Publicistas,
oradores, críticos
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Segundo temos verificado, no
período colonial compunha-se sobretudo a nossa literatura de poesia, lírica ou
épica, com alguma rara e insignificante amostra da dramática, e mais de
crônicas, notícias e informes do país, história, obras de edificação e moral
religiosa e sermões. Com o Romantismo, com que lhe iniciamos o período
nacional, apareceram outros e mais variados gêneros literários, a filosofia, a
crítica e a história literária, o teatro, a oratória política e parlamentar, a
ficção em prosa e as vernaculamente chamadas questões públicas, ou
publicística, segundo o barbarismo em voga.
Esta como aquelas duas variedades
novas de oratória, não podiam aliás existir senão num regime de livre opinião e
publicação de pensamento que só com a Independência tivemos. O estabelecimento
da imprensa consequente ao da sede da monarquia portuguesa aqui, em 1808, sobre
haver servido para estimular o sentimento nacional excitado por essa mudança
política, veio favorecer o advento de novas expressões da nossa atividade
mental, naturalmente influída por esse mesmo alvoroço. Não foram poucas, embora
sejam na maioria somenos, as publicações de assuntos econômicos, políticos e
sociais feitas pela Imprensa Régia, depois Imprensa Nacional, desde o ano da
sua fundação até o da Independência, já originais, já traduções.
O movimento político que
antecedeu e seguiu a Independência suscitou vocações de estudo e discussão das
questões públicas de imediato interesse do país. Aparece então o mais célebre
dos nossos publicistas, o criador dos estudos econômicos e sociológicos no
Brasil, José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, de quem já dissemos. Vêm logo
depois ou simultaneamente com ele, os jornalistas cujos nomes acaso
impertinentes na história da nossa literatura, qual a concebemos, pertencem à
da nossa formação política, e tão notáveis se tornaram que ainda hoje, não
obstante nunca mais lidos, nos são familiares: Hipólito da Costa (tinha o
comprido nome de Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça), o
fundador e redator do Correio Brasiliense
(1808-1822); Januário da Cunha Barbosa, então muito apreciado orador sagrado e
poeta, e Joaquim Gonçalves Ledo, redatores do Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822); José Bonifácio, o
padrinho e o mais eminente estadista da Independência, com o seu Tamoio (1823), e por fim, já ao cabo do
período, Evaristo Ferreira da Veiga, da Aurora
Fluminense (1828-1835), jornal grandemente influente no seu tempo, sem
falar dos escritores ou simples foliculários dos numerosos e efêmeros jornais
dessa época agitada. Já vimos que uma revista de exíguo formato, mas de nome
expressivo e de intenção claramente nacionalista, o Patriota (1813-1814), fundada e dirigida pelo prestante polígrafo
Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, atuou utilmente na literatura
imediatamente anterior ao Romantismo, agrupando como seus colaboradores os
homens de melhores letras do tempo.
Abundaram no momento da fundação
do Império os jornais e panfletos políticos ou simplesmente facciosos que mais
que ideias representavam as paixões de momento e lhes traziam no estilo os
ardores e violências. A literatura, porém, não recolheu nenhum deles. Ainda os
que com esses, ou posteriormente com a Aurora,
mais doutrinais e mais bem escritos, se tornaram relevantes pela ação que acaso
tiveram, ou somente pela impressão que porventura fizeram, redigidos alguns por
indivíduos consideráveis, esses mesmos carecem de virtudes literárias que os
façam viver senão como documentos para a nossa história política ou testemunhos
do nosso pensamento político contemporâneo. Entre tais opúsculos e panfletos,
citam-se como mais notáveis, isto é, como tendo tido mais repercussão no seu
tempo, Carta aos eleitores, de
Bernardo de Vasconcelos (1828); Facção áulica,
por Firmino Rodrigues Silva (1847); Libelo
do povo, por Timandro Sales Torres Homem (1849); Ação, reação, transação, de Justiniano Rosa da Rocha (1855); Conferência dos divinos, por Antônio
Ferreira Viana (1867); e, mais notavelmente, as Cartas de Erasmo, de José de Alencar (1865-66), às quais o grande
nome literário do autor emprestou merecimento que talvez não tivessem.
Contemporâneos destes, de uma
atividade literária dispersiva e passada quase toda na província, a de
Pernambuco, donde ambos eram, foram dois escritores cujos nomes tiveram certa
popularidade, não de todo extinta, Miguel do Sacramento Lopes Gama (1791-1852)
e José Inácio de Abreu e Lima (1796-1869). O primeiro, além de numerosas traduções
do francês e do italiano, de obras de filosofia, religião, economia política,
educação, nenhuma importante, deixou poemas herói-cômicos e satíricos, e prosas
também satíricas, mas é sobretudo conhecido pelo seu jornal da mesma natureza O carapuceiro (Pernambuco, 1832-1847).
Foi autor didático e um dos escritores mais corretos do seu tempo. Abreu e Lima
deixou na sua terra natal, e ainda no Brasil ilustrado, o renome de um
polígrafo notável. Escreveu com efeito compêndios de história do Brasil, polêmica
literária e religiosa, o primeiro livro sobre socialismo aqui publicado (O socialismo, Recife, 1855, 352 págs.),
obras de direito ou sobre questões públicas, estudos diplomáticos e médicos,
etc., tudo com certo vigor de estilo, mas com graves falhas sob o aspecto da
linguagem.
Quando o Império sai vitorioso
das dificuldades dos seus primeiros vinte e cinco anos, e o Romantismo
triunfara inteiramente com esta literatura quase somente política, entram a
aparecer escritos de outro e mais alto interesse e valor sobre questões
públicas, problemas de administração e economia nacional. Versaram-nos
principalmente jornalistas muito apreciados no seu tempo e cujos nomes chegaram
até nós ainda celebrados, como Justiniano da Rocha, Saldanha Marinho, Quintino
Bocaiúva (que fez também literatura escrevendo teatro e crítica e dirigindo
revistas e empresas editoriais), Ferreira Viana, Tôrres Homem, José Maria do
Amaral (também bom poeta), José de Alencar, Otaviano de Almeida Rosa, Silva
Paranhos. Alguns destes e outros cujos nomes se lhes poderia razoavelmente
juntar, se haviam ensaiado como publicistas nas suas províncias, onde também
floresceu esta literatura política. Como dentre essas é o Maranhão aquela cujo
concurso foi mais considerável e precioso para o nosso movimento literário do
Romantismo, foi também essa província que principalmente contribuiu com alguns
nomes, dos quais o maior é o de João Lisboa, para aumentar a lista dos
publicistas brasileiros dessa época. Em todo o país, porém, nomeadamente em
Pernambuco, Bahia, São Paulo e Minas, foi então notável a obra da imprensa
jornalística, que produziu alguns escritores de mérito, cujos nomes, apesar da
forçosa caduquez da sua literatura, não estão ainda de todo esquecidos.
O publicista de livros de maior
capacidade e de obra mais considerável desde o Romantismo ao Modernismo foi,
além de João Lisboa, cujo Jornal de Timon
literariamente o sobreleva a todos, Tavares Bastos (Aureliano Cândido,
1839-1875). Consta a sua obra de Cartas
do solitário, estudo sobre várias questões públicas (1863), O Vale do Amazonas, estudos de economia
política, social e estatística (1866), A
Província (1870), estudo da mesma natureza sobre a descentralização
política da nação, e mais meia dúzia de obras menores. Distingue-as a todas a
quase novidade de tais estudos aqui, onde apenas se depararia algum feito com a
mesma objetividade, a mesma sincera e desinteressada aplicação, a mesma
seriedade de intuitos e de pensamento, estreme de paixões partidárias ou
tendências egoísticas. Se Tavares Bastos se não distingue por notáveis
qualidades de escritor, o seu estímulo é todavia fácil e corrente, e a
sinceridade dos seus estímulos e a sua íntima convicção lhe dão não raro vigor
e brilho. Mais do que um simples penteador de frases, foi um disseminador de ideias,
que germinaram e que aí estão em parte realizadas. Foi em suma um precursor, de
fato mais eficaz do que muitos cujos nomes andam injustamente mais celebrados
que o seu.
Mas obras como as suas, quando
porventura não as salvam qualidades excepcionais de pensamento e expressão,
perdem, com a oportunidade que as motivou, o melhor do seu interesse. Se a
história literária pode lembrá-las como um documento a mais da atividade mental
de uma época, que ajuda a lhe completar a feição e relevar a importância, a
literatura – à qual não se incorpora de fato se não o que por virtudes de
ideação e de forma tem um interesse permanente – as deixa de lado.
Quando Tavares Bastos publicava o
seu último livro, em 1870, iniciava-se já o movimento geral que ia modificar a
mente brasileira e as suas manifestações escritas, e simultaneamente a feição
política da nação. Dele era importante a questão que aqui se chamou do elemento
servil e que no seu mais saliente aspecto, a emancipação dos escravos, tanto
interessou e tão intensamente alvoroçou o país. Dela há impressões notáveis, e
até fortes, na literatura nacional, no romance, no teatro, na poesia, na
oratória e nos estudos econômicos e sociais. Um poeta que acaso poderia vir a
ser grande, Castro Alves, celebrizou-se então como "cantor dos Escravos", título do poema em que
lhes idealizava a miséria da condição e os sofrimentos. A publicística com este
objeto foi abundante, e nela a declamação, a retórica, a oratória
presumidamente eloquente porque retumbante e ruidosa, deram-se largas. Além de
livros como os de Perdigão Malheiros, A
escravidão no Brasil, ensaio histórico, jurídico, social (Rio de Janeiro,
1866-67), aliás de distinto merecimento, e que antecedeu e preparou a fase
decisiva do movimento abolicionista, destacam-se outros de propaganda direta
como os de Joaquim Nabuco, e os que procuravam servir servindo à causa do
desenvolvimento econômico do país, mediante outros fatores e processos que não
o escravo e a escravidão, pelos seus autores condenados e combatidos. São
exemplo dessa literatura subsidiária da propaganda abolicionista Trabalhadores asiáticos, de Salvador de
Mendonça, e Garantia de juros e
Agricultura nacional, de André Rebouças. É, porém, o Abolicionismo, de Joaquim Nabuco (1833), a melhor manifestação
literária do gênero e momento.
Também a questão religiosa, como
aqui impropriamente se chamou ao conflito de dois bispos com o governo imperial
por motivo de interdição por aqueles, sem beneplácito deste, de irmandades
religiosas, deu lugar ao aparecimento de livros e folhetos discutindo a
questão. É ao cabo somenos o valor doutrinal e literário dessa literatura. O
mérito principal da discussão acesamente travada entre regalistas defensores do
poder temporal, ultramontanos propugnadores do pleno direito da Igreja e
livres-pensadores hostis a ambos, foi ter despertado aqui o eco de
controvérsias histórico-político-religiosas travadas na Europa e atingindo à
mesma religião oficial, desde então mais desenganadamente posta em debate
público, não só no seu privilégio, mas na sua essência. Como principais
documentos da contenda ficaram: A Igreja
e o Estado e vários opúsculos com o mesmo motivo por Ganganeli (Joaquim
Saldanha Marinho, 1873-1876), Direito
contra o Direito, pelo bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa (1874), A Igreja no Estado, por Tito Franco de
Almeida (1874), Missão especial a Roma em
1873 (1881) e o Bispo do Pará ou a
missão a Roma (1887), pelo Barão de Penedo (Francisco Inácio de Carvalho
Moreira), e a longa, exaustiva e sábia Introdução
posta pelo Sr. Rui Barbosa à sua tradução do famoso panfleto de Janus (o cônego
Suíço-Alemão Doellinger), O Papa e o
Concílio (1877). Também o interesse e sabor destes e de muitos outros
escritos do mesmo motivo e ocasião, dos quais apenas poucos terão algum mérito
intrínseco, desapareceram com as circunstâncias que os produziram.
Cabe aqui a interessantíssima
figura de Joaquim Nabuco. Historiador, crítico, sociólogo, economista, orador
parlamentar ou tribuno popular e moralista, em tudo foi essencialmente um
publicista, se por publicista podemos também entender o escritor que escreve
por amor e interesse da causa pública e cuja íntima inspiração é política.
Temperamento de raiz político, espírito curioso e interessado pela causa
pública e nimiamente sensível aos seus movimentos e manifestações, incapaz de
satisfazer-se de temas puramente literários, Joaquim Nabuco, na maioria e no
melhor do que escreveu, é um escritor político no mais alto significado da
expressão. Nele, porém, exemplo talvez único entre os nossos publicistas, o
talento literário realçou de tal maneira a feição política, que era a principal
do seu espírito, que fê-lo um verdadeiro, um grande escritor. Constituía-lhe o
talento literário, além da imaginação, que é uma das suas faculdades dominantes,
grande riqueza de ideação, aumentada da facilidade de apropriar ideias e
afeiçoá-las consoante o seu próprio espírito. Tinha mais peregrina distinção de
pensamento e notável capacidade de ideias gerais. E os seus dons naturais de
expressão graciosa e elegante, eloquente e comovida, eram tais que não
alcançaram minguá-las as suas insuficiências na língua. Se não é, como Macedo,
Alencar ou Machado de Assis, um literato, esses dons e mais as suas faculdades
estéticas, o seu fino sentimento artístico, fizeram dele um dos mais completos
e insignes homens de letras que temos tido.
Ao contrário da máxima parte do
escritores brasileiros, que quase todos tiveram origens medíocres senão
ínfimas, Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo procedia de estirpe fidalga, da antiga
nobreza territorial de Pernambuco, e era de uma família senatorial. Seu avô e
seu pai foram senadores do Império e ocuparam nele altas situações de
administração pública. Nasceu na capital daquela Província em 19 de agosto de
1849. Na respectiva faculdade formou-se em Direito. Diplomata
no princípio da sua vida pública, como tal acabou embaixador em Washington, em
17 de janeiro de 1910. Entrementes foi jornalista, parlamentar, propagandista
da abolição da escravidão, escreveu versos e ensaios, fez crítica e
conferências literárias e políticas, publicou folhetos e livros, propugnou a
Confederação das províncias sob o Império. Caído este, Joaquim Nabuco fez-se
por alguns anos o seu mais caloroso e brilhante paladino. A sua viva
imaginação, a sua ativa inteligência, o seu profundo gosto de ação pública e de
notoriedade não lhe consentiam, ainda malgrado seu, deixar sem emprego um
talento em toda a sua força e um espírito pouco feito para a abstenção, o
isolamento ou a intransigência teimosa. Arrastado por estas forças,
"procurou reconciliar-se com os nobres destinos da nossa pátria e,
religiosamente, segundo a sua bela imagem, envolveu a sua fé monárquica na
mortalha de púrpura em que dormem as grandes dinastias fundadoras".
Apenas a trama do espírito de Nabuco
seria brasileira, pelas heranças de raça onde haveria acaso uma gota de sangue
indígena, pela ação do meio rústico onde lhe passou a primeira infância
recontada por ele numa página imortal, pela influência do ambiente em que se
criou e fez homem, pelas suas afinidades de orgulho de estirpe com a gente
consular de que procedia. Mas o lavor e recamo posto nessa delgada trama
nacional era todo estrangeiro, metade francês, metade inglês, e pontos escassos
mais firmes da cultura greco-romana. De formação, de índole, de sociabilidade,
mais um europeu que um brasileiro. Nem era isso privilégio seu. Crescido número
dos nossos intelectuais o compartilham com ele. Ele, porém, o foi mais e mais
distintamente que todos. A sua vida literária começou (excetuadas as produções
menores da adolescência) por um livro de versos em francês e acabou por um
livro de pensamentos também nessa língua, que porventura escrevia tão bem
quanto a própria. Nela ainda escreveu Le
droit au meurtre, carta a Ernesto Renan sobre o L'Homme Femme, de Dumas Filho, e um drama em verso L'Option , postumamente publicado.
Da literatura da sua língua, a
figura que melhor conheceu, quem sabe se não a única que conheceu, e amou foi
Camões. Consagrou-lhe um livro, o primeiro que publicou em português, Camões e os Lusíadas (Rio, 1872, in-8º,
294 págs.), e para o cabo da sua vida, já embaixador nos Estados Unidos, três
conferências em universidades americanas. Nesse livro, do qual ultimamente
desdenhava, havia, com a marca indelével de quem o escreveu, vistas certas e
originais da nossa literatura. Era, mesmo para o tempo, falha a sua erudição
camonianna, e sua crítica, e ele próprio o reconhece, demasiado objetiva e
ainda muito escolástica. Atenuavam-lhe os defeitos essenciais, o belo dizer e
os rasgos de talento que foram sempre, em todos os assuntos, apanágio seu.
Antes que o tomasse quase
exclusivamente a política, fez conferências, folhetins e artigos literários ou
artísticos, discursos acadêmicos, jornalismo político. Quando, por volta de
1880, começou a maior campanha contra a escravidão, de que todos os
brasileiros, pode dizer-se, se sentiam envergonhados, Nabuco entrou nela com
todo o ardor de um coração desejoso de servir uma nobre causa e ansioso da
glória que daí lhe resultaria. Entre os nossos abolicionistas da vanguarda foi
ele talvez o mais intelectual. Exteriorizou-se numa ação pública a que o seu
engenho literário, os seus dotes de orador, o brilho da sua personalidade e até
a beleza do seu físico e a elegância do seu porte e maneiras emprestaram lustre
singular. Além de discursos, conferências, artigos de jornais, escreveu o livro
O Abolicionismo, acaso o mais
excelente produto, sob o aspecto literário, desse movimento. Não era, como a
maioria daqueles a que o assunto deu ensejo, obra de retórica propagandista,
declamatória ou altiloquente, senão livro de raciocínio e argumentação, em suma
uma obra de pensador e escritor.
O melhor, porém, da sua obra
literária, a que lhe assegura um eminente posto nas nossas letras, a faz nos
quinze últimos anos, entre os 46 e os 61, de sua vida. São desse período os
seus livros Balmaceda e a Guerra civil do
Chile (1895), A intervenção estrangeira durante a revolta (1896) e, a maior
e mais importante de todas, Um estadista
do Império, J. F. Nabuco de Araújo, sua vida e opiniões: sua época (1898),
em que, com a vida de seu pai, político e jurisconsulto eminente, historia uma
fase importante do segundo império.
Embora inspirados todos de
espírito político, mas do seu espírito político, muito diferente pela elevação
e pela cultura do que costuma ser aqui esse espírito, esses livros são
eminentemente obra de escritor distintíssimo, e encerram algumas das mais belas
páginas da prosa brasileira. Por este aspecto valem como argumento contra o
preconceito do casticismo, provando que um autor brasileiro de real talento
literário, isto é, com as qualidades essenciais de pensamento, imaginação e
expressão, pode, a despeito do português estreme, ser em todo o vigor da
expressão um grande escritor. Tal o foi sem dúvida Joaquim Nabuco. Tal fora
também, embora com menor vigor e elegância, José de Alencar. Estes exemplos,
porém, são muito poucos, e de forma alguma autorizam, máxime a quem não tenha
as qualidades destes dois excepcionais escritores, o descuido da língua.
Outro publicista de talento,
muito espírito, boa linguagem e estilo elegante, ensaísta fecundo e original,
polemista vigoroso e agudo, um verdadeiro escritor em suma pelas peregrinas
qualidades da sua ideação e expressão, é Eduardo Prado. Chamava-se com todo o
seu nome Eduardo Paulo da Silva Prado. Nasceu na capital de São Paulo de uma
velha, importante e opulenta família, ali vinculada, em 27 de fevereiro de
1860, e na mesma cidade formou-se em Direito e veio a falecer em 30 de agosto
de 1901.
A sua obra é copiosa e foi toda
feita em jornais e revistas, um pouco ao acaso das circunstâncias e ocasiões.
Hoje acha-se toda reunida em nove volumes e compõe-se de artigos literários,
viagens, ensaios, discursos, crítica literária, social ou política, polêmica,
etc. Na literatura brasileira, Eduardo Prado tem duas singularidades: ser um
dos poucos senão o único homem rico e certamente o de mais valor que aqui se
deu, sequer como diletante, às letras, e ser talvez em a nossa literatura o
único escritor reacionário. Refiro-me a escritor e não a políticos que
ocasionalmente tenham escrito, nem a jornalistas, cuja obra efêmera não
considero aqui. Joaquim Nabuco, conquanto católico praticante e monarquista
convicto, não pode ser tudo por um reacionário, porque achou jeito de conciliar
com o seu catolicismo, porventura mais de imaginação que de sentimento, o seu
profundo liberalismo, e foi sempre, conquanto aristocrata de raça e
temperamento, irredutivelmente um liberal, um democrata em política. Eduardo Prado ,
que em tudo, em costumes, em opiniões e gostos, parece ter sido um diletante,
um espírito cosmopolita, pode ser que fosse também em crença religiosa e
política. A sua curiosidade intelectual, o seu gosto do novo e do exótico,
diga-se, a dose de esnobismo que havia nele, e certo senso de elegância e
mudanismo hostil à nossa baixa democracia, e mais a sua frequentação de meios
monárquicos e reacionários de Paris, explicam talvez o seu reacionarismo
católico e monárquico, em oposição com a sua natural independência mental e
irreverência espiritual. É o nosso mais acabado tipo de diletante intelectual,
do amador das coisas de espírito. E amador e diletante o foi em tudo, com bom
humor, muito espírito e inconsequentemente. Com pontos de contato com Nabuco,
não tem o seu talento, e menos a sua seriedade espiritual. O brilho mundano da
sua existência de moço rico e pródigo, as suas longas viagens, a sua existência
europeia, o seu íntimo comércio com homens de letras europeus, deram-lhe um
prestígio que a sua só obra literária, aliás documento de talento literário
pouco vulgar, acaso não lhe teria só por si dado. Aumentou-lho a perseguição
tolamente feita pelo Governo Provisório da República ao seu brilhante panfleto A ditadura militar no Brasil e a atitude
por ele tomada em face não só da República mas do geral sentimento liberal do
país.
Como escritor, Eduardo Prado foi,
em suma, um jornalista, porém com mais talento, mais espírito, mais cultura e
mais experiência do mundo que o comum deles. Da causa pública teve menos o
interesse que a curiosidade do seu elemento dramático. A política foi-lhe
apenas um tema literário, que tratou com a desenvoltura de um espírito no fundo
cético e paradoxal.
A publicística, no seu mais exato
sentido de literatura das questões públicas, nunca de fato se incorporou aqui à
literatura propriamente dita ou a enriqueceu com exemplares de maior valor que
o ocasional e de emoção menos efêmera que a do momento. Salvo em um ou outro
jornalista de mais vigoroso pensamento e de mais perfeita expressão, como
Justiniano da Rocha, Otaviano Rosa, Quintino Bocaiúva e os já atrás citados
Tito Franco de Almeida, Saldanha Marinho, Ferreira Viana, José de Alencar e
outros, e mais perto de nós Salvador de Mendonça, Ferreira de Araújo, Ferreira
de Meneses, Leão Veloso, Rodolfo Dantas, Belarmino Barreto, José do Patrocínio,
cujos nomes, acaso por outros motivos que os puramente literários, sobrevivem,
careceu sempre a nossa publicística de qualidades com que se pudesse
legitimamente incorporar na nossa literatura e viver nela por obras sempre
estimáveis. Joaquim Nabuco e Eduardo Prado apenas são publicistas por parte de
sua obra e pela intenção política de quase toda ela.
Mais ainda do que a publicística,
a oratória política não podia existir antes de um regime de livre discussão,
qual o aqui inaugurado com a Independência. Os sucessos que imediatamente a
precederam, bem como os que se lhe seguiram, deram justamente lugar ao
aparecimento de sociedades e clubes patrióticos, juntas de governo e assembleias
políticas por amor dela convocadas, donde resultou essa espécie de eloquência
num país que até então outra não conhecera que a sagrada ou, em importância e
escala muito menor, a acadêmica.
A primeira teria aliás nesta fase
da nossa história um brilho que ainda se não apagou de todo da tradição. Foram
seus mais eminentes cultores e deixaram alguns documentos que até certo ponto
lhes justificam a fama contemporânea, Sousa Caldas, o vigoroso poeta lírico do
qual aliás como pregador apenas resta a memória do apreço em que o tiveram os
seus ouvintes; Fr. Francisco de São Carlos, o secundário poeta da Assunção da Virgem; Fr. Francisco de
Sampaio e o cônego Januário Barbosa, ambos jornalistas e agitadores políticos,
e o último medíocre poeta e estimável literato, e, finalmente, o maior de
todos, Monte Alverne.
Este com São Carlos e Sampaio
formaram um trio de oradores sacros que no seu tempo, em que ainda se apreciava
o gênero, e ir ao sermão era um dos poucos divertimentos da população e dos
raros recreios da gente culta, se disputavam a preferência do público e a
primazia do púlpito. Deu-lhes principalmente relevo à oratória, sobretudo a de Monte
Alverne, que decididamente os sobreleva a todos, o terem-na exercitado no
momento de comoção política e alvoroço patriótico, que lhes atuou na facúndia e
lhes deu ao estro uma emoção nova e renovadora da cansada eloquência sagrada
aqui em antes praticada. Pode dizer-se que neles, que não foram somente
pregadores mas oradores patrióticos e ainda políticos, preludia a oratória
política de 1823.
Francisco de Monte Alverne nasceu
no Rio de Janeiro em 9 de agosto de 1784 e faleceu em Niterói a 2 de janeiro de
1858. A
sua atividade oratória vai de 1819
a 1856, isto é, passa-se na época climatérica que
imediatamente precedeu e seguiu a da Independência e fundação do Império, cujo
extremo propugnador foi. Aparece como uma das vozes do sentimento nacional
nesse momento exuberante de entusiasmo. Segundo as notícias, umas ainda
pessoais, outras tradicionais e algumas escritas que dele temos, e que a sua
obra confirma, foi uma bela figura de frade soberbo, personalíssimo,
ingenuamente desvanecido do seu saber e facúndia. Este manifesto, mas não
antipático, contraste entre a humildade reclamada pelo seu instituto e o seu
orgulho intelectual, e mais as circunstâncias do tempo, lhe fizeram a
fisionomia particular e distinta que tem na nossa vida mental. Professor de
filosofia, mestre sem alguma originalidade, mas eloquente e dominador, teve por
discípulos, dos quais se soube fazer admiradores e devotos, boa porção dos homens
que vieram a intelectualmente florescer nos anos subsequentes e o melhor da
mocidade do tempo. Exerceu grande influência – talvez a primeira de ordem
mental que aponte a nossa história literária – nas jovens gerações que com ele
aprenderam ou o ouviram. Durante todo o período romântico, poetas e prosadores
o celebraram em biografias e notícias, em poemas que lhe dedicam ou lhe
comemoram o engenho. Não é demais dizer que, para as gerações suas
contemporâneas ou imediatamente posteriores ele foi o primeiro dos nossos
heróis intelectuais. Não os enganava a intuição dos românticos. Pelo seu
arrogante pessoalismo, pela sua exuberante individualidade, pela mistura na sua
oratória de emoções patrióticas e religiosas; e pela sua indisciplina, sem
quebra aliás da sua austeridade monástica, espiritual, e mais pelo tom e estilo
pitoresco dos seus sermões, onde sentimos estes vários impulsos, foi Monte
Alverne o verdadeiro precursor do Romantismo aqui.
A primeira eloquência política
brasileira, inaugurada na Assembleia Constituinte de 1823, tem uma dupla
feição. Por mais de um rasgo lembra a oratória da Revolução Francesa, em cuja
história eram lidos os principais de seus membros, e ressuma algo também da
oratória sagrada da nossa língua, que era o modelo mais presente aos
iniciadores dessa eloquência aqui. Alguns deles já o haviam aliás ensaiado nas
juntas e sessões políticas de antes da Independência ou a tinham praticado como
deputados do Brasil nas Cortes de Lisboa, em 1821. Mas os mesmos oradores
portugueses destas seriam bisonhos parlamentares, cuja educação oratória, feita
sob o duplo influxo da eloquência revolucionária francesa e do sermão nacional,
não podia ser aos nossos de grande exemplo.
Como o sermão, o discurso
político, salvo casos sempre raros de peregrinas excelências de fundo e forma,
por sua mesma efemeridade e contingência, como pelo ocasional dos seus motivos
e inspiração, só muito excepcionalmente conserva o interesse da emoção
original. Nem sequer concorria aqui para prolongá-lo além da sua hora, o livro
que os recolhesse. Apenas o Anais das
assembleias onde foram proferidos lhes guardaria o eco, de todo extinto aliás
nesses cartapácios nunca lidos.
Teve a Constituinte alguns
oradores notáveis, dos quais se pode dizer que o eram mais de nascença que de
feitura. O maior deles, ao menos o mais célebre, foi Antônio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva (1775-1845), cuja fama vinha das Cortes portuguesas de
1821, e devia confirmá-la a sua ulterior carreira de orador em assembleias
posteriores à Constituinte.
Nestas, os nomes cuja reputação
excedeu ao seu tempo são os de Rebouças, Maciel Monteiro, Rodrigues dos Santos,
Bernardo de Vasconcelos, Sousa Franco, Alves Branco, Nabuco de Araújo, Rio
Branco, Silveira Martins, talvez o maior de todos nas qualidades propriamente
oratórias, Torres Homem, José de Alencar, José Bonifácio, o Moço, cujos
discursos lidos hoje lhe não abonam a fama contemporânea, Joaquim Nabuco,
Fernandes da Cunha. Destes, bem poucos, fora dos Anais parlamentares, deixaram documento escrito por onde possamos
avaliar-lhes, quanto um orador pode ser julgado pelo discurso não ouvido, o
fundamento da celebridade. Temos, pois, que contentar-nos com a tradição.
Segundo esta, foram estes, com alguns mais, e muito antes bons parlamentares,
bons discutidores, que oradores, os melhores exemplares da nossa oratória
política. Literariamente, salvo as exceções de um Rebouças, um Maciel Monteiro,
um Nabuco pai e filho, um Torres Homem e um José de Alencar, pouco valem.
Raríssimos serão os seus discursos cuja leitura não nos seja agora displicente.
É que sobretudo "oradores de negócios", segundo a expressão francesa,
isto é de questões políticas ou partidárias de ocasião, o interesse das suas
arengas passou com o dos seus motivos, e tanto mais completamente quando por
via de regra eles não lhes souberam dar qualidades de pensamento e de expressão
que as fizessem viver.
A crítica no Brasil nasceu com as
academias literárias do século XVIII. Os seus primeiros ensaios foram os
pareceres ou juízos nelas apresentados sobre os trabalhos sujeitos à sua
apreciação. Continuavam esses pareceres o costume português, também oriundo das
academias, de que as nossas foram um arremedo. Eram por via de regra inchados
de pensamento e de expressão, grávidos de erudição literária contemporânea e,
como estalão de estima, usavam rigorosamente a pauta da retórica clássica
consoante Horácio e Quintiliano, e aferiram das obras conforme elas lhes
pareciam ou não acordes com essas pautas. A inspiração geral desses primeiros
ensaios de crítica, não só aqui mas em Portugal – aos quais cumpre juntar os
juízos dos censores oficiais, que às vezes se desmandavam em críticos, – era de
regra exageradamente benévola, e facilmente escorregava para os mais
desmarcados encômios e excessivos louvores, em linguagem, como era a literária
da época, túrgida e hiperbólica. Dizendo, por exemplo, de um ruim poema feito à
Virgem Maria pelo poeta José Pires de Carvalho e Albuquerque, hoje
absolutamente ilegível, os críticos – chamavam-se então censores – da Academia
dos Renascidos, asseveravam que o livro do seu confrade continha "em si
matérias tão sublimes e cantos tão suaves, que aparece ser todo inspirado do
céu, ainda que organizado na terra, favor na verdade particular de que foi
dotado o autor, não só como devoto, mas como poeta". E não satisfeitos,
acrescentaram: "É tão sublime a musa do nosso acadêmico que a sair do
eminente cume do Parnaso só passaria como passou ao mais elevado ápice do
Olimpo".
Não fora impossível ou sequer
difícil mostrar ainda agora ressaibos deste estilo de crítica em quejandos
documentos das nossas sociedades literárias e nos mesmos críticos de ofício.
Com poucas exceções permaneceu este estilo essencialmente o mesmo até o advento
do modernismo, cujo espírito foi notavelmente crítico, sem que entretanto
lograsse refugá-lo de todo da crítica indígena. Não raro aquele tom empolado da
velha crítica portuguesa para aqui transplantada foi apenas substituído por mal
assimiladas novidades pseudofilosóficas por pseudocientíficas expressas em nova
forma de gongorismo, que, como o outro, nos vinha também de Portugal.
A crítica como um ramo
independente da literatura, o estudo das obras com um critério mais largo que
as regras da retórica clássica, e já acompanhado de indagações psicológicas e
referências mesológicas, históricas e outras, buscando compreender-lhes e
explicar-lhes a formação e a essência, essa crítica derivada aliás
imediatamente daquela, pelo que lhe conservou alguma das feições mais
antipáticas, nasceu com o Romantismo. Precedeu-o mesmo, nos estudos biográficos
e literários do Patriota, de Araújo
Guimarães, do Parnaso Brasileiro, de
Cunha Barbosa, de Niterói, de
Gonçalves de Magalhães e Porto Alegre. Era, porém, sobretudo louvaminheira e
derramada em impertinentes considerações gerais, e acreditava ingenuamente que
preconizar a produção literária nacional era o mesmo que valorizá-la e que o
louvor, ainda indiscreto, seria estímulo bastante ao fomento das nossas letras.
Esse estímulo imprudente achou-o que fartasse o Romantismo na crítica, que com
ele surgiu em jornais e revistas como a citada Niterói, a Minerva
Brasiliense, a Guanabara, a Revista do Instituto e mais tarde a Revista Popular e outras publicações
semelhantes. E não se pode dizer que esta crítica ainda nimiamente
encomiástica, e que convencidamente atestava de primas obras cuja leitura nos é
hoje insuportável, não tenha, em suma, tido uma ação benéfica. À falta de outro
qualquer prêmio do seu esforço, encontravam nela os autores "o favor com
que mais se acende o engenho." Apenas a maioria delas não teria o que
acender.
Iludindo-os sobre o seu próprio
merecimento, essa crítica não só os desvairava, mas desservia os que acaso
tinham e cujos defeitos ela se abstinha, por mal entendida caridade, de
apontar, faltando assim à sua tarefa de educar o público, que mui confiadamente
a seguia. Com essa crítica que se traduzia em louvores indiscretos acompanhados
de divagações a mais das vezes ociosas e até impertinentes, crítica ainda em
suma retórica, surgiu pela mesma época a crítica erudita e mais a história
literária, seu natural suporte. Desprezadas, como é de razão, umas primeiras
malogradas tentativas de Cunha Barbosa, Magalhães, Ferreira da Silva, o criador
dessa espécie de crítica aqui, e simultaneamente da história da nossa
literatura, foi Varnhagen. É ele, com efeito, o primeiro que pesquisa e
assenta, com dados seguros, fatos e datas literárias, e os correlaciona com a
nossa evolução política, o primeiro que estuda diretamente os autores, descobre
alguns apenas vagamente conhecidos, publica-lhes ou revela-lhes as obras,
identifica-os ou comprova-lhes a existência e atividade. Foi com efeito o
primeiro que investigou com capacidade de erudito e um critério que é
essencialmente o mesmo da nossa posterior história literária, as nossas origens
literárias, e fez das nossas letras a exposição mais cabal e exata que até
então se fez. Foi igualmente o primeiro que as viu no seu conjunto e não só na
sua poesia, como mais ou menos o fizeram os seus predecessores, e, embora de relance,
ocupou-se de todos os autores nacionais que pode conhecer, e ainda de
portugueses abrasileirados pela sua estadia no Brasil e preocupações
brasileiras, fossem poetas ou historiadores, moralistas, viajantes, cronistas,
economistas, etc. Alguns descobriu e desencavou e divulgou de escusos
repertórios portugueses, corrigindo datas, aventando informações ignoradas,
emendando outras, publicando antologias e edições críticas dos nossos poetas e
de escritores de coisas brasileiras. Este trabalho, grandíssimo e
importantíssimo para o tempo, fê-lo ele na edição dos Épicos Brasileiros (1845), no Florilégio
da poesia brasileira (1850) e na História
geral do Brasil (1854-57), em memórias, monografias e artigos da Revista do Instituto e outras
publicações. No Florilégio assentou,
em bases que não foram ainda sensivelmente modificadas, a história da nossa
literatura. Nas 54 páginas do "Ensaio histórico sobre as letras no
Brasil", que vem como introdução desse precioso livrinho, acham-se pelo
menos indicados o critério etnológico como elemento das investigações da nossa
literatura e da sua mesma inspiração, o elemento indígena americano como
concorrente nela, as origens imediatas ou o primeiro impulso da poesia e do
teatro no Brasil, a necessidade de serem os nossos poetas sobretudo americanos,
o interesse da poesia popular, a correlação dos fenômenos mentais com os
sucessos históricos e outros que muito posteriormente seriam trazidos à luz
como novidade da última hora.
Neste gosto e trabalho de
investigação da história da nossa literatura o seguiu, com menor cabedal de
conhecimentos e menor capacidade, mas com igual boa vontade e não sem sucesso,
Norberto Silva. Devemos-lhe principalmente um mais exato conhecimento dos
poetas mineiros, vários estudos biográficos literários e alguns ensaios de uma
história da nossa literatura, que não chegou a escrever. Também Porto Alegre
fez crítica literária e foi aqui o criador da crítica artística. Como tal
devem-se-lhe os primeiros estudos sobre a nossa pintura e arquitetura e da iconografia
e música brasileira, publicados no Ostensor,
na revista Guanabara, no Íris, na Revista Brasileira e na Revista
do Instituto, entre 1845 e 1856. O entusiasmo patriótico dos da sua geração
levou-o à invenção indiscreta de uma "escola fluminense de pintura".
Outros românticos da primeira hora, Magalhães, Macedo, Ferreira da Silva,
Gonçalves Dias, fizeram igualmente crítica literária. Pelo tempo adiante, com
certa assiduidade e algum mérito, Paula Menezes, Dutra e Melo, Paranhos
Schutel, Jaci Monteiro; e alguns estrangeiros que aqui colaboraram com os
nossos na constituição da nossa literatura nacional, tais os franceses Burgain
e Adet, o espanhol Pascoal, o chileno Santiago Nunes Ribeiro, os portugueses
Zaluar e Montoro distinguiram-se como críticos. Essa crítica, porém, foi sempre
feita dispersamente em jornais e revistas, e nunca se sistematizou. Raro era
outra coisa que um artigo de ocasião a favor de um livro ou autor. Toda ela
tendia à exaltação frequentemente inconsiderada da mente nacional e dos seus
produtos. É patriótica como a literatura que lhe servia de assunto. Mais tarde
e serodiamente, o mau exemplo das brigas literárias da "guerra dos
poetas" e das arcádias portuguesas produziu aqui os seus efeitos na
acrimônia, na diatribe, nos doestos e até na arrogância doutrinária, que muitas
vezes substituíram a longanimidade e complacência da nossa primitiva crítica.
Na segunda geração romântica,
Álvares de Azevedo escreveu alguns ensaios de crítica, que por lampejos de
talento, novidade de ideias gerais e qualidades da expressão literária
sobrelevam o que aqui se fazia no gênero, e mostravam ainda uma vez a
compassibilidade da crítica e da criação estética. Junqueira Freire, outro
poeta dessa geração, também se ensaiou na crítica, com menos romantismo e acaso
mais agudeza que Álvares de Azevedo, mas também mais de passagem ainda que
este. Fizeram-na igualmente em jornais, outros poetas e prosadores desta fase,
nomeadamente Bernardo Guimarães e José de Alencar, que reuniu em livro a sua
crítica da Confederação dos Tamoios,
de Magalhães (1856).
Feita assim dispersamente, ao
acaso dos ensejos, sem sequência nem sistema, como uma manifestação pessoal de
impressões recebidas dos livros lidos, mas talvez por amor dos autores que da
literatura, como um estímulo ou um reclamo, e também às vezes, mas raras, como
um anátema, não chegou essa crítica a ser um gênero literário separadamente
cultivado. E os seus produtos havemos de ir buscá-los em jornais e revistas,
prefácios de livros ou reproduzidos e citados em páginas posteriores. Quem mais
sistematicamente a fez depois das duas primeiras gerações românticas, pelo
menos como professor oficial de literatura, foi o cônego Fernandes Pinheiro,
que deixou dois livros consideráveis de matéria cujo docente era no Colégio de
Pedro II, Curso elementar de literatura
nacional (1862) e Resumo da história
literária (1873). De fundo próprio, quer de erudição, quer de pensamento,
pouco havia do autor destes livros, onde se continuavam extemporaneamente
sistemas críticos já ao tempo obsoletos. Demais, apesar do título, o seu Curso era sobretudo de literatura
portuguesa, para o qual o autor achava o trabalho já feito. A brasileira,
mormente no seu mais importante período, o nacional, apenas ocupava algumas
páginas. Com melhor sentimento literário, com mais fina percepção estética, e
sobretudo com muito melhor estilo, mas apenas acidental e esporadicamente,
também fez crítica Machado de Assis.
Ao tempo em que o cônego Pinheiro
professava aqui as lições, que depois tirou em livro, um outro professor de
literatura no Maranhão, Sotero dos Reis, fazia o Curso de literatura brasileira e portuguesa, publicado depois em
quatro tomos, de 1866 a
1868. Com o seu desenvolvimento e proporções, é não só a primeira obra de
estudo histórico literário e crítico da nossa literatura, mas ainda da
portuguesa, e era na nossa língua uma novidade. Transplantava Sotero dos Reis
para ela, como ainda no seu tempo foi notado, a renovação da crítica operada em
França por Villemain. Abalizado conhecedor por um comércio mais direto do que o
tinha o cônego Pinheiro das letras portuguesas e do seu desenvolvimento aqui,
fez delas mais cabal exposição que se podia então querer. O processo histórico,
que era o daquele seu principal modelo, levou-o ao estudo, acaso por demais
particularizado, da literatura portuguesa, de suas origens até ao fim do século
XVIII. No estudo da literatura brasileira, que ocupa parte menor do seu Curso, Sotero dos Reis não lhe remontou
às origens nem lhe acompanhou a evolução. Expô-la por alguns dos seus tipos
mais preeminentes – como o fazia Taine com a literatura inglesa – começando em Santa Rita Durão
e vindo até Gonçalves Dias. Nunca, porém, se fizera estudo tão completo e com
tão boa arte de composição literária, e em suma tão bem feito como no livro de
Sotero dos Reis.
Menos ainda do que qualquer dos
gêneros literários aqui versados, não se constituiu a crítica em aplicação
particular da atividade literária. E como não tivesse outra doutrina que o
gosto pessoal dos que eventualmente a faziam, fosse pura externação de
impressões individuais, mais no intuito de louvor ou censura, que no de exame e
explicação da obra, afetasse um tom retórico e ordinariamente se excedesse em
divagações escusadas de trivialidades literárias ou em banalidades conceituosas,
essa crítica, afora o que é propriamente história literária feita por um
Varnhagen, um Norberto, um Sotero e ainda um Fernandes Pinheiro, apenas deixou
de si um outro documento estimável. Nada obstante foi útil e, ainda com as suas
falhas e defeitos, serviu ao desenvolvimento das nossas letras.
O movimento que tenho chamado de
modernismo e cujo mais evidente sinal foi, como o europeu de que se originou, o
espírito crítico, deu aqui à crítica outra direção e outros critérios.
A revolta da escola coimbrã, em
Portugal, contra o que um dos seus chefes chamou as "teocracias
literárias" do velho Reino, o resto de pseudoclássicos, de anacrônicos
árcades ou de serôdios românticos que, com Antônio de Castilho à testa,
entorpeciam a evolução literária portuguesa, não só ecoou aqui, mas influiu,
acaso mais poderosamente que o coevo pensamento europeu, no motim que aqui
também se levantou contra os nossos escritores consagrados. A este alvoroço
brasileiro faltou, porém, a coesão que teve o português, e ficou longe da
importância daquele. A sua inspiração ou antes os seus inspiradores
estrangeiros foram diversos: Sainte-Beuve, Taine, Scherer, Renan, Spencer e até
Comte, não obstante a sua aversão sistemática à crítica, e também os muito
proclamados mas de fato pouco sabidos críticos alemães de nomes estranhos aos
nossos ouvidos. Se a reação pela cultura germânica em Portugal, atuadora da
nossa, fez ali uma dúzia de germanistas capazes, aqui não conseguiu formar
sequer a metade, o que prova a inconsciência do arremedo e a inconsistência do
movimento e concomitantemente a nossa madraçaria nacional. Salvo Tobias
Barreto, que foi o mais distinto prócer do movimento e cuja cultura germânica
parece ter sido cabal, os nossos outros germanistas seus discípulos ou seguidores
a fizeram superficialmente e através do francês.
Como quer que seja, operou-se um
salutar movimento de reação e houve manifesto alargamento do nosso espírito
literário e do nosso espírito em geral. Começou-se a compreender que a crítica
tinha um papel distinto e uma função necessária na literatura e a abandonar os
seus processos puramente retóricos por outros em que entravam novos elementos
de consideração na apreciação das obras literárias, a história, a psicologia, a
etnografia, a sociologia, a política, enfim quanto atuava os escritores e os
podia explicar e às suas obras. Em 1873, em um artigo em que é lícito enxergar
o influxo das ideias que iam dar nova direção ao nosso pensamento literário e à
crítica, Machado de Assis, verificando a carência aqui da crítica como ofício
literário, lastimava-lhe a falta e reclamava-a como uma necessidade da nossa
literatura. De 1875 em diante entram a aparecer livros propriamente de crítica,
os Ensaios e estudos de filosofia e
crítica, desse ano, e os Estudos alemães,
de 1883, de Tobias Barreto, a Crítica e
literatura, do malogrado escritor do grupo literário formado no Ceará por
esse tempo, Raimundo Antônio da Rocha Lima (1878). Outro escritor desse grupo,
Araripe Júnior (Tristão de Alencar – 27 de julho de 1848 – 29 de outubro de
1911, Fortaleza, Ceará), conquanto se houvesse ensaiado, aliás sem nenhum
sucesso, na ficção, foi principalmente um crítico, já em jornais e revistas da
sua terra natal, de Pernambuco e do Rio, já em livros, José de Alencar (1882), Gregório
de Matos, Movimento literário e outros. Seguindo muito de perto as
doutrinas críticas de Taine, esforçou-se por praticá-las e divulgá-las aqui,
temperando-as entretanto com a sua fantasia, incongruente com o espírito
geométrico do seu apregoado mestre, e fazendo da complacência imoderado uso.
Entre os nossos livros de crítica desse momento, destacam-se pelo seu volume e
importância os Estudos sobre a literatura
brasileira; O lirismo brasileiro
(1877), do escritor maranhense domiciliado em Portugal, Sr. José Antônio de
Freitas discípulo muito fiel do Sr. T. Braga; o Camões e os Lusíadas (1872), de Joaquim Nabuco, mais explanação
entusiástica, feita aliás com talento, que apreciação crítica; os Estudos críticos, por Sílvio Dinarte (Escragnolle
Taunay, 1881-1883, 3 vols.). Mas o primeiro dos escritores brasileiros que, de
parte um breve e malogrado excurso pela poesia, fez obra copiosa de crítica
geral e particular, é o Sr. Sílvio Romero, simultaneamente discípulo, por
Tobias Barreto, dos alemães e, muito mais diretamente, dos franceses por Taine
e Scherer, pelo que é da literatura propriamente dita, e de Spencer, Haeckel,
Noiré e Iehring, pelo que é filosofia e pensamento geral.
É singular que o maior e mais
universal dos críticos franceses do século passado, o que mais influência
exerceu no seu tempo, mesmo fora da França, Sainte-Beuve, tenha muito pouco
influído, ao menos de modo direto e claro, na constituição definitiva da nossa
crítica, como atividade literária distinta. Só talvez em Machado de Assis se lobriga
algo do seu exemplo.
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