Louvor e nativismo em Silva Alvarenga
Artigo publicado no "Suplemento Literário), no ano de 1957. Pesquisa, transcrição e adaptação orográfica: Iba Mendes (2018)
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A segunda metade do século XVIII já
podemos apontar na obra poética de Manuel Inácio da Silva Alvarenga uma atitude
de transição entre o espírito servil e bajulador e o espírito independente dos
autores da Literatura Brasileira colonial em relação aos mandatários e
poderosos de Portugal. E tal atitude associa-se ao enriquecimento progressivo
do sentimento nativista. Mas é preciso acentuar que, no caso particular de
Silva Alvarenga, está definida, antes de tudo, uma posição crítica assumida em
face de uma temática encomiástica, como uma das expressões do estilo dominante.
É o que deduzimos da leitura das quintilhas "Ao vice-rei Luiz de
Vasconcelos e Souza no dia de seus anos". É jocoso o tom da composição
citada, sob uma aparência séria, para exprimir verdade crítica — e crítica
satírica — primeiro ao gosto geral da época, do elogio regular e
obrigatoriamente dirigido aos mandatários da época e, em segundo lugar, ao
artificialismo formal e temático que resultava em especial desse tipo de poesia
laudatória:
Musa, não
sabes louvar
E por isso
neste dia,
Entre as vozes
d'alegria,
Não pretendo
misturar
Tua rústica
harmonia.
Tens razão,
mas não escuto
Os teus
argumentos belos:
Por mostrar
nossos desvelos
Demos o anual
tributo
Ao ilustre
Vasconcelos.
E passa a sugerir os modelos — Camões,
por exemplo, e as formas poéticas: odes, sonetos, canções, idílios, acrósticos,
assim como o vocabulário e a expressão, em suma:
Se acaso a ode
te agrada,
Para aterrar
teus rivais.
Tece em versos
desiguais
Crespa frase
entortilhada,
Palavras
sesquipedais.
Co'as
virtudes, co'as ações
Do nosso herói
não te metas:
Basta que a
obra dilates,
Dividida em
pelotões,
Por sonoros
disparates.
Hão de rir de
Jove as filhas,
Marte horrendo
e furibundo,
E com saber
mais profundo,
Traze as sete
maravilhas,
Que ninguém
achou no mundo.
Sob o aspecto indicado, comprovado
pelas estrofes transcritas, a composição é, no seu conjunto, um verdadeiro
documento de afirmação inicial de reação crítica não tanto à poesia
encomiástica como ao artificialismo do gosto poético dominante e de
remanescentes culteranistas, visando até certo ponto à atitude criadora
independente e de conteúdo poético autêntico. Contudo, Silva Alvarenga não
conseguiu fugir às solicitações do meio e cultivou, com toda a solenidade
“acadêmica" ou "arcádica", a atitude poética por ele mesmo satirizada,
certo que com dignidade e sentimento nativista suficiente para reconciliá-lo
com o juízo crítico e histórico da posteridade. Considere-se, no caso, a canção
intitulada "Apoteose poética — A Luiz de Vasconcelos e Souza — Vice-rei e
capitão-general-de-mar-e-terra do Brasil — Oferecida no dia 10 de Outubro de
1785", escrita em tom épico camoniano em exaltação daquele mesmo a quem
dirigiu as quintilhas cuja atitude crítica acabamos de ressaltar. Mas, como
atenuante, vemos aí que de fato o poeta se afasta o quanto possível do tom
exageradamente laudatório e convencional do gosto da época. Se exalta, então,
origem nobre e ilustre do homenageado, muito mais, porém, se preocupa em
sugerir-lhe atos de um bom governo, justo, industrioso, de paz e prosperidade.
Igualmente aponta o que ele de fato fez entre nós, como se esboçasse assim já
uma expressão de orgulho e reconhecimento nativista, sem dar maior relevo à
maneira predominante de apresentar o "herói" através de sua
ascendência e com juízos, conceitos, comparações vagas, incaracterísticas.
Dir-se-ia, então, que o poeta não pôde
evitar as limitações impostas pelos valores de sua época, sobretudo por aqueles
definidos pelo prestígio, respeito e temor da nobreza despótica. E é assim que
também pode ser justificada a sua atitude na composição — "A tempestade —
No dia dos anos da rainha dona Maria I, em 17 de dezembro do 1797" de
evidente valor autobiográfico, expressão que deve ter sido das condições em que
se encontrou o poeta depois do fechamento da Sociedade Literária do Rio de
Janeiro, por motivos políticos e ideológicos. Mas parece que a sua maior
preocupação é ser sincero, enaltecendo as virtudes e o progresso da
inteligência ou elogiando o mérito incontestável, como na ode "À mocidade
portuguesa — Por ocasião da reforma da Universidade de Coimbra" ou em
outra composição ainda dirigida a D. Luiz de Vasconcelos Souza, a ode "O
recolhimento do parto", de 12 de outubro de 1788, em que é evidente a
preocupação de não passar por um lisonjeador servil.
Nestas em outras composições
encomiásticas, corre paralelo o sentimento nativista, como expressão de
afirmação de uma "consciência pátria", da indicação, em relevo, e o
quanto possível assimilado pelo estilo arcádico, de aspectos caracterizadores
de nossa paisagem quase que o reconhecimento do nosso destino político não mais
como expressão de um simples prolongamento da Monarquia Lusitana, o que antes
nos alimentava aquela consciência de inferioridade acima referida. Veja-se, por
exemplo, a ode "A Inauguração da estátua equestre do rei D. José I".
Mas é em dois idílios "O templo
de Netuno" e "A gruta americana", ambos dirigidos a José Basílio
da Gama, e em que, agora, o propósito louvaminheiro cede lugar ao culto da
amizade, tão do gosto arcádico, que se acentua melhor a atitude indicada, isto
é, a poesia encomiástica, tomada no seu mais amplo sentido, corroborada pelo
sentimento nativista. Na primeira, é a despedida do poeta, que, de Portugal,
onde cursou a Universidade de Coimbra, regressa à pátria, como satisfação ao
apelo do seu sentimento:
Amor, o puro
amor do patrioninho
Há muito que
me acena e roga ao fado
Que eu sulque
o campo azul Ido deus marinho.
E esta atitude anuncia, entre nós, a
temática do "amor da pátria" e "da amizade", logo mais
frequente entre os poetas da segunda fase do nosso Arcadismo, já acentuadamente
pré-romântico, como José Bonifácio de Andrada e Silva e Domingos Borges de
Barros. A segunda composição carrega de fato a expressão nativista nos traços
da paisagem americana evocada, transpondo para o seu seio, resultado de
recursos estilísticos arcádicos, deuses e ninfas que convivem harmoniosamente
com os elementos selvagens ou primitivos que a caracterizam. Ao mesmo tempo
confirma, possivelmente com intenções políticas, o sentimento de fidelidade da
"lusa-américa” à Monarquia Portuguesa, como se lê no final do idílio:
Ide, sinceros
votos,
Ide, e levai
ao trono lusitano
Destes climas
remotos
Que habita o
forte e adusto e Americano,
A pura
gratidão e a lealdade,
O amor, o
sangue e a própria liberdade.
JOSÉ ADERLARDO
CASTELLO
Suplemento
Literário, dezembro de 1957.
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