3/08/2018

O mundo no século XV (Ensaio), de Rocha Pombo


O mundo no século XV

1 - Os séculos XV e XVI assinalam a grande época de transição dos velhos para os novos tempos.

O mundo até então conhecido da história clássica não era muito mais que a Europa.

Fora da Europa, mal se conheciam a Ásia (até o Indo), o Egito (quase só a bacia inferior do Nilo) e o litoral africano do norte.

Mesmo na Europa havia países que só depois é que entraram na história.

São esses os limites do mundo ocidental naquela época.

Quanto ao conhecimento da periferia do globo nada se havia, pois, adiantado ao que tinham feito os antigos.

Havia-se mesmo perdido alguma coisa da obra dos fenícios e dos gregos.

Não se havia ainda constituído propriamente uma ciência geográfica.

Os poucos que estudavam a Terra só nos deixaram noções quase sempre falsas, e hipóteses absurdas.

Se muito pouco se sabia da própria Europa, é fácil imaginar que concepção se poderia ter do resto do planeta.

A própria redondeza da Terra, quando não era negada com absoluta segurança, tornava-se objeto de apaixonada controvérsia entre os sábios.

A ideia de antípodas despertava indignação e repulsa entre os mais altos espíritos.

2 - É, bem conhecido o incidente em que figuram Colombo e os mestres de uma escola célebre do tempo.

Quando teve de expor o seu problema, fundado na esfericidade da Terra, viu-se o homem "alucinado" em grandes apuros para rebater as objeções que os luminares da Universidade de Salamanca (a mais notável no tempo, depois da de Paris) lhe opuseram às conclusões que apresentava.

"Admitida — entendiam aqueles sábios — a redondeza da Terra, como quereis, seria o mesmo que admitir a existência de antípodas — o que não passa evidentemente de uma extravagância —."

E para ilustrar o seu parecer, profundavam toda a erudição antiga, concluindo que sustentar semelhante dislate (de Terra esférica) seria "negar a Bíblia", acreditando "que há nações que não descendem de Adão, pois essas nações não poderiam ter passado o oceano intermediário..."

E batiam de frente a loucura do presunçoso fechando a questão com esta ingênua pergunta: — "Pois bem, admitamos que a Terra é mesmo redonda: — como é que, depois de descerdes pelo oceano de um lado, haveis de voltar? Voltareis pelo lado oposto, ou pelo mesmo lado? Se pelo mesmo lado como é que haveis de caminhar para cima... de baixo para cima?"

3 - Para a ciência oficial, a Terra já estava dividida em três zonas; mas a única que se julgava habitável era a temperada.

Fora desta zona, não se acreditava que houvesse seres vivos.

Para o norte, o frio polar era incompatível com a vida; e para o sul, ficava um oceano desconhecido, impossível de navegar — o temeroso mar da noite, ou mar tenebroso—.

O mapa mais antigo e mais autorizado, que se conservava, era o de Agatodemo (do século II), desenhado de acordo com as informações do Almagesta, de Ptolomeu.

Neste planisfério figuram: além de muitas ilhas e mares interiores, a Europa ainda muito mal conformada; a Ásia, maciça até a longitude de 180 graus, e aí bruscamente interrompida; achando-se a índia Cisgangética (Indostão) truncada, e tendo para o sul, desmesuradamente grande, a Taprobana (Ceilão), e muito aberto para o oriente, o Quersoneso do Ouro (Indo-China).

A África está prolongada longitudinalmente até ai, e dentro da latitude de 20 graus.

Fronteira à extrema costa meridional da Ásia, desenha-se uma terra austral desconhecida, como continuação da África (sem nunca exceder a latitude de 20 graus) até emendar cora outra terra nos confins orientais, aos 180 graus.

4 - Pelos fins do século XIII publicava-se o mapa de Marco Polo; o qual não é muito mais que uma reprodução do de Ptolomeu, adiantando apenas alguma coisa quanto à China e toda a parte da Ásia que o viajante havia visitado.

Continua neste (onze séculos depois de Almagesta!) a África a terminar aos 20 graus de latitude.

Madagáscar ficou muito perto de Ceilão; e entre as duas grandes ilhas, estão mais 12700 ilhas pequenas.

No lugar onde Ptolomeu indica terra firme, de norte a sul, a 180 graus, dá Marco Polo as Ilhas das Especiarias (7448), tendo estas ao norte, já separada do continente, a grande ilha de Cipango (Japão).

Quase um século depois de Marco Pólo, desenhou-se em Espanha uma
carta, que é conhecida pelo nome de Carta Catalã.

Não é esta mais que um perfil das costas da Península Ibérica (só com a indicação de Lisboa — o que é bem significativo — ) e da costa africana até o cabo Buicedor (o Bojador) indicando ainda para o sul o cap de finisterra de afjricha.

Já se havia, pois, avançado até além da latitude de 30 graus; e a farta nomenclatura de acidentes geográficos mostra que antes do século XIV já os portugueses conheciam o litoral da África pelo menos até ali.

5 - Um geógrafo veneziano da primeira metade do século XV, André Bianco, desenhou um mapa-múndi que é talvez o documento mais curioso da ciência daquele tempo.

Nesse mapa figura o antigo continente como única parte sólida da Terra, e dividido em três porções — Europa, Ásia e África — circuladas de água.

A África já se prolonga para o sul além do Bojador; e distende-se depois para leste paralelamente com a costa da Ásia, até os 180 graus.

A Ásia termina a oriente em duas enormes penínsulas.

Fora da Europa, África e Ásia, só estão indicadas infinidades de ilhas, mesmo nos rumos por onde até então se supunha que existisse terra firme.

É preciso ainda, entre os trabalhos geográficos daqueles tempos (fins do século XV) citar o globo terrestre de Martinho Behaim, cosmógrafo e navegante alemão, nascido em Nuremberg.

Nessa esfera, que é a mais antiga conhecida, já se revela a preocupação de procurar pelo ocidente o caminho das índias.

Nela se vê que entre a Europa e a África de um lado (a África ainda truncada) e o extremo oriental da Ásia fronteira, estão indicadas numerosas ilhas, entre as quais a maior é a de Cipango.

6 - E, no entanto, esses erros, que passavam como verdades acerca da Terra, não eram ainda os maiores obstáculos marítimos.

O que mais desestimula a inteligência e a audácia daquelas gerações são os prejuízos, as abusões correntes, as lendas e fantasias, cada qual mais disparatada, que enchiam a imaginação de todo o mundo, e até principalmente, dos profissionais e homens de ciência.

Dava-se o grande mar, que era preciso investir, como povoado de monstros, e acabando de repente em voragens que engoliam navios, e apresentando a cada instante perigos e entraves que homens não seriam capazes de vencer.

Era necessário, portanto, que alguma coragem sobre-humana, ou a temeridade de algum novo heroísmo, se afoitasse a afrontar os mistérios do mar oceano.

Por isso mesmo é que julgamos indispensável nesta lição, antes de tudo, sugerir ao leitor uma ideia do que devia ser o espírito humano fechado nos estreitos limites daquele mundo, e assim habilitar-nos a bem apreciar a espantosa ressurreição, o vasto renovamento espiritual, a grandeza daquela obra surpreendente do século XV.

E no momento em que o esforço dos portugueses, ao cabo de cerca de um século de afanos e sacrifícios, desvenda novos horizontes aos olhos ansiosos daquela Europa exausta e obstinada na sua incredulidade, o que
nos cumpre é acentuar bem que a fase que se vai seguir (de fins do século XV em diante) foi gerada, como um milagre, da fé e coragem daquelas gerações que iniciaram a epopeia marítima.

7 - Porque é preciso não esquecer que enquanto os portugueses, primeiro ensaiavam, e logo depois instituíam definitivamente o problema das grandes navegações, todos os demais povos da Europa andavam alheios a tais empreendimentos; uns cuidando de fazer a sua integração política sobre os remanescentes do regime feudal; outros procurando, pelo trabalho resignado, conciliar-se com as condições de geral penúria; e ainda muitos fazendo a guerra como um derivativo de embaraços internos; e todos vivendo de uma suspeita aflitiva uns contra outros.

A França e a Inglaterra dirimiam o seu conflito secular. Perdida a ilusão dos seus intentos de domínio no continente, cai a segunda num período de lutas intestinas que lhe fizeram maiores males que os cem anos de guerra; enquanto a França trata de tirar, para a sua política interna, todos os proveitos da vitória.

A Espanha, para constituir a sua unidade política, esforça-se por liquidar a sua causa contra os mouros.

As províncias de Holanda cuidam providamente da sua vida.

Na Itália, consolidam-se grandes famílias nos pequenos Estados que saíam da anarquia medieval.

Se na Europa marítima ninguém se apercebia da obra que andavam levando os portugueses, decerto que não havia de ser nos países continentais que se tomasse mais interesse por uma causa que só se sentiu depois de abertos os grandes caminhos para a terra. 

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