Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Sob o aspecto literário, tão
mesquinha e despicienda como a poesia foi a prosa da fase que precedeu
imediatamente o Romantismo. Nenhuma grande ou sequer notável obra literária
produziu. Foi, porém, como a poesia, fértil em escrevedores de assunto que só
remota e subsidiariamente poderão dizer com a literatura: economia política e
social, direito público e administrativo, questões políticas, comércio e finanças.
A história, que também fizeram, a trataram em mofino estilo, e mesquinhamente,
à moda de anais e crônicas. O número relativamente grande dos que destes
assuntos e de outros congêneres escreveram e a cópia dos escritos publicados
neste período, são um documento precioso da nossa vida intelectual e da nossa
cultura nessa época. Se os poetas, com raras exceções, ficaram alheios às
circunstâncias precursoras da independência, os prosadores, ao contrário,
mostram-se influenciados e interessados pelo que aqui se passava, e, de boa
vontade e ânimo puro, lhe trouxeram ao seu concurso. Toda a sua obra, mal
construída sob o aspecto literário, com pouco ou sem algum mérito de fundo ou
forma que a fizesse sobreviver ao seu tempo, ou que lhe desse nele qualquer
proeminência literária, obra de publicistas e de jornalistas de ocasião,
apontando a fins imediatamente práticos, serviu ou procurou servir à
constituição de nossa nação, a qual já tinha como certa e definitiva. Não se
pode todavia incorporar ao nosso patrimônio propriamente literário.
Uma das manifestações espirituais
mais interessantes do sentimento público brasileiro no momento que precedeu a
independência é o aparecimento, em 1813, no Rio de Janeiro, do Patriota, jornal literário, político,
mercantil, etc. Fundou-o e dirigiu, e publicou-o na Impressão Régia, criada em
1808 pelo príncipe regente, Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, polígrafo
baiano, formado em Portugal, matemático, engenheiro, economista, poeta e
jornalista, homem, como tantos outros naquele fecundo período da nossa formação
nacional, cheio de boa vontade. Como com muita razão reparava outro publicista
nacional, Hipólito José da Costa Pereira, o famoso redator do célebre Correio Brasiliense, de Londres, que à
só publicação de um jornal com o nome de Patriota
era um sinal dos tempos. "Há dez anos, escrevia ele no seu Correio, em 1813, estando a Corte em
Lisboa, que ninguém se atreveria a dar a um jornal o nome de Patriota, e a Henríada, de Voltaire, estava no número dos livros que se não
podiam ler sem correr o risco de passar por ateu, pelo menos por jacobino. E
temos agora em tão curto espaço já se assenta que o povo do Brasil pode ler a Henríada, de Voltaire, e pode ter um
jornal com o título de Patriota,
termo que estava proscrito como um dos que tinham o cunho revolucionário".
Nos dois anos completos que durou, foi o Patriota
um centro de convergência do trabalho mental brasileiro, particularmente
aplicado ao estudo das coisas do país, e nele colaboraram, com alguns dos
poetas citados, Pedra Branca, Silva Alvarenga, José Bonifácio e todos os homens
doutos do tempo que deixaram qualquer sinal de si nas nossas letras, marquês de
Maricá, Camilo Martins Lage, Pedro Francisco Xavier de Brito, Silvestre
Pinheiro Ferreira, José Saturnino da Costa Pereira, etc. O Brasil e tudo quanto
lhe interessava o conhecimento e o progresso eram os seus assuntos prediletos.
José de Sousa de Azevedo Pizarro
e Araújo (1753-1830), José da Silva Lisboa (visconde de Cairu) (1756-1835),
Baltazar da Silva Lisboa (1761-1840), Luís Gonçalves dos Santos (1764-1844),
Mariano José Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) (1773-1848), José Feliciano
Fernandes Pinheiro (visconde de São Leopoldo) (1774-1847), além de somenos
nomes com que facilmente se alongaria esta lista, formam como prosistas o exato
pendant dos poetas nomeados seus
contemporâneos. Tem, porém, sobre estes a superioridade de uma obra que ao
tempo foi mais útil e serviu melhor à causa da nação e particularmente da sua
cultura. A de alguns deles tem ainda o mérito de haverem iniciado qualquer coisa
na cultura ou nas letras brasileiras: assim a de Cairu estreia aqui os estudos
econômicos e de direito público e mercantil, a de Maricá a literatura
moralista. É o que lhes dá direito ao menos à menção dos seus nomes na história
da nossa literatura. Com exceção de um ou outro, não são propriamente
escritores com ideias e dons de expressão literária, ou que representem o
espírito ou o sentimento do seu povo, nem as suas obras têm qualidades que nos
permitam lê-las sem fastio e displicência e pelas quais se incorporassem no
patrimônio das nossas boas letras. São, porém, expoentes ingênuos e expositores
sinceros da cultura da sua época no Brasil, seus promotores e fautores aqui.
Tais são principalmente o visconde de Cairu, o marquês de Maricá, o visconde de
São Leopoldo e o mesmo Aires de Casal, se não fora português.
José da Silva Lisboa, a quem seus
grandes méritos literários e relevantes serviços públicos mereceram o título de
visconde de Cairu, pelo qual é mais conhecido, é certamente pela extensão e
solidez dos seus conhecimentos, e fecundidade do seu labor, a figura mais
proeminente das nossas letras, tomada a expressão no seu sentido mais lato da
fase que vamos historiando. Nasceu na Bahia em 1756, completou os estudos secundários
e fez superiores em Portugal, onde lecionou grego e hebraico no Colégio das
Artes, de Coimbra, e após uma longa e bem preenchida existência no Brasil como
professor, publicista, funcionário público, magistrado e parlamentar, faleceu
no Rio de Janeiro em 1836. O seu mérito é muito maior como jurista, economista,
comercialista e publicista ou sabedor e escritor de questões públicas,
políticas e administrativas, do que como literato, se bem tenha sido o visconde
de Cairu um dos brasileiros de mais vasta literatura. Contemporâneo de Adam
Smith, o criador da economia política, parece foi o nosso patrício o primeiro
que nas línguas neolatinas escreveu dessa nova ciência, divulgando desde 1798
as ideias do pensador inglês. As três principais obras de Silva Lisboa sobre a
matéria são Princípios de direito mercantil (1798-1803), Princípios de economia política (1804) e Estudos de bem comum (1819-1820). Conta-se que Monte Alverne, mais
que seu adversário teórico, seu inimigo pessoal e inimigo rancoroso como saía ser,
entrando na sua aula de filosofia do seminário de São José no dia da morte de
Cairu, com um gesto desabrido, com que acaso escondia o sentimento, declarara
"que não dava aula porque morrera um grande homem, apesar de que a sua
cabeça não passava de uma gaveta de sapateiro". Também a antipatia, em que
pese a Carlyle, aguça a inteligência e facilita a compreensão. A frase
atribuída ao soberbo frade traduz na sua vulgaridade uma impressão exata da
copiosa, desigual e disforme obra do douto e laboriosíssimo escritor que foi
Cairu. Consta-lhe a produção impressa ou manuscrita de setenta e sete números
de obras maiores ou menores de direito, economia política ou social, história,
questões do dia e públicas, didascálica, jornalismo, polêmica, pedagogia, moral.
Como composição, fatura, estilo, esta produção é irregular, desigual e ainda
extravagante e disparatada, revendo à pressa e até à precipitação do trabalho,
a excitação ou a paixão do momento, o produto de ocasião. A literatura dela só
podia aproveitar pequeníssima parte, a História
dos principais sucessos políticos do Brasil por exemplo, a Vida de Wellington e pouco mais. Esta
mesma, porém, carece de predicados literários que a recomendem à nossa estima.
Em todos os gêneros produtos das circunstâncias, as obras de Cairu não
sobrevivem às que as produziram.
Mariano José Pereira da Fonseca,
quase somente conhecido pelo seu título de marquês de Maricá, vinha do tempo
dos últimos vice-reis do Brasil, um dos quais o Conde de Resende, sob a
inculpação de inconfidente, o teve preso por mais de dois anos. No vice-reinado
de Luís de Vasconcelos fundaram alguns homens de estudo e letras do Rio de
Janeiro, o doutor Manoel Inácio da Silva Alvarenga, mestre régio de retórica e
conhecido poeta da plêiade mineira, João Marques Pinto, mestre régio de grego,
o médico Jacinto José da Silva, o nosso Mariano José Pereira da Fonseca e
outros letrados, uma sociedade literária. As reuniões periódicas destes homens
de letras, em tempos em que ainda estava fresca a lembrança da chamada
Conjuração Mineira, cujos sócios eram em maioria também homens de letras, foram
havidas por suspeitas, dissolvida a sociedade e presos e processados os seus
membros.
Mariano da Fonseca nasceu no Rio
de Janeiro em 1773, e na mesma cidade faleceu em 1848. Formou-se em matemática
e filosofia em Coimbra, o que correspondia à profissão de engenheiro. Como
aconteceu geralmente a todos os brasileiros de instrução e mérito da época da
Independência, teve importante situação política e social no primeiro reinado,
distinções honoríficas e altos cargos, senador, conselheiro de Estado. Aos
quarenta ou quarenta e um anos começou a publicar no Patriota, de Araújo Guimarães, as suas Máximas, pensamentos e reflexões, sob o pseudônimo de Um brasileiro. Porventura para lhes dar
o peso da autoridade de maior experiência, mais tarde, em nova edição que delas
fez, declarou havê-las escrito dos sessenta aos setenta e três. Norberto lhe
reparou no equívoco e o corrigiu com razão. De 1837 a 1841 publicou, já sob
o título de marquês de Maricá, as suas Máximas,
pensamentos e reflexões em três partes respectivamente, distribuindo-as
gratuitamente. Como ele tenha depois facultado a todos a reimpressão das suas
obras, devemos crer que esta rara generosidade obedecia a um pensamento de interesse
pela doutrinação moral dos seus patrícios. O marquês de Maricá, como La Rochefoucauld , com
quem mui indevidamente o comparou uma crítica mais patriótica que esclarecida,
não escreveu em sua vida senão máximas. Ele próprio as computou, na última coleção
que delas imprimiu, em 1845. É, pois, segundo a qualificação moderníssima e
depois do autor do Compêndio do peregrino
da América e de Matias Aires, o primeiro moralista da nossa literatura. Não
tinha, porém, uma filosofia sua ou sequer alheia afeiçoada pela sua própria
experiência e meditação. Repete os lugares comuns da ética contemporânea,
mistura de cristianismo sentimental e de liberalismo político. A sua
psicologia, escolástica e vulgar, jamais vai ao fundo das coisas, nem descobre
na alma humana novidades ou aspectos recônditos ou inéditos. À sua observação
falta finura e penetração, ou originalidade. Faz parte da vulgar sabedoria
comum e ele não a soube relevar pelos dons singulares de expressão que o gênero
requer, e que são porventura o principal mérito dos seus grandes modelos
franceses. Máximas e pensamentos,
valem talvez principalmente pela forma que revestem. São o imprevisto, o
ressalto, junto à concisão e à justeza desta que os valoriza. O escolho do
gênero é a banalidade, clara ou mascarada com o paradoxo ou a singularidade.
Neste escolho bateu frequentemente o marquês de Maricá. Nem por isso perdem as
suas Máximas a importância que lhe
assinalei de primeiro exemplar do moralismo leigo e literário em a nossa
literatura. E para o comum dos leitores que dispensam no assunto refinamentos,
sutilezas de ideias e expressão, podem ser leitura agradável e proveitosa,
porque o essencial é são e a forma escorreita, sem rebusca indiscreta de
purismo e já do nosso tempo e gosto.
José Feliciano Fernandes
Pinheiro, visconde de São Leopoldo, nascido em Santos (São Paulo) em 1774 e
falecido em Porto Alegre
(Rio Grande do Sul) em 1847, foi sujeito considerável pela sua ilustração e
alta situação social e política no reinado do primeiro imperador. Formado em
direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal fez os seus primeiros
trabalhos literários, traduções e compilações de assuntos de imediata utilidade
prática, ali publicados de 1799
a 1801. No Brasil, após haver exercido diversas
comissões de serviço público, foi eleito em 1821, deputado às Cortes da nação
portuguesa quando da reforma governamental por que esta passou, e como tal
tornou a Portugal. Espírito conservador e moderado, foi dos poucos deputados
brasileiros que juraram a constituição por elas feita. De volta ao Brasil em
seguida à declaração da Independência, foi aqui deputado geral, presidente de
província, ministro do Império, senador e ocasionalmente encarregado de uma
missão de caráter diplomático. Por estes serviços teve o título de visconde de São
Leopoldo, nome por que ficou quase exclusivamente conhecido. Além de memórias
biográficas de compatriotas ilustres ou sobre limites do Brasil e ainda
monografias interessantes para a nossa história literária, escreveu uma obra
notável para o tempo e ainda hoje estimável, Anais da Capitania de S. Pedro. Como livro, quero dizer, sob o puro
aspecto bibliográfico, o mais bem feito dessa época, o mais perfeito de
composição e estrutura. Não obstante algumas incorreções de linguagem,
galicismos e alguns mais graves defeitos de estilo, a sua redação revê o homem
educado em Portugal e a leitura dos portugueses. A língua é geralmente melhor
do que aqui comumente escrita. Como historiador distingue-se já o visconde de São
Leopoldo por bom critério histórico, aptidões críticas, capacidade de apurar os
sucessos nos documentos autênticos de preferência originais ou inéditos,
informação segura das fontes ou informes impressos do assunto ou a ele
aproveitáveis, arte de dispor e referir os fatos e, notavelmente, menos
prolixidade como era, e continuou a ser, de costume. As suas Memórias, publicadas postumamente na Revista do Instituto Histórico (tomos
37-38), conquanto lhes falte o interesse das revelações inéditas e mesmo das
indiscrições, que principalmente dão relevo e pico a este gênero de literatura,
sem que lho levante também um estilo mais literário, são todavia, até pela
raridade delas nas nossas letras, estimáveis.
Todos os mais autores de prosa
desta mesma fase ainda menos consideráveis são. Nenhum é um escritor que se
faça todavia ler com aprazimento.
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