo imitar!
Também nas Duas Ilhas de Castro Alves:
Clamam:
Da turba vulgar
Nós
— infinitos de pedra —
Nós
havemo-los vingar!
Na Leitura no deserto as
reminiscências são de Sub tegmine fagi:
Azuis
fosforescências peregrinas
Os
pirilampos brilham nas campinas
No
manto virginal
Sobre
o mar que braceja nas areias
Languidamente
embalam-se as sereias
Nos
berços de coral.
.......................................
Aqui
do ideal a seiva pura
A
poesia esplêndida satura
De
mágico verdor
Deus
concede às paixões um desafogo
Queimam-me
os lábios as sílabas de fogo
Desta
palavra — amor.
Castro Alves dissera desse
"deserto" do campo, sob árvores:
Amigo — O
campo é o ninho do Poeta
Deus
fala quando a turba está quieta
Às
campinas em flor.
.......................................
A
andorinha, que é alma — pede o campo
A
poesia quer sombra — é o pirilampo
P'ra
voar... p'ra brilhar.
.......................................
Aqui
o éter puro se adelgaça
Não
sobe esta blasfêmia de fumaça
Das
cidades p'ra o céu.
E
a terra é como inseto friorento
Dentro
da flor azul do firmamento
Cujo
cális pendeu!...
Outro, também Castro, e também poeta
baiano, foi João Baptista de Castro Rebelo, que não dissimulou a influência de
Castro Alves: nos Louros e Mirtos,
versos de 71-91, impressos na Bahia em 1902, os ecos do grande poeta são
constantes. No Escravo, além das
ideias há versos, como estes:
Eu,
que levanto o olhar para este sol esplêndido
E
sonho a liberdade em face deste azul...
que recordam, em outro metro, aqueles
Eu
que sou pobre mas só peço luzes
Que
sou pequeno mas só fito os Andes...
Em Amanhã!
diz:
Saudai-os,
povo! são eles
As
esperanças viris
Desta
luminosa pátria
Deste
homérico país
São
eles — a mocidade
Que
arvora da liberdade
A
bandeira que jurou
Modelando
os pensamentos
Nos
eternos monumentos
Das
profecias de Hugo.
Também, de Hugo e Napoleão, clamara
Castro Alves:
São
eles — os dois gigantes
No
século dos pigmeus
São
eles — que a majestade
Arrancam
das mãos de Deus
—
Este concentra na fronte
Mais
astros — que o horizonte,
Mais
luz do que o sol lançou!
Aquele
— na destra alçada
Traz
segura sua espada
—
Cometa que ao céu roubou!
Nunca... lembra Fatalidade:
Ungem-te
os sonhos as vernais fragrâncias
De
uma existência que pulula em rosas
E
eu vou gemendo pela vida em ânsias
Longe
da festa que em tua alma gozas...
Longe,
bem longe do teu lar mimoso
Onde
a ventura fez também seu ninho
Vou
minhas crenças apagar saudoso,
Buscando
a morte por qualquer caminho...
Apenas, os acentos de Castro Alves são
mais desesperados e comovidos:
Vai!
pois, ó rosa que em meu seio outrora
Acalentava
a suspirar e a rir...
Deixas
minh'alma como um chão deserto
Vai!
flor virente! mais além florir...
Vai!
flor virente! no rumor das festas
Entre
esplendores, como o sol viver
Enquanto
eu subo — tropeçando incerto —
Pelo
patíb'lo — que se diz sofrer!...
Na poesia descritiva encontram-se
também não raro. Diz um em Vai dormir...
do Livro de um anjo, Bahia, 1879:
A
alcova é em cima, no sótão:
As
paredes são de neve;
E
a aragem travessa e leve
Que
esvoaça no jardim
Sobre
a janela entreaberta,
E,
risonha, perfumada,
Beija
a pérola sagrada
Desse
estojo de marfim.
Argênteos
fios da lhama
Que
pelo espaço flutua
Quebram-se
os raios da lua
Do
leito por sobre o véu...
Por
sobre os flocos da nuvem
Que
toda a pureza encerra
De
um anjo, que está na terra
Mas,
passa a vida no céu.
Numa página de Escola Realista
desenhara Castro Alves:
A
alcova é fria e pequena,
Abrindo
sobre um jardim
A
tarde frouxa e serena
Já
desmaia para o fim.
No
centro um leito fechado
Deixa
o longo cortinado
Sobre
o tapete rolar...
Há
nas jarras deslumbrantes,
Camélias,
frias, brilhantes
Lembrando
a neve polar.
Livros
esparsos por terra
Uma
harpa caída além;
E
essa tristeza que encerra
O
asilo onde sofre alguém.
Fitas,
máscaras e flores,
Não
sei que vagos odores
Falam
de amor e prazer.
Além
da frouxa penumbra
Um
vulto incerto ressumbra
O
vulto de uma mulher...
Uma composição dos Ardentias, Porto, 1907, Ilações de um poema está entre o Rola de Musset e essa Página de Escola Realista, de Castro
Alves, como, nesse mesmo livro, Protesto
trai a imitação de Castro Alves e Guerra Junqueiro. Aliás a admiração de Castro
Rebelo pelo grande poeta baiano é explícita na poesia "alvesiana" que
lhe dedica, a semelhança de outros cástridas, Carlos Ferreira, Lobo da Costa,
Francisco de Castro.
Nenhum destes, porém, é um eco fiel e
repetido de Castro Alves como Segundo Wanderley, cujas Recoltas poéticas, Natal, 1896, nas ideias, ritmos, rimas, imagens
idênticas são paráfrases alvesianas: seria preciso citar todo o livro... Alguns
exemplos. N'As duas águias (o povo e
o exército) diz:
São dois leões
aquecidos
À luz do mesmo
arrebol
São duas
chamas nascidas
Do mesmo
enorme farol;
São dois
vulcões que crepitam
Dois corações
que palpitam
Unidos num
corpo só;
Dois gênios,
dois pensamentos
Lançando à
mercê dos ventos
Das monarquias
o pó...
É o lirismo de A duas flores transposto em épico alvesiano. Em Surge et ambula:
Eu
amo ouvir um farfalhar de ideias
Apraz-me
ver a progressão da luz
pelo tom, a repetição do último verso
das estrofes, lembra Quem dá aos pobres
empresta a Deus:
Do
vasto pampa no funéreo chão...
No Naufrágio
do Solimões diz:
Mentira!
tudo baldado ou
Silêncio!
enxuga o pranto
como o outro dissera no Gonzaga
Desgraça!
eis tudo o que resta...
ou no Navio Negreiro:
Silêncio!
musa! chora e chora tanto...
Na Luta
extrema:
Lutei,
fui quase vencido
como na Hebreia:
Lutei, meu
anjo, mas caí vencido
Nas Harmonias:
Deus
fez a nuvem para os céus azuis
Deus
fez a virgem p'ra viver de sonhos
Deus
fez o homem p'ra viver de luz
como na Volta da Primavera:
Deus
fez a neve — para o negro monte!
Deus
fez a virgem — para o bardo triste!
Na Escravidão:
Quebre-se
pedra funérea...
como n'O Século:
Quebre-se,
o cetro do Papa...
Na Voz
da Justiça:
Filhos
da ideia sagrada
Filhos
do grande país...
Como no O Livro e a América:
Filhos
do século das luzes
Filhos
da Grande Nação...
Em Deus:
A
brisa mansa que o vergel afaga
como em Se eu te dissesse...
Ao
salso vento que as marés afaga...
Até na forma das estrofes O calor é como O laço de fita; até nos títulos e intenções Immortalis Deus é a Deusa
incruenta. De Castro Alves ele diz
Morreu?
Não, não morre o astro...
.......................................
Vive
nos tempos honrosos
De
mil peitos generosos
Como
um laurel do Brasil
viveu e viverá na mente e na
inspiração de muitos outros poetas, como Segundo Wanderley, que de tanto o
amarem repetiram, como próprios, imagens e versos dele.
Melo de Morais foi contemporâneo e
amigo de Castro Alves e sofreria sua influência, bem que, vivendo, muito mais
tarde se quisesse eximir desse compromisso. Diz Sílvio Romero que ele "é
de ordinário colocado no grupo dos condoreiros, como sectário de Castro Alves;
discorda para dizer adiante que, admitida tal influência, "ainda lhe ficam
elementos próprios". Não há dúvida; mesmo assim é inegável seja este poeta
um "cástrida". Basta percorrer-lhe a obra; basta o título Cantos do Equador, de uma delas,
homônimo de Hinos do Equador, que sabia Melo Morais ser o que destinava Castro
Alves ao seu segundo volume de poesias, que não logrou ver publicadas, para
compreender a sedução que esse vate teve pelo outro, que lhe dedicara Sub tegmine fagi em troca de Pelo Rio
(publicado em 28 de abril de 69 pelo Diário
do Rio de Janeiro).
Os ecos de Castro Alves são frequentes
em Melo Morais. Diz No Pouso (Cantos do Equador, Rio, 1881):
Porém,
patrícios meu peito
Era
uma veiga sem flor
Um
lírio sem ter orvalho
Aurora
sem ter fulgor
Leva
os cantos do tropeiro
Leva
o perfume das flores
Todos
tem sorrisos n'alma
Todos
tem os seus amores
Todos
tem os seus amores
Todos
tem sua afeição
Como
a tarde que descora
'Stá
triste o meu coração...
......................................
'Stá
triste o meu coração
Como
a flor da sapucaia...
Lembra, pela forma, a
"Tirana" da Cachoeira de Paulo
Afonso; lembra, principalmente pelas imagens e intenções, a Canção do
Violeiro:
Passa,
ó vento das campinas
Leva
a canção do tropeiro
Meu
coração está deserto
Está
deserto o mundo inteiro
Quem
viu a minha senhora
Dona
do meu coração?
...................................
A
cauã canta bem triste
Mais
triste é meu coração.
...................................
E
eu disse: a senhora volta
Com
as flores da sapucaia
Veio
o tempo, trouxe as flores
Foi
o tempo a flor desmaia
Colhereira,
que além voas
Onde
está meu coração?
No
Banho,
recorda O Nadador, da Cachoeira...
As
águas correm rápidas
Em
jorros transparentes
Quais
bandos de serpentes
Em
largo vendaval
Mas,
vem a noite próxima
O
céu faz-se sombrio
Meus
membros sentem frio
Qual
flor dormida ao sol
lírico e suave, quando o outro foi
impetuoso e heroico:
Ei-lo
que ao rio arroja-se;
As
vagas bipartiram-se;
Mas
rijas contraíram-se
Por
sobre o nadador...
Depois
se entreabre lúgubre
Um
círculo simbólico...
É
o riso diabólico
Do
pego zombador!
Nos Poemas da Escravidão, a Partida
de escravos evoca a Tragédia no lar:
Chegou
o fazendeiro: olhou os negros
E
no ajuste entrou
P'ra
sempre acorrentada a liberdade
Inda
uma vez chorou
Castro Alves descreve:
Assim
dizia o fazendeiro rindo
E
agitava o chicote...
A
mãe que ouvia
Imóvel,
pasma, doida, sem razão...
À
Virgem Santa pedia
Com
pranto por oração...
Diz Melo Morais:
Um
colóquio se deu; e lacrimosa
À
porta uma mulher
Implora
de joelhos — Meu senhor
Venda
a mim se quiser...
Refere Castro Alves o patético
colóquio:
—
Dá-me teu filho! repetiu fremente
O
senhor, de sobr'olho carregado
—
Impossível!... — Que dizes miserável?!
—
Perdão, senhor! perdão! meu filho dorme...
Inda
há pouco o embalei, pobre inocente,
Que
nem sequer pressente
Que
ides... — Sim que o vou vender!
—
Vender?! Vender meu filho?!
Senhor,
por piedade, não...
Vós
sois bom... antes do peito
Me
arranqueis o coração!
Diz um:
Vede
a escrava é boa...
O outro dissera:
—
Cala-te miserável! Meus senhores
O
escravo podeis ver
........................................
É
forte, de uma raça bem provada...
Vendido o filho, a mãe-escrava fica
louca, para Melo Morais, como ficara para Castro Alves...
Nos limbos pretende a Vozes d'África:
O
Cristo, meu Senhor! nos limbos, dois mil anos
Eu
tenho te evocado, ó luz, ó claridade
O
Cristo, meu Jesus, assombro dos tiranos!
não é um eco, amortecido, de Castro
Alves?
Deus!
ó Deus! onde estás que não respondes!
Em
que mundo, em que estrela tu t'escondes
Embuçado
nos céus?
Há
dois mil anos te mandei meu grito
Que
embalde desde então corre o infinito
Onde
estás, Senhor Deus?...
Um dos mais citados poemas de Melo
Morais Filho, que anda nas antologias, é a Tarde
Tropical: pois bem, apenas é uma variante da Tarde, de Castro Alves, da Cachoeira
de Paulo Afonso.
Diz Melo Morais Filho:
É
a hora do dia em que das matas
Desce
a sombra da basta gameleira
E
saltando das lapas as cascatas
Espadanam
das águas a poeira...
Em
que a onça lambendo as ruivas patas
Rente
o peito com o chão da cordilheira
Encurva
o dorso, e cerra, ao abandono
Os
olhos d'ouro, de fadiga e sono.
Dissera Castro Alves, com a mesma
forma e a mesma intenção:
Era
a hora em que a tarde se debruça
Lá
da crista das serras mais remotas...
E
da araponga o canto que soluça,
Acorda
os ecos nas sombrias grotas;
Quando
sobre a lagoa, que s'embuça
Passa
o bando selvagem das gaivotas...
E
a onça sobre as lapas salta urrando
Da
cordilheira os visos abalando.
É de Melo Morais Filho:
Hora
de amor, de preces, hora de encanto
Tu
murmuras nos rios transparentes...
Fora de Castro Alves:
Hora
meiga da tarde! Como és bela
Quando
surges do azul da zona ardente...
Um se enternece:
Hora
de amor, de adoração, de crença
O outro se comovera:
E
te amei tanto — cheia de harmonias,
A
murmurar os cantos da serrana
A
lustrar o broquel das serranias
A
dourar dos rendeiros a cabana...
E
te amei tanto — à flor das águas frias —
Da
lagoa agitando a verde cana,
Que
sonhava morrer entre os palmares,
Fitando
o céu ao tom dos teus cantares
Melo Morais Filho, como tantos, rendeu
a Castro Alves o seu preito; disse-lhe numa "Saudação":
O
povo te proclama um novo eleito,
Eu
— um poeta-rei!
E era; tinha súditos; teve seguidores
e sequazes, discípulos e alunos, admiradores que o imitaram, e um destes, dos
que mais o honram, foi Melo Morais Filho.
Seriam esses, seriam outros, Ramos da
Costa, Múcio Teixeira, Lima Barata, Silva Sena, Garcia Rosa, João de Brito...
em algumas, em muitas de suas produções deles. Haverá que tornar ao assunto,
para uma menos imperfeita exegese. Se então, como faz Humberto de Campos, com
tanta perspicácia e erudição, procurarmos "os donos de nossos
versos", verificaremos que, de muitos, de quem se não suspeitava, que foi
seu colaborador — Castro Alves. Teófilo Dias, por exemplo um grande poeta, tem
esse formoso soneto Saudade, no qual
descreve a terrível tortura que nos move a ausência da amada criatura, íntima,
secreta, inalterável, indelével, de todo o coração, de cada partícula dele:
Como
acre aroma absorto na textura
De
um cofre oriental, fino e poroso...
Esse perfume tenaz resiste ao tempo e,
ainda desfeito o cárcere que o retém cativo, despedaçado, em mil fragmentos, o
cofre que o contém
Cada
parcela reproduz perfeito
O
mesmo aroma inalterável, vivo.
Sentira Castro Alves também assim a
saudade da amada criatura, e tem a mesma imagem, de que, a de seu admirador, é
apenas uma paráfrase magnífica.
É
que tudo me lembra que fugiste
Tudo
que me rodeia de ti fala
Como
o cristal da essência do Oriente
Mesmo
vazio a sândalo trescala...
Outros e outros deveram, aqui e além,
a Castro Alves: um, imprevisto, e que o honra, e com o qual desejo pôr fecho a
estas notas, foi Olavo Bilac. Este, porém, teve o seu pecado, de blasfêmia. Um
dia de maio de 98, escrevendo sobre Luís Guimarães Júnior, a quem entendeu
louvar — e no Brasil é vezo, para engrandecer um, deprimir outro, como se nos
escasseasse a matéria-prima para os nossos monumentos, por isso efêmeros... —
Bilac cometeu uma impiedade no seu "Registro", a seção diária que
mantinha n'A Notícia, o vespertino do
Rio de Janeiro. (A obra de imprensa, apressada, quotidiana, sem assunto, e sem
ponderação, leva a improvisos, inconsequências e a... arrependimentos: o poeta
rejeitou de sua obra a quase totalidade desses artiguetes, leves e
passageiros...)
Mas, disse Bilac, passado que foi
Gonçalves Dias — para o qual reserva todas as suas blandícias, como herdeiro
que supunha ser do outro, apontado às vezes, não se sabe porquê, primeiro poeta
nacional... — "o poeta, — ou continuava a esmoer aquelas lamuriantes
quadras não rimadas de Casimiro de Abreu (!) de uma vulgaridade desesperante —
ou continuava a urrar as apóstrofes descabeladas, cheias de ventanias
proféticas, de trapos de bandeiras na amplidão, de punhos de titãs esmurrando
montanhas, de deuses sopesando infinitos nas palmas das mãos — tudo isto numa
língua eriçada de solecismos, de uma pobreza franciscana de
vocabulário..."
Esta última "descompostura",
se é a Castro Alves, é injusta. Os seus deslizes serão de métrica ou de rima,
alguma vez, nas licenças poéticas, permitidas antes do parnasianismo: contadas
serão as infrações gramaticais de seus poemas. Das que fez, poderia
desculpar-se: viveu pouco, não pôde rever os seus bons versos, nem impedir que
lhe publicassem os defeituosos, como Bilac, que viveria o dobro, poliu e
repoliu os seus sem cessar, rejeitou-os inúmeros do livro definitivo, e até num
posto de inspetor escolar, era obrigado a uma certa solicitude profissional com
a gramática.
Contudo, se Homero dormitou algumas
vezes como afirma Horácio, se a Camões corrige na língua e na versificação,
Cândido de Figueiredo, se no mesmo Flaubert apontou Faguet defeitos, não
desejarei a Olavo Bilac, grande, grandíssimo escritor como Castro Alves, que
mereça o asserto de Paul Stapfer: "a correção sem mácula é apanágio de
alguns escritores de segunda ordem". (Recreations
gramaticales, Paris, 1900, pág. 205). Não sei, e admiro tanto Bilac, que
não ousaria tal indagação, se a despeito de sua profissão de fé — cuja ideia e
forma serão menos originais que as de Castro, pois não eram imitadas de Teófilo
Gautier — não cometeria tais erros: desejo-lhe a companhia de Homero, Camões,
Lamartine, ou Castro Alves, grandes poetas, até por terem pequenos defeitos...
Aos censores, desses pecados veniais, de grandes escritores, deixo como reflexo
isto, de d'Alembert: "Não é para produzir belezas, mas para evitar faltas
que os mestres destinaram as regras". É natural que a impiedade literária
se delicie em aplicar essas regras, ela que não pode criar aquelas belezas... E
é, só por isso, estranhável a um Bilac... O maior erro dele foi porém o de ter
desconhecido Castro Alves, quando o agredia. Referia-se às famosas
"bombas", improvisos de rua e teatros, composições feitas para o
povo, no alcance dele, que não podiam ter outro tom: o outro Castro Alves,
sublime lírico do amor e da natureza, do desejo e da saudade, domina o
primeiro, numa vasta proporção de sua obra. Imprimindo a de Castro Alves
demonstrei isto: — o cabedal lírico, incomparável, é três vezes mais abundante
que o outro, também incomparável, de poemas épicos, revolucionários e
proféticos com que fez a propaganda da Abolição e da República.
No tempo, a essa blasfêmia a que me
venho referindo, foi um clamor por todo o país: Lúcio de Mendonça à frente,
críticas, artigos, polêmica e às vezes até o insulto, exigiram a Bilac a
retratação da leviandade: — o grande poeta não demorou, reclamando o monumento
para o outro, que ofendera sem propósito, e por uma facilidade de imprensa...
Castro Alves, porém, sem guardar
rancor, tiraria de Bilac a vingança digna de ambos: inspirando ao outro, como
poetas de divinos versos líricos, como profetas de épicos "urros"
sociais. Os Tercetos da Alma Inquieta, que estão nas Poesias, são uma reminiscência
sentimental da Boa Noite de Castro
Alves. O amante não consegue desvencilhar-se dos braços da amante, que talvez,
apenas cautelosa, o despede, para se deixar facilmente convencer:
Eu
direi, me esquecendo d'alvorada:
É
noite ainda em teu cabelo preto...
disse Castro Alves; Bilac repetiu:
Espera!
até que o dia resplandeça
..........................................
E
ela abria-me os braços. E eu ficava.
mas ao dia sucede a tarde, a noite
virá... e diz um poeta
Marion!!
Marion!... É noite ainda
Que
importa os raios de uma nova aurora?
Como
num negro e sombrio firmamento
Sobre
mim desenrola teu cabelo...
E
deixa-me dormir balbuciando
—
Boa noite! — formosa Consuelo!
o outro responde, como um eco:
Sobre
o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar,
como há pouco repousava
Espera
um pouco! deixa que anoiteça.
—
E ela abria-me os braços. E eu ficava.
Mas a melhor vingança foi esta. Castro
Alves, no começo da vida, desde os 16 anos, que achara a sua vocação de poeta
social, e embora fazendo formosos poemas líricos, pretendeu e conseguiu ser o
que queria em prol da Abolição e da República: "um bom soldado pela causa
de redenção da humanidade". Olavo Bilac, ao fim da sua vida de poeta
laureado, querido e aplaudido autor dos mais sinceros e sensuais poemas líricos
que a nossa quente natureza de latinos e tropicais pode inspirar, não se
contentou com isso, e imitou a Castro Alves, tomando pelo rumo de uma grande
causa social, a Defesa Nacional, com o que, do norte ao sul do país,
"urrou" apóstrofes sublimes, estimulou entusiasmos grandiosos e moveu
à gratidão e à admiração do Brasil inteiro, que o estremece hoje como grande poeta,
que foi grande patriota. Foi reconciliação tácita com Castro Alves seguir-lhe o
exemplo, esse que os irmanou no mesmo apostolado, esse que aos artistas,
sibaritas da cultura e do gosto transfigura em profetas e heróis das eternas
causas humanas, e com as quais o poeta conquista o direito de viver no coração
da sua terra e sua gente... Deve agora Bilac ficar tranquilo, ao lado do outro,
a quem pode sem injustiça afirmar:
No
chão da História o passo teu verás...
---
Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)
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