Os líricos
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Quando se lhes formou o espírito aos poetas mineiros ou começavam eles a poetar, viçava em Portugal o arcadismo, movimento propositadamente iniciado ali por meados do mesmo século XVIII contra o gongorismo do século antecedente. O arcadismo, porém, foi mais que uma escola, um estilo literário. Ao contrário dos seus manifestos intuitos não conseguiu, se não muito parcialmente, nem desbancar o seiscentismo, nem fazer regressar as letras portuguesas, como era o seu propósito, à natureza e ao natural, à nobre simplicidade, à pureza da frase, à verossimilhança dos pensamentos. Aliás estas virtudes nunca foram comuns nessas letras. E no arcadismo ficaram ainda ressaibos demasiados do seiscentismo contra o qual se organizara.
Os poetas mineiros, como os
demais poetas brasileiros da mesma época, nenhum benemérito de menção
particular, são antes de tudo árcades, ainda quando não pertencem efetivamente
a alguma das Arcádias do Reino. No Brasil nenhuma houve com existência real de
sociedade organizada de poetas. As de que se fala não passaram de imaginações e
fingimentos seus. Como Árcades portugueses, eles não foram somente ao geral dos
seus contemporâneos da metrópole, antes, como reconheceu Garrett e o têm
verificado outros historiadores da literatura portuguesa, contribuíram para lhe
avultar e enriquecer a poesia naquela época. O que decididamente os sobreleva
àqueles e os torna mais notáveis e, para nós ao menos, mais interessantes, são
as suas novas contribuições à poesia portuguesa, com as quais também entra a
nossa a se distinguir dela. Introduzem um novo elemento de emoção, o seu
nativismo comovido, o seu patriotismo particular; um novo assunto, a gente e a
natureza americana, e com isto, e resultante disto, novos sentimentos e
sensações, indefiníveis talvez mais sensíveis, que o meio novo de que eram, do
qual ou no qual cantavam, lhes influía nas almas. Escapando, pelo seu mesmo
exotismo ao predomínio absoluto das tradições literárias portuguesas, ao rigor
da moda poética então na metrópole vigente, puderam ser e foram mais naturais,
mais isentos dos defeitos e vícios em que se desmanda ali essa moda. São, em
suma, menos gongóricos que os portugueses, sacrificam muito menos à mitologia e
ao trem clássico do que eles.
Segundo a ordem cronológica de
sua manifestação, Cláudio da Costa é o primeiro destes poetas. Nasceu no Sítio
da Vargem, distrito da cidade de Mariana, aos 5 de junho de 1729, de João
Gonçalves da Costa, português, e Teresa Ribeiro de Alvarenga, mineira. Seu pai
ocupava-se de mineração e lavoura. Por parte de pai, seus avós eram
portugueses, e de mãe brasileiros, de São Paulo e de boa geração. Eram gente
abonada, pois quatro dos seus cinco filhos cursaram a Universidade de Coimbra.
Tinha em Minas um tio frade e doutor, Fr. Francisco Vieira, que fora opositor
daquela Universidade e era agora procurador-geral da Religião da Sua Santíssima
Trindade no Brasil. Com ele iniciou os primeiros estudos de latim em Ouro Preto , donde aos
quatorze anos se passou ao Rio de Janeiro. Aqui, no colégio dos jesuítas,
estudou filosofia. Com vinte anos embarcou para Portugal, com destino a
Coimbra, em cuja
Universidade se formou em cânones. Entre 1753
e 54 recolheu ao Brasil, dando-se à advocacia em Vila Rica , onde também
exerceu o importante cargo de secretário do Governo. Por sua idade, boa lição
clássica, fama de douto e crédito de autor publicado, exerceu Cláudio da Costa
ali uma espécie de magistério entre os seus confrades em musa, maiores e
menores, que todos lhe liam as suas obras e lhe escutavam os conselhos. Aos
sessenta anos foi comprometido na chamada Conjuração Mineira. Preso, e sem
dúvida apavorado com as consequências da tremenda acusação de réu de
inconfidência, suicidou-se na prisão.
Na minuta manuscrita de seus
escritos que acompanha os citados apontamentos, declara Cláudio que
"aplicado desde os primeiros anos ao estudo das belas-letras"
conservava inéditos em 1759: Rimas nas
línguas latina, italiana, portuguesa, castelhana e francesa em poesia heroica e
lírica, dois tomos in 4º. É preciosa a confissão, menos como testemunho da
capacidade poética do nosso patrício em cinco línguas, que por mostrar quanto,
com mais de meio século de permeio, e a despeito da Arcádia, estava ainda perto
de Botelho de Oliveira, o poeta seiscentista da Música do Parnaso em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas,
italianas e latinas. Cláudio Manoel da Costa é aliás, e ficaria, o mais
português dos poetas mineiros, o mais seiscentista e simultaneamente o mais
arcádico, o mais achegado à inspiração e poética portuguesa tradicional e a do
momento em que se lhe formou o espírito, em suma, o menos brasileiro do grupo.
Di-lo bastantemente o só título de seus escritos inéditos e publicados, Rimas pastoris ou Musa bucólica, centúria
sacra, poema ao glorioso parto de Maria Santíssima, Monúsculo poético, Culto
métrico a certa abadessa, e quejandos.
Poetou e escreveu com abundância
segundo se vê das suas mesmas citadas informações, e o testemunha a parte
publicada de sua obra.
Nos citados
"Apontamentos" figuram entre os seus manuscritos Poesias dramáticas que se têm muitas vezes representado nos teatros de
Vila Rica, Minas em geral e Rio de Janeiro e Várias traduções de dramas de
Metastásio. Alguns destes dramas em rima solta, outros em prosa,
proporcionados ao teatro português. Sobre confirmarem a variedade de aptidões
poéticas de Cláudio da Costa, seriam estas obras contribuição porventura
estimável para a história da nossa literatura dramática e ainda do nosso
teatro. Parece que se perderam todas. De sua copiosa obra poética, a porção
verdadeiramente insigne são os Sonetos,
entre os quais os há rivalizando os mais excelentes da língua. Obedecendo à
poética preconizada pelos fautores da Arcádia, embora com sobrevivências do
seiscentismo, duas feições distinguem os sonetos de Cláudio Manuel da Costa: um
vago perfume camoniano e uma sensibilidade particular porventura a primeira
manifestação da nostalgia brasileira, depois repetida por tantos poetas nossos.
São amostras destes dois traços os sonetos:
Se os poucos dias que vivi contente
Foram bastantes para o meu cuidado,
Que pode vir a um pobre desgraçado
Que a ideia do seu mal não acrescente!
Aquele mesmo bem, que me consente,
Talvez propício, meu tirano fado
Esse mesmo me diz, que o meu estado
Se há de mudar em outro diferente.
Leve pois a fortuna os seus favores;
Eu os desprezo já; porque é loucura
Comprar a tanto preço as minhas dores:
Se quer que me não queixe, a sorte escura
Ou saiba ser mais firme nos rigores
ou saiba ser constante na brandura.
* * *
Onde estou! este sítio desconheço;
Quem fez tão diferente aquele prado!
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-las tímido esmoreço.
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi tão florescentes
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes,
Meus males com que tudo degenera!
* * *
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos,
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanhas, troncos e penedos
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh! quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e às vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a memória retratando;
Que na mesma saudade do infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
* * *
Memórias do presente, e do passado
Fazem guerra cruel dentro em meu peito;
E bem que ao sofrimento ando já feito,
Mais que nunca desperta hoje o cuidado.
Que diferente, que diversos estado
É este, em que somente o triste efeito
Da pena, a que meu mal me tem sujeito,
Me acompanha entre aflito e magoado!
Tristes lembranças! e que em vão componho
A memória da vossa sombra escura!
Que néscio em vós a ponderar me ponho!
Ide-vos; que em tão mísera loucura
Todo o passado bem tenho por sonho;
Só é certa a presente desventura.
Adorador fiel das musas europeias,
age não obstante nele o incoercível império da terra natal, para onde quisera
trazer e onde quisera aclimatar aquelas musas, e o seu cortejo clássico de
"ninfas, o pastor, a ovelha, o touro":
Musas, canoras Musas, este canto
Vós me inspirastes, vós meu tenro alento
Erguestes brandamente àquele assento.
Que tanto, ó Musas, prezo, adoro tanto.
Lágrimas tristes são, mágoas e pranto,
Tudo o que entoa o músico instrumento;
Mas se o favor me dais, ao mundo atento
Em assunto maior farei espanto.
Se em campos não pisados algum dia
Entre a Ninfa, o Pastor, a ovelha, o touro,
Efeitos são da vossa melodia;
Que muito, ó Musas, pois, que em fausto agouro
Cresçam do pátrio rio à margem fria
A imarcescível hera, o verde louro!
Sem embargo dos seus poemas de
intuitos nativistas, como a Fábula do
Ribeirão do Carmo e Vila Rica,
faltou-lhe infelizmente talento para desta transplantação fazer melhor do que
instalar na paisagem e no ambiente americano os estafados temas e motivos da
cansada poesia pastoril portuguesa, sem ter ao menos, como Gonzaga, alguma
forte paixão que os reviçasse. Influenciado sem dúvida pelo exemplo de Basílio
da Gama e de Durão, compôs o seu poema brasileiro, se não pelo sentimento e
inspiração, pelo assunto, Vila Rica.
É uma obra medíocre, indigna do poeta dos Sonetos
e ainda de outros versos, a qual apenas revê o apego à tradição que fazia
anacronicamente viver esse gênero na literatura da nossa língua.
Vernáculo nesta e correto na
forma e estilo poético de fino e delicado sentimento, com tons bastante
pessoais, apenas um todo nada gongórico, Cláudio Manoel da Costa é, todavia,
julgando-o pelo conjunto da sua obra, o mais árcade dos árcades brasileiros.
Não tem alguma emoção grande ou profunda, poetiza por poetizar, academicamente,
seguindo de perto a escola na inspiração, nos temas preferidos, nas formas métricas.
É um virtuose e um diletante, se podemos juntar os dois termos, mas o é com
engenho e não raro, nos Sonetos, formosamente. Nenhum dos seus poemas em que se
pode enxergar algo de sentimento pátrio, ou de influxo da terra natal, se
distingue na sua obra. Revelam, porém, todos, ainda que vagamente, como tais
motivos começavam a impor-se aos engenhos brasileiros, dos quais volvido meio
século se iam tornar prediletos.
Nasceu Tomás Antônio Gonzaga em
Portugal, na cidade do Porto, em 1744, de pai fluminense e mãe portuguesa,
filha de inglês. Como o pai houvesse exercido a magistratura na Bahia, Tomás
Gonzaga passou algum tempo da adolescência nessa cidade, ainda então a
principal do Brasil. Voltando com a família a Portugal, aos vinte e quatro anos
bacharelou-se em leis em
Coimbra. Por ter sido opositor a cadeiras da faculdade
jurídica, fez jus ao título de desembargador. Com essa graduação veio para o
Brasil, em 1782, nomeado ouvidor de Vila Rica, a pitoresca e sombria capital de
Minas Gerais. Afora a declaração de uma de suas liras, de que por amor de
Marília destruíra os versos que antes de a conhecer consagrara a outras
mulheres, declaração que apenas será gentileza de namorado, não se conhece
testemunho de que Gonzaga houvesse poetado antes de vir para o Brasil. Ao
contrário, nenhum indício há de o ter feito. Foi o Brasil que o fez poeta, e é
isto que o naturaliza brasileiro. Aqui se lhe depararam os motivos do seu
poetar, primeiro a mulher que parece ter amado de um grande e terno amor,
principal estímulo do seu estro até então adormecido; depois os sucessos que, a
despeito da sua inocência, o envolveram na chamada Conjuração Mineira.
Despedaçando-lhe a existência, que se lhe antolhava auspiciosamente fagueira,
esses sucessos ajuntaram às emoções dolorosas dos seus contrariados amores o
abalo cruel de uma calamidade inaudita: a acusação do crime de lesa-majestade,
a prisão, os ferros, os maus tratos, a masmorra, um longo e martirizante
processo, a perspectiva da forca, em suma o desmoronar súbito e brutal de todas
as suas risonhas esperanças de namorado e funcionário, em via de realização. De
sua dor fez as formosas canções que o imortalizaram, como um dos bons poetas do
amor da nossa língua. A brasileira sua amada era uma jovem matuta, sem outra
cultura e espírito que as suas graças naturais. Para ser dela entendido e
tocá-la, versejou-lhe naturalmente, simplesmente, com o mínimo de artifícios
clássicos possível à poética portuguesa, quase sem arrebiques literários, nem
rebuscas de expressão, que ela pudesse desentender. Assim como lhe forneceu o
motivo e o estímulo de inspiração, deu-lhe o Brasil também o estilo que o
distingue e sobreleva aos seus pares. Como poeta é, pois, Gonzaga um lídimo
produto brasileiro.
Comutada a pena de morte, imposta
pela alçada que julgou a presumida conspiração, em degredo para Angola, em
África, ali morreu de miséria moral e física pelos anos de 1807 a 1809. A primeira edição de
suas liras, sob o título que se devia tornar famoso de Marília de Dirceu, apareceu em Lisboa, em 1792, no mesmo ano da sua
condenação e desterro. E desde então se tem feito delas, aumentadas de suas
partes, cuja autenticidade é questionável, trinta e quatro edições. Nenhum
outro poema da nossa língua, com a só exceção dos Lusíadas, teve tão grande número de edições.
Marília de Dirceu, o título consagrado das liras de Gonzaga, é a mais nobre e
perfeita idealização do amor da nossa poesia. Clássica embora de língua e
poética, é uma obra pessoal, escapa e superior às fórmulas e competências das
escolas. Canta de amor numa toada sinceramente sentida e por isso tocante, do
amor como a grande e fecunda e honesta paixão humana nas suas relações com a
vida, ainda nos seus aspectos prosaicos, a existência e os sentimentos vulgares
ou sublimes. Por essa expressão é Gonzaga um grande poeta.
No que em Gonzaga se revê o
português, como aliás em Cláudio da Costa, brasileiro nato, é nos afeites
portugueses de sua poesia, os fingimentos pastoris, imagens e tropos de ambos
derivados. Isso mesmo, porém, não é mais essencialmente português do que
italiano ou espanhol, se não puramente arcádico. Mas a realidade da sua
situação, a verdade do seu sentimento, a sinceridade da sua emoção,
sobrelevaram as máculas postas no seu poema pelos inevitáveis estigmas da
poética em voga e quase as apagaram. Se o Brasil o naturalizou seu, fazendo-o
poeta, ele por sua vez foi o principal agente de naturalização aqui da
sentimentalidade voluptuosa do lirismo português. Foi ele, com efeito, o
primeiro que no Brasil cantou tão constante, tão exclusiva e tão ternamente de
amor.
Dos poetas desta plêiade, o de
obra menos considerável é Inácio José de Alvarenga Peixoto. Natural do Rio de
Janeiro, filho de Simão de Alvarenga Braga e de D. Ângela Micaela da Cunha, que
ignoramos se eram brasileiros ou portugueses, gente se não de bom nascimento,
abonada. Feitos os primeiros estudos com os jesuítas, na sua cidade natal, por
volta de 1760 foi concluí-los em Portugal. Em Coimbra
formou-se em leis, em Cintra foi juiz de fora e no Reino demorou-se até depois
de 1775. Neste ano ainda se encontrava ali, onde, com outros poetas e
versejadores brasileiros, Basílio da Gama e seu irmão Antônio Caetano Vilas
Boas da Gama, Joaquim Inácio de Seixas, da família da futura namorada de
Gonzaga, Silva Alvarenga e outros mais versejou à inauguração da estátua de D.
José I. De Portugal voltou despachado ouvidor da Comarca do Rio das Mortes.
Este cargo, e o seu posterior casamento com uma senhora mineira de família
paulista, levou Alvarenga Peixoto a domiciliar-se e estabelecer-se em Minas,
onde trocou a profissão de magistrado pela de fazendeiro e minerador e o título
acadêmico de doutor pelo de coronel, pelo qual ficou mais conhecido. Dera-lhe
esta patente, com o comando do regimento de cavalaria da campanha do Rio Verde,
o Governador D. Luís da Cunha Menezes. Vivendo em São João del Rei, ia frequentemente a Vila Rica,
onde era hóspede habitual de Gonzaga, de quem devia ter sido companheiro em
Coimbra e era ainda parente. Estes dois poetas e Cláudio da Costa
encontravam-se em fraternal convívio, comunicando-se mutuamente as suas
composições e conversando de letras e, naturalmente, das coisas da capitania.
Destas conversações, em que tomariam parte outros homens de letras ou de alguma
representação na capitania, mal entendidas por uns, deturpadas por outros,
originou-se a suspeita de uma conjuração contra o domínio português, com o
intento de conflagrar a capitania e proclamar a sua independência. Não obstante
o seu aulicismo e a constância de suas manifestações bajulatórias de veneração
a soberanos e magnatas portugueses seus delegados, foi Alvarenga Peixoto
comprometido nela, preso e, com Gonzaga e seus outros companheiros de
suspeição, trazido algemado para as lôbregas masmorras do Rio de Janeiro. Após
um longo processo de três anos, delas saiu para o desterro de Ambaca em África,
onde pouco depois morreu em 1793.
A crermos os seus biógrafos,
incluindo o melhor deles, Norberto Silva, Alvarenga Peixoto escreveu muito
maior número de composições do que as que se lhe conhecem, e que Norberto foi
quem mais completa e cuidadosamente colecionou. Voltando de Portugal ao Rio de
Janeiro, aqui o acolheu benignamente o vice-rei Marquês de Lavradio. No teatro
ou "casa da ópera", como lhe chamavam, criado por este vice-rei, fez
Alvarenga Peixoto, sempre chegado aos magnatas, representar uma tradução em
versos de Mérope, tragédia de Maffei
e também um drama original, igualmente em versos, Eneias no Lácio. Tal é ao menos a versão de Cunha Barbosa propalada
por Norberto, ignoramos com que fundamento. Infelizmente essas tentativas, como
as de Cláudio da Costa, e outros que porventura houve, perderam-se totalmente.
Assim também se teriam perdido, levadas no tufão da devassa e sequestros de que
foram objeto os acusados de inconfidência e seus bens, muitas outras
composições de Alvarenga Peixoto. No que dele nos resta – vinte sonetos, duas
liras, três odes incompletas, uma cantata e um canto em oitava rima –
percebe-se um bom poeta, de seu natural fácil e fluente. Não lhe falta
imaginação nem conceito. Infelizmente o motivo principal de sua inspiração no
que dele nos ficou, versos na maior parte de encômios a magnatas, versos de
cortesão, lhe haveria prejudicado dotes que mais se adivinham que se sentem.
Passa como um dos seus melhores sonetos A
saudade, feito depois da sua sentença de morte. Não lhe seriam inferiores A lástima, composta "na masmorra da
Ilha das Cobras, lembrando-se da família", nem o feito à Rainha D. Maria I
suplicando-lhe a comutação da pena de morte, se não houvesse em ambas
demasiados traços da ruim poética do tempo, empolada e campanuda. Comparticipa
Alvarenga Peixoto do sentimento comum a estes poetas de afeto, pode mesmo
dizer-se de ufania, da terra natal, unido a um sincero apego a Portugal.
Manifesta-se na maior parte dos poemas que lhe conhecemos, particularmente na
ode à Rainha D. Maria I, da qual se poderia inferir ter havido aqui a esperança
de que ela cá viesse, em visita à sua colônia:
Se o Rio de Janeiro
Só a glória de ver-vos merecesse
Já era vosso mundo novo inteiro
......
Vinde, real senhora
Honrar os nossos mares por dois meses
Vinde ver o Brasil que vos adora
.....
Vai, ardente desejo,
Entra humilhado na real Lisboa
Sem ser sentido do invejoso Tejo
Aos pés augusto voa,
Chora e faze que a mãe compadecida
Dos saudosos filhos se condoa
.....
Da América o furor
Perdoai, grande augusta; é lealdade
São dignos de perdão crimes de amor.
Este sentimento, que é manifesto
em todos os poetas, desdiz do que lhes imputou a torva e suspicaz política dos
governadores e vice-reis portugueses, cujo excessivo zelo lhes transformou
apenas indiscretas conversações em conjuração e fez destes árcades ideológicos
réus de inconfidência, destruindo estúpida e maldosamente três destes amáveis
poetas. Este íntimo sentimento casava-se-lhes na fantasia com a ambição
patriótica de que se aumentasse na monarquia portuguesa a importância de sua
terra e que as nobres estirpes daquela dessem aqui rebentos que lhe quisessem
como a sua. Estas e outras quimeras, vagos e indecisos sonhos de poetas, se encontram
no Sonho e no Canto genetlíaco, de
Alvarenga Peixoto, em que, a propósito do filho do governador D. Rodrigo de
Menezes, se rejubila de que
Os heróis das mais altas cataduras
Principiam a ser patrícios nossos.
Chegamos ao último, na ordem do
tempo, dos líricos deste belo grupo. É Manoel Inácio da Silva Alvarenga,
natural de Vila Rica, em Minas, onde nasceu em 1749, donde saiu apenas
adolescente e aonde não mais voltou. Era filho de um homem pardo, Inácio Silva
Alvarenga, músico de profissão, como têm sido tantíssimos de sua raça no
Brasil, e pobre, e de mãe desconhecida. A benevolência de pessoas a quem a sua
inteligência e vocação estudiosa interessava, deveu poder vir para o Rio
estudar, e daqui, feitos os preparatórios, seguir para Coimbra, onde se
bacharelou em cânones, sempre com as melhores aprovações, em 1775 ou 76, com 27
anos de idade. Em Portugal relacionou-se com alguns patrícios, como Alvarenga
Peixoto e Basílio da Gama, mais velhos do que ele e também poetas. Do último,
parece, foi grande amigo. Celebrou-o mais de uma vez, e efusivamente, em seus
versos. No círculo destes e de outros brasileiros dados às musas, ter-se-ia
primeiro feito conhecido. Em 1774 publicara em Coimbra o poema herói-cômico. O Desertor (8º, 69 págs.), metendo à
bulha o escolasticismo coimbrão, pouco antes desbancado pelas reformas
pombalinas, e celebrando estas reformas. Franco é o mérito literário deste
poema. Não é, todavia, despiciendo como documento de um novo estado de
espírito, mais literal e desabusado, da sociedade portuguesa sob a ação de
Pombal, e do caminho que havia feito em espíritos literários brasileiros o
sentimento pátrio, manifestado no poema em alusões, referências, lembranças de coisas
nossas. Quando foi do dilúvio poético da inauguração da estátua equestre de D.
José I, em 1775, Silva Alvarenga o engrossou com um soneto e uma ode. O mesmo
motivo inspirou-lhe ainda a epístola em alexandrinos de treze sílabas Ao sempre augusto e fidelíssimo rei de
Portugal o Senhor D. José I no dia da colocação de sua real estátua equestre.
Era então estudante, e tal se declara no impresso da obra. Dois anos depois
vinha a lume o Templo de Netuno,
poemeto (idílio) de sete páginas em tercetos e quartetos, muito bem
metrificados, com que, ao mesmo tempo que celebra a aclamação da Rainha D.
Maria I:
Possa da augusta filha o forte braço
Por longo tempo sustentar o escudo,
Que ampara tudo o que seu reino encerra
E encher de astros o céu, de heróis a terra.
se despede sinceramente sentido
de seu amigo o patrício Basílio da Gama:
Ainda me parece que saudoso
Te vejo estar da praia derradeira
Cansando a vista pelo mar undoso.
Sei que te hão de assustar de quando em quando
Os ventos, os vários climas e o perigo
De quem tão longos mares vai cortando.
Vive, Termindo, e na inconstante estrada
Pisa a cerviz da indômita fortuna,
Tendo a volúbil roda encadeada
Aos pés do trono em sólida coluna.
Com este conselho baixamente prático ao recém-protegido de Pombal para que angarie também o patrocínio da rainha de pouco aclamada, e que ia ser o centro da reação contra aquele, termina Silva Alvarenga o seu poema. Antes de lhes exprobrarmos a vileza do sentimento, consideremos que era muito menor e muito mais desculpável do que iguais que agora vemos em todo o gênero de plumitivos. Ele procedia consoante o tempo e o uso geral de poetas e literatos, que ainda não tinham outro recurso que a proteção dos poderosos. Precede imediatamente esta quadra menos digna, e acaso por isso mesmo menos bela, o formoso e sentido terceto:
Se enfim respiro os puros climas nossos,
No teu seio fecundo, ó Pátria amada,
Em paz descansem os meus frios ossos,
que revê o sentimento do amor da terra natal comum a todos estes poetas, que todos o manifestaram de forma a lhe sentirmos o trabalho de transformação do limitado nativismo, se não apenas bairrismo, de seus predecessores em um patriotismo mais consciente e amplo. Vinha este poema assinado por "Alcindo Palmireno", "árcade ultramarino" e era endereçado a José Basílio da Gama, Termindo Sepílio. Estas alcunhas arcádicas, e outras que tomaram vários poetas do mesmo grupo, como a de Dirceu, de Gonzaga, não indicam nos que as traziam a qualidade de associados de alguma das sociedades literárias então existentes com o nome de Arcádias. Somente de Cláudio e Basílio se pode crer que a tais sociedades pertencessem. Na maioria dos outros, do grupo mineiro ou não, era apenas um apelido genérico. Arcádia quer dizer assento de poetas, e por extensão poesia, e, em Portugal e aqui, a poesia na época vigente. Árcade valia, pois, o mesmo que poeta. "Árcade ultramarino" não dizia mais que poeta do ultramar, sem de forma alguma indicar a existência no Brasil dessas sociedades, que de fato nunca aqui existiram.
Foi Silva Alvarenga um dos mais
fecundos e melhores poetas da plêiade mineira. Desde o Desertor das letras, o seu poema herói-cômico contra o carrancismo
do ensino universitário, não cessou de versejar. Em folhas avulsas, folhetos,
coleções e florilégios diversos, jornais literários portugueses e brasileiros
(pois ainda foi contemporâneo dos que primeiro aqui apareceram), foram
publicadas as suas muitas obras. A de mais vulto, o poema madrigalesco Glaura, saiu em Lisboa em 1799 e 1801.
As notas de aprovação obtidas em Coimbra por Silva Alvarenga lhe arguem hábitos
de estudo sério, que tudo faz supor conservasse depois de graduado e pela vida
adiante. Era seguramente homem de muito boas letras, com a melhor cultura
literária que então em Portugal se pudesse fazer. Quanto a ela, juntava, além
do engenho poético, talento real, espírito e bom gosto pouco vulgar no tempo;
sobejam-lhe as obras para o provar, nomeadamente os seus prefácios e poemas
didáticos. Assenta consigo mesmo, embora segundo a Arcádia e Garção, que na
"imitação da natureza consiste toda a força da poesia", e a sua Epístola a José Basílio, insistindo
nesta opinião, está cheia de discretos conceitos de bom juízo literário. Se nem
sempre os praticou, é que mais pode com ele a influência do momento literário
que as excelentes regras da sua arte poética. Lera Aristóteles, Platão, Homero.
Lida com eles e os cita de conhecimento direto, e a propósito. Conhece as
literaturas modernas mais ilustres, inclusive a inglesa. Não lhe são estranhas
as ciências matemáticas, físicas ou naturais. No seu poema As artes, as figura,
ou se lhes refere com apropriadas alegorias ou pertinentes alusões.
Formado em cânones voltou Silva
Alvarenga ao Rio de Janeiro em 1777, e aqui se deixou ficar, talvez porque
nenhum afeto ou interesse de família, que não a tinha regular, o chamasse a
Minas, sua terra natal. Vários poemas seus, nomeadamente a sua Ode à mocidade portuguesa, a epístola a
Basílio da Gama e As artes, acima
citado, mostram em
Silva Alvarenga um espírito ardoroso de cultura, de progresso
intelectual, e entusiasta de letras e ciências. Ele traria para o Brasil
desejos e impulsos de promover tudo isto aqui. Angariando a boa vontade do
vice-rei de então, Marquês do Lavradio, fundou, com outros doutos que aqui
encontrou, uma sociedade científica, cujo objeto principal "era não
esquecerem os seus sócios as matérias que em outros países haviam aprendido,
antes pelo contrário adiantar os seus conhecimentos". Foi efêmera a
existência desta sociedade. Num outro vice-rei, Luís de Vasconcelos e Sousa,
encontrou igualmente o nosso poeta animação e patrocínio. Por ele teve a
nomeação de professor régio de uma aula de retórica e poética, solenemente
inaugurada em 1782, e sob os seus auspícios restaurou, em 1786, com a
denominação agora de Sociedade Literária, a associação extinta. Dela foi
secretário e porventura a alma. A mal conhecida existência destas duas
associações literárias fundadas por Alvarenga deu azo às hipóteses e
imaginações que têm aliás ocorrido como certezas, de uma Arcádia Ultramarina,
criada por ele com o concurso de Basílio da Gama, que entretanto estava em
Portugal, donde nunca mais saiu. Dos sócios destas duas sociedades, médicos,
letrados, padres, o único nome que escapou ao completo esquecimento e a
história literária recolheu além do de Silva Alvarenga, foi o de Mariano José
Pereira da Fonseca, o futuro Marquês de Maricá, autor das Máximas. A esta
atividade literária juntava Alvarenga a profissão de advogado. Mudado o
vice-rei liberal pelo Conde de Rezende, que não o era (1790), este, tornado
mais desconfiado pelos recentes sucessos da Inconfidência Mineira, enxergou
nessa reunião de estudiosos e homens de letras não sei que sinistros projetos
de conjura contra o poder real. Preso em 1794, após múltiplos interrogatórios e
mais de dois anos de prisão nas lôbregas masmorras da fortaleza de Santo
Antônio, foi Silva Alvarenga restituído sem julgamento à liberdade. Teve sorte.
Não eram acaso mais culpados do que ele os seus confrades de Minas, dois anos
antes, comutada a sentença de morte em desterro, mandados morrer nas inóspitas
areias africanas. Faltou apenas um pouco mais de zelo ao vice-rei Rezende e ao
principal juiz da nova alçada, o poeta do Hissope,
Dinis. Viveu até 1814 e colaborou ainda no Patriota,
a revista literária que fomentou o movimento intelectual anterior à
independência.
Pelo espírito, pelo temperamento
literário, pelo estilo tanto como pela idade, é Silva Alvarenga o mais moderno
dos poetas do grupo, o menos iscado dos vícios da época, o mais livre dos
preconceitos da escola, cujas alusões e ridículo não desconhecia, como se vê na
sua Epístola a José Basílio. Tem além
disso bom humor, espírito e, em suma, revê melhor que os outros a emancipação
produzida em certos espíritos pela política antijesuítica de Pombal. Com ser
mestre de retórica, evita mais que os outros os recursos do arsenal clássico e
mitológico. E quando cede à corrente, o faz com muito mais personalidade senão
originalidade, mesmo com desembaraço e liberdade rara no tempo. É disso prova a
sua formosa heroide Teseu e Ariana,
uma das melhores amostras da nossa poesia, naquela época.
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Imagens:
Hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital
http://memoria.bn.br/
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