Artigo publicado em 1940. Transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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O emprego inteligente do adjetivo
é uma das condições de êxito no estilo. Há, evidentemente, uma inteligência
secreta, que move as palavras, e as faz adquirir ou perder os relevos com que
as sentimos. A natureza gramatical do adjetivo condenou-o a uma posição
inferior na frase. Deu-lhe uma tarefa secundária, qual seja a de modificar o
nome, emprestando-lhe ideias de qualidade e determinação. Além dessa simples atribuição,
possui o adjetivo um poder que escapa ao espaço limitado da gramática. É uma
força que está além do raciocínio didático e só a imaginação pode revelar.
Há quem empregue muito o
adjetivo. Empregar muito não é, porém, empregar bem. O desperdício do termo, a frequência
com que aparece na frase já levou os críticos a criarem uma classe para os
autores que ornamentam excessivamente o estilo: escritores-adjetivos.
Coelho Neto, por exemplo. Padece
o grande romancista da exuberância vocabular com que nutriu a sua obra.
Recebida a princípio com entusiasmo, em breve começou a sofrer as restrições
naturais, desmerecendo à proporção que o gosto dos seus leitores voltava ao equilíbrio.
Houve, então, quem levasse a má vontade ao ponto de declarar que, suprimidos os
adjetivos, nada ficaria na obra do insigne prosador.
Os que condenam o emprego do
adjetivo não sabem estabelecer a diferença que vai entre usar e abusar deste. O
estilista de “O Sertão” não usou apenas. Deu à frase uma sobrecarga que lhe
comprometeu as galas da expressão. Foi o seu erro. Erro continuado pelos
imitadores e agravado pelos que vieram depois.
A época de Coelho Neto passou.
Acabou-se a “coelhonetização” da literatura, como o neologismo dos modernistas batizou
certo período das nossas letras, em que sobravam os ornatos e escasseavam as ideias.
Veio então o advento dos
escritores substantivos, isto é, daqueles que punham todo esmero em “escrever
diferente”, deixando de lado, por inútil, o adjetivo, e condenando-lhe o
emprego como forma de reação ao uso que desfrutara.
No fundo, não seria propriamente
isso. Seria, antes, a maneira de esconder certas deficiências, porque o uso do
adjetivo implica em responsabilidade muito maiores do que, geralmente, se
imagina. Requer, ao mesmo tempo, inteligência e propriedade, graça e raciocínio.
"O substantivo — escreveu
numa análise interessante o senhor Francisco Patti — está ao alcance de todas
as penas. Basta mergulhar a pena no vasto tinteiro dos seres e das coisas. O
adjetivo, não. Dá o substantivo ideia daquilo que pensamos. Mas a força, a
intensidade e o relevo do que pensamos são atributos que só o adjetivo poderá
exprimir. Para quem escreve, é o adjetivo o grande obstáculo.”
Com efeito. Não basta conhecer os
termos. É preciso combiná-los de maneira que a frase adquira a vida que se lhe
quer dar. Não é o número nem a raridade dos adjetivos que faz ou enobrece um período.
É a combinação, a oportunidade, o jogo.
A propósito disso, rememora o
senhor F. Patti a passagem de Jean Jacques Brousson em seu retrato íntimo
“Anatole em pantoufles”. O indiscreto secretário do mestre de “O jardim de
Epicuro” apresenta como lição aos plumitivos o conceito daquele quanto ao
emprego do adjetivo. Outros procuravam ou achavam no verbo toda a força da
frase. Ele, não. Era ao adjetivo que ia buscar o segredo e a graça de sua
prosa. E aplicava esta regra desconcertante, mas procedente: “Apesar do
adjetivo concordar em gênero, número e caso com o substantivo, o desacordo é o
que convém muitas vezes”.
Passando ao exemplo, explicava:
“sempre que tiverdes de empregar junto ao mesmo substantivo dois adjetivos,
fazei que um exprima o contrário do que exprime o outro. Nasce desse desacordo
a graça, a força do período. Não digais, tratando por exemplo de padres, que
eles são “magníficos e piedosos.”
Esses adjetivos chegam ao mesmo
fim por vias diversas. Ambos dão solenidade aos padres e á frase. É preciso
contrariá-los. Dizei: “padres piedosos e obesos.”
Qualificando-os destarte, parecia
ao estilista que a expressão ficava muito mais fiel e... próxima da verdade.
O sentimento revelado nessa
expansão de Anatole France demonstra o cuidado que ele punha na adjetivação da
frase, de modo que esta ganhasse as intenções que lhe transmitia.
Não implica, entretanto, em
privilegio de estilo.
O nosso Machado de Assis, sem
confessar essas tendências, punha-as em prática por sua conta, dando aos períodos
a leveza e o encanto que todos lhe reconhecem. Descobrira paralelamente o
segredo que a indiscrição de Brousson muitos anos depois revelaria, como uma
das notas que abriam o entusiasmo de todos os livros de seu mestre.
OSVALDO ORICO
"Ilustração Brasileira", outubro de 1940.
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