3/28/2018

Literatura Brasileira: Os prosadores (Ensaio), de José Veríssimo


Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Sob o aspecto literário, tão mesquinha e despicienda como a poesia foi a prosa da fase que precedeu imediatamente o Romantismo. Nenhuma grande ou sequer notável obra literária produziu. Foi, porém, como a poesia, fértil em escrevedores de assunto que só remota e subsidiariamente poderão dizer com a literatura: economia política e social, direito público e administrativo, questões políticas, comércio e finanças. A história, que também fizeram, a trataram em mofino estilo, e mesquinhamente, à moda de anais e crônicas. O número relativamente grande dos que destes assuntos e de outros congêneres escreveram e a cópia dos escritos publicados neste período, são um documento precioso da nossa vida intelectual e da nossa cultura nessa época. Se os poetas, com raras exceções, ficaram alheios às circunstâncias precursoras da independência, os prosadores, ao contrário, mostram-se influenciados e interessados pelo que aqui se passava, e, de boa vontade e ânimo puro, lhe trouxeram ao seu concurso. Toda a sua obra, mal construída sob o aspecto literário, com pouco ou sem algum mérito de fundo ou forma que a fizesse sobreviver ao seu tempo, ou que lhe desse nele qualquer proeminência literária, obra de publicistas e de jornalistas de ocasião, apontando a fins imediatamente práticos, serviu ou procurou servir à constituição de nossa nação, a qual já tinha como certa e definitiva. Não se pode todavia incorporar ao nosso patrimônio propriamente literário.
Uma das manifestações espirituais mais interessantes do sentimento público brasileiro no momento que precedeu a independência é o aparecimento, em 1813, no Rio de Janeiro, do Patriota, jornal literário, político, mercantil, etc. Fundou-o e dirigiu, e publicou-o na Impressão Régia, criada em 1808 pelo príncipe regente, Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, polígrafo baiano, formado em Portugal, matemático, engenheiro, economista, poeta e jornalista, homem, como tantos outros naquele fecundo período da nossa formação nacional, cheio de boa vontade. Como com muita razão reparava outro publicista nacional, Hipólito José da Costa Pereira, o famoso redator do célebre Correio Brasiliense, de Londres, que à só publicação de um jornal com o nome de Patriota era um sinal dos tempos. "Há dez anos, escrevia ele no seu Correio, em 1813, estando a Corte em Lisboa, que ninguém se atreveria a dar a um jornal o nome de Patriota, e a Henríada, de Voltaire, estava no número dos livros que se não podiam ler sem correr o risco de passar por ateu, pelo menos por jacobino. E temos agora em tão curto espaço já se assenta que o povo do Brasil pode ler a Henríada, de Voltaire, e pode ter um jornal com o título de Patriota, termo que estava proscrito como um dos que tinham o cunho revolucionário". Nos dois anos completos que durou, foi o Patriota um centro de convergência do trabalho mental brasileiro, particularmente aplicado ao estudo das coisas do país, e nele colaboraram, com alguns dos poetas citados, Pedra Branca, Silva Alvarenga, José Bonifácio e todos os homens doutos do tempo que deixaram qualquer sinal de si nas nossas letras, marquês de Maricá, Camilo Martins Lage, Pedro Francisco Xavier de Brito, Silvestre Pinheiro Ferreira, José Saturnino da Costa Pereira, etc. O Brasil e tudo quanto lhe interessava o conhecimento e o progresso eram os seus assuntos prediletos.
José de Sousa de Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830), José da Silva Lisboa (visconde de Cairu) (1756-1835), Baltazar da Silva Lisboa (1761-1840), Luís Gonçalves dos Santos (1764-1844), Mariano José Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) (1773-1848), José Feliciano Fernandes Pinheiro (visconde de São Leopoldo) (1774-1847), além de somenos nomes com que facilmente se alongaria esta lista, formam como prosistas o exato pendant dos poetas nomeados seus contemporâneos. Tem, porém, sobre estes a superioridade de uma obra que ao tempo foi mais útil e serviu melhor à causa da nação e particularmente da sua cultura. A de alguns deles tem ainda o mérito de haverem iniciado qualquer coisa na cultura ou nas letras brasileiras: assim a de Cairu estreia aqui os estudos econômicos e de direito público e mercantil, a de Maricá a literatura moralista. É o que lhes dá direito ao menos à menção dos seus nomes na história da nossa literatura. Com exceção de um ou outro, não são propriamente escritores com ideias e dons de expressão literária, ou que representem o espírito ou o sentimento do seu povo, nem as suas obras têm qualidades que nos permitam lê-las sem fastio e displicência e pelas quais se incorporassem no patrimônio das nossas boas letras. São, porém, expoentes ingênuos e expositores sinceros da cultura da sua época no Brasil, seus promotores e fautores aqui. Tais são principalmente o visconde de Cairu, o marquês de Maricá, o visconde de São Leopoldo e o mesmo Aires de Casal, se não fora português.
José da Silva Lisboa, a quem seus grandes méritos literários e relevantes serviços públicos mereceram o título de visconde de Cairu, pelo qual é mais conhecido, é certamente pela extensão e solidez dos seus conhecimentos, e fecundidade do seu labor, a figura mais proeminente das nossas letras, tomada a expressão no seu sentido mais lato da fase que vamos historiando. Nasceu na Bahia em 1756, completou os estudos secundários e fez superiores em Portugal, onde lecionou grego e hebraico no Colégio das Artes, de Coimbra, e após uma longa e bem preenchida existência no Brasil como professor, publicista, funcionário público, magistrado e parlamentar, faleceu no Rio de Janeiro em 1836. O seu mérito é muito maior como jurista, economista, comercialista e publicista ou sabedor e escritor de questões públicas, políticas e administrativas, do que como literato, se bem tenha sido o visconde de Cairu um dos brasileiros de mais vasta literatura. Contemporâneo de Adam Smith, o criador da economia política, parece foi o nosso patrício o primeiro que nas línguas neolatinas escreveu dessa nova ciência, divulgando desde 1798 as ideias do pensador inglês. As três principais obras de Silva Lisboa sobre a matéria são Princípios de direito mercantil (1798-1803), Princípios de economia política (1804) e Estudos de bem comum (1819-1820). Conta-se que Monte Alverne, mais que seu adversário teórico, seu inimigo pessoal e inimigo rancoroso como saía ser, entrando na sua aula de filosofia do seminário de São José no dia da morte de Cairu, com um gesto desabrido, com que acaso escondia o sentimento, declarara "que não dava aula porque morrera um grande homem, apesar de que a sua cabeça não passava de uma gaveta de sapateiro". Também a antipatia, em que pese a Carlyle, aguça a inteligência e facilita a compreensão. A frase atribuída ao soberbo frade traduz na sua vulgaridade uma impressão exata da copiosa, desigual e disforme obra do douto e laboriosíssimo escritor que foi Cairu. Consta-lhe a produção impressa ou manuscrita de setenta e sete números de obras maiores ou menores de direito, economia política ou social, história, questões do dia e públicas, didascálica, jornalismo, polêmica, pedagogia, moral. Como composição, fatura, estilo, esta produção é irregular, desigual e ainda extravagante e disparatada, revendo à pressa e até à precipitação do trabalho, a excitação ou a paixão do momento, o produto de ocasião. A literatura dela só podia aproveitar pequeníssima parte, a História dos principais sucessos políticos do Brasil por exemplo, a Vida de Wellington e pouco mais. Esta mesma, porém, carece de predicados literários que a recomendem à nossa estima. Em todos os gêneros produtos das circunstâncias, as obras de Cairu não sobrevivem às que as produziram.
Mariano José Pereira da Fonseca, quase somente conhecido pelo seu título de marquês de Maricá, vinha do tempo dos últimos vice-reis do Brasil, um dos quais o Conde de Resende, sob a inculpação de inconfidente, o teve preso por mais de dois anos. No vice-reinado de Luís de Vasconcelos fundaram alguns homens de estudo e letras do Rio de Janeiro, o doutor Manoel Inácio da Silva Alvarenga, mestre régio de retórica e conhecido poeta da plêiade mineira, João Marques Pinto, mestre régio de grego, o médico Jacinto José da Silva, o nosso Mariano José Pereira da Fonseca e outros letrados, uma sociedade literária. As reuniões periódicas destes homens de letras, em tempos em que ainda estava fresca a lembrança da chamada Conjuração Mineira, cujos sócios eram em maioria também homens de letras, foram havidas por suspeitas, dissolvida a sociedade e presos e processados os seus membros.
Mariano da Fonseca nasceu no Rio de Janeiro em 1773, e na mesma cidade faleceu em 1848. Formou-se em matemática e filosofia em Coimbra, o que correspondia à profissão de engenheiro. Como aconteceu geralmente a todos os brasileiros de instrução e mérito da época da Independência, teve importante situação política e social no primeiro reinado, distinções honoríficas e altos cargos, senador, conselheiro de Estado. Aos quarenta ou quarenta e um anos começou a publicar no Patriota, de Araújo Guimarães, as suas Máximas, pensamentos e reflexões, sob o pseudônimo de Um brasileiro. Porventura para lhes dar o peso da autoridade de maior experiência, mais tarde, em nova edição que delas fez, declarou havê-las escrito dos sessenta aos setenta e três. Norberto lhe reparou no equívoco e o corrigiu com razão. De 1837 a 1841 publicou, já sob o título de marquês de Maricá, as suas Máximas, pensamentos e reflexões em três partes respectivamente, distribuindo-as gratuitamente. Como ele tenha depois facultado a todos a reimpressão das suas obras, devemos crer que esta rara generosidade obedecia a um pensamento de interesse pela doutrinação moral dos seus patrícios. O marquês de Maricá, como La Rochefoucauld, com quem mui indevidamente o comparou uma crítica mais patriótica que esclarecida, não escreveu em sua vida senão máximas. Ele próprio as computou, na última coleção que delas imprimiu, em 1845. É, pois, segundo a qualificação moderníssima e depois do autor do Compêndio do peregrino da América e de Matias Aires, o primeiro moralista da nossa literatura. Não tinha, porém, uma filosofia sua ou sequer alheia afeiçoada pela sua própria experiência e meditação. Repete os lugares comuns da ética contemporânea, mistura de cristianismo sentimental e de liberalismo político. A sua psicologia, escolástica e vulgar, jamais vai ao fundo das coisas, nem descobre na alma humana novidades ou aspectos recônditos ou inéditos. À sua observação falta finura e penetração, ou originalidade. Faz parte da vulgar sabedoria comum e ele não a soube relevar pelos dons singulares de expressão que o gênero requer, e que são porventura o principal mérito dos seus grandes modelos franceses. Máximas e pensamentos, valem talvez principalmente pela forma que revestem. São o imprevisto, o ressalto, junto à concisão e à justeza desta que os valoriza. O escolho do gênero é a banalidade, clara ou mascarada com o paradoxo ou a singularidade. Neste escolho bateu frequentemente o marquês de Maricá. Nem por isso perdem as suas Máximas a importância que lhe assinalei de primeiro exemplar do moralismo leigo e literário em a nossa literatura. E para o comum dos leitores que dispensam no assunto refinamentos, sutilezas de ideias e expressão, podem ser leitura agradável e proveitosa, porque o essencial é são e a forma escorreita, sem rebusca indiscreta de purismo e já do nosso tempo e gosto.
José Feliciano Fernandes Pinheiro, visconde de São Leopoldo, nascido em Santos (São Paulo) em 1774 e falecido em Porto Alegre (Rio Grande do Sul) em 1847, foi sujeito considerável pela sua ilustração e alta situação social e política no reinado do primeiro imperador. Formado em direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal fez os seus primeiros trabalhos literários, traduções e compilações de assuntos de imediata utilidade prática, ali publicados de 1799 a 1801. No Brasil, após haver exercido diversas comissões de serviço público, foi eleito em 1821, deputado às Cortes da nação portuguesa quando da reforma governamental por que esta passou, e como tal tornou a Portugal. Espírito conservador e moderado, foi dos poucos deputados brasileiros que juraram a constituição por elas feita. De volta ao Brasil em seguida à declaração da Independência, foi aqui deputado geral, presidente de província, ministro do Império, senador e ocasionalmente encarregado de uma missão de caráter diplomático. Por estes serviços teve o título de visconde de São Leopoldo, nome por que ficou quase exclusivamente conhecido. Além de memórias biográficas de compatriotas ilustres ou sobre limites do Brasil e ainda monografias interessantes para a nossa história literária, escreveu uma obra notável para o tempo e ainda hoje estimável, Anais da Capitania de S. Pedro. Como livro, quero dizer, sob o puro aspecto bibliográfico, o mais bem feito dessa época, o mais perfeito de composição e estrutura. Não obstante algumas incorreções de linguagem, galicismos e alguns mais graves defeitos de estilo, a sua redação revê o homem educado em Portugal e a leitura dos portugueses. A língua é geralmente melhor do que aqui comumente escrita. Como historiador distingue-se já o visconde de São Leopoldo por bom critério histórico, aptidões críticas, capacidade de apurar os sucessos nos documentos autênticos de preferência originais ou inéditos, informação segura das fontes ou informes impressos do assunto ou a ele aproveitáveis, arte de dispor e referir os fatos e, notavelmente, menos prolixidade como era, e continuou a ser, de costume. As suas Memórias, publicadas postumamente na Revista do Instituto Histórico (tomos 37-38), conquanto lhes falte o interesse das revelações inéditas e mesmo das indiscrições, que principalmente dão relevo e pico a este gênero de literatura, sem que lho levante também um estilo mais literário, são todavia, até pela raridade delas nas nossas letras, estimáveis.
Todos os mais autores de prosa desta mesma fase ainda menos consideráveis são. Nenhum é um escritor que se faça todavia ler com aprazimento.

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