Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
É principalmente na épica que os
brasileiros, se não sobrelevam aos portugueses da segunda metade do século
XVIII, concorrem dignamente com eles. Os dois poemas brasileiros, o Uraguai, de Basílio da Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão, não
desmerecem das melhores epopeias portuguesas da época.
José Basílio da Gama nasceu nos
arredores da antiga Vila de São José do Rio das Mortes, depois São José de
El-Rei, hoje Tiradentes, 1741. Foram seus pais o capitão-mor Manoel da Costa
Vilas Boas, português, e D. Quitéria Inácia da Gama, brasileira, ambos de bom
nascimento. A mãe descendia da nobre família Gama de Portugal, motivo por que
talvez o filho lhe preferisse o apelido ao do pai. De seus ascendentes somente
eram brasileiros a mãe e a avó materna. Órfão de pai em anos verdes, e talvez
minguado de bens, veio para o Rio de Janeiro cursar de favor o colégio dos
jesuítas. Estava para professar na Companhia quando foi esta dissolvida e seus
membros expulsos dos domínios portugueses. Aproveitando a exceção em favor dos
não professos, abandonou Basílio da Gama a Companhia. Do Brasil passou a
Portugal e daí a Roma, onde foi admitido à Arcádia Romana. De Roma voltou ao
Brasil em fins de 1766 ou princípios de 1767. Em meados do ano seguinte tornava
a Portugal, com destino à Universidade de Coimbra. Preso em Lisboa como
ex-jesuíta, esquivou o consequente desterro para Angola consagrando um formoso
poema ao casamento de uma filha do Marquês de Pombal, ministro todo-poderoso de
D. José I. No próprio ano (1769) desse Epitalâmio, saiu da Impressão régia o Uraguai. Como no mesmo volume vinha a Relação abreviada, famosa diatribe
contra os jesuítas, obra pessoa de Pombal, é legítimo conjeturar que por conta
deste correra a publicação do poema. Dedicado no texto ao irmão de Pombal,
ex-governador do Pará, Maranhão, era oferecido ao marquês em um soneto
preliminar. Desde então não saiu mais Basílio da Gama de Portugal, sendo
inexata a notícia corrente de uma segunda vinda ao Brasil depois da publicação
do Uraguai. Além deste, que é a sua
obra capital, compôs mais de trinta poemas, entre maiores e menores, sem contar
algumas glosas. Em 1754 foi nomeado oficial da Secretaria do Reino.
Sucessivamente obteve mais tarde o título de escudeiro fidalgo da Casa Real (1787)
e o hábito de Santiago da Espada. Emprego e mercê lhe davam uma renda anual que
não só o punha ao abrigo de privações, mas lhe facultava viver com relativa
largueza. Aos cinquenta e quatro anos, ou perto deles, faleceu em Lisboa,
solteiro, a 31 de julho de 1795.
Pouco adequado a um poema épico
segundo os moldes clássicos, era o assunto de Basílio da Gama: a guerra que
Portugal, auxiliado pela Espanha, fez aos índios dos Sete Povos das Missões do
Uruguai, rebelados contra o tratado de 1750, que os passava ao domínio
português, tirando-os aos seus padres os jesuítas que os haviam descido,
amansado e aldeado, e os despejava de suas terras. Tal tema, ainda exagerado
por uma imaginação épica, daria apenas um episódio em poema de mais vulto.
Demais faltava ao poeta o recuo do tempo para uma possível idealização do
acontecimento, cujos autores ainda viviam. A epopeia tinha, pois, de ser uma
simples narrativa histórica em versos de fatos recentíssimos, a que uma
animosidade contra os jesuítas, que se manifestava já na Espanha e Portugal, e
iria breve resultar nos atos de Pombal e de Aranda, dava um desmesurado relevo.
Limitado pela realidade material do acontecimento, ainda a todos presente,
peado pela contemporaneidade das personagens, de todos conhecidas, não podia o
poeta dar à sua imaginação a liberdade e o alor necessários à idealização do
seu tema. Pelas circunstâncias da sua composição, tinha fatalmente o seu poema
de lhe sair limitado no tempo e no espaço, e sobretudo despido das roupagens e
feições propriamente épicas. Varnhagen notou que a ação não chega a durar um
ano, e o leitor atento observará como o poeta se cinge à realidade prosaica dos
sucessos.
Ao poeta não prejudicou, antes
serviu, esta situação que lhe criou o assunto. Obrigou-o a limitar as proporções
do seu poema e impediu-o de seguir os moldes clássicos, inventando ao redor do
fato principal os desenvolvimentos que a coetaneidade deles não comportava.
Fossem estas causas mais que o engenho do poeta que deram ao Uraguai a sua feição particular entre os
últimos poemas ainda oriundos da corrente camoniana, em lhes haver cedido o
patenteou ele. O gênio não é a emancipação absoluta das condições que nos
rodeiam e limitam. Consiste principalmente em compreendê-las no que elas têm de
mais sutil, de mais fugaz e de mais difícil. A superioridade de Basílio da Gama
está em ter compreendido, ou antes sentido, que os poetas são principalmente
entes de sensação, que o assunto não lhe dava para uma epopeia como aquelas que
então, à cola da de Camões, se faziam, e haver, contra o gosto, a voga, a
corrente do seu tempo avançado muito além dele e dado à literatura portuguesa o
seu primeiro poema romântico. Com efeito, não se parece o Uraguai com qualquer outro poema do tempo. Desvia-se do trilho
costumeiro da poética em
vigor. Não começa pela invocação, antes entre ex-abrupto na matéria do poema, o que
era absolutamente novo:
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros,
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos.
Não obedece à quase indefectível
prática da oitava endecassílaba; é em verso branco, e os demais deles
belíssimos. Não recorre ao maravilhoso pagão ou outro, não se encontra mácula
de gongorismo. A língua é a do seu tempo, castiça, sem rebusca, clara, límpida,
e o estilo natural e simples, apenas com o mínimo de artifício que a mesma
composição exigia. Não refuge a misturar o burlesco com o grave, nem disfarça
as feições realistas do seu reconto épico. Por todos estes rasgos, e por alguns
outros sinais intrínsecos de metrificação, linguagem e estilo e mais pela
liberdade espiritual e sentimentos liberais e humanos que o animam, é já o Uraguai um poema romântico, o precursor
na poesia do tempo do romantismo americano, o iniciador do indianismo, que
viria a ser no século XIX o traço mais distinto e significativo da renascença
literária do Brasil.
Basílio da Gama tem de raiz a
inspiração épica. Além do Uraguai, em
que a provou excelentemente, do Quitubia
(1791), que é, com pouca sorte aliás, outra demonstração dela, afetava o poeta
o tom épico de preferência a outro, ainda em poemas de natureza a o não
pedirem. Quase não cantou de amor, faltando por isso ao seu lirismo esse
poderoso elemento sentimental e estético. É, porém, um espírito livre e um
coração terno. Da liberdade de seu espírito que faz dele um liberal de antes
dos tempos, há indícios sobejos não só no Uraguai,
mas em vários poemas seus. Revela-se ainda o seu gosto por Voltaire, de quem
traduziu a tragédia Mahomet, e a sua
desafeição à guerra e às mesmas façanhas e glórias militares, insólitas no seu
tempo. Não sabemos de outro poeta contemporâneo que haja tão declaradamente
anteposto os labores e artes da paz, "às bélicas fadigas" e augurado
uma futura era pacífica, em que fugissem do mundo
as guerras sanguinosas
Detestadas das mães e das esposas,
e em que
No capacete a abelhas os favos cria,
Curva-se em foice a espada reluzente.
Também da sua ternura há exemplos
bastantes nos seus versos, particularmente nas lembranças do seu amigo Alpoim,
no Uraguai, e de outro amigo seu, o
árcade romano Mireu, no mesmo poema, e em vários outros menores, aludindo
enternecido a amigos e benfeitores. A sua obra deixa uma grata impressão de
admirativa simpatia.
Na história literária, a
importância de Basílio da Gama é o maior do que a de qualquer outro da mesma
plêiade. Sobre se revelar no Uraguai
porventura o melhor engenho de entre esses poetas, foi o primeiro a tomar por
motivos de inspiração coisas americanas e pátrias. Soube demais cantá-las com
um raro espírito de liberdade cívica e poética, sem as escravizar a fórmulas
consagradas e ainda com peregrinas qualidades de invenção e estilo. Observou
Costa e Silva que foi Santa Rita Durão o fundador da poesia brasileira, por ser
"o primeiro que teve o bom senso de destacar-se das preocupações europeias
que havia bebido nas escolas, para compor uma epopeia brasileira pela ação,
pelos costumes, pelos sentimentos e ideias e pelo colorido local".
Esqueceu-lhe que o Uraguai precedera
o Caramuru de doze anos e que mais do
que estes se mostrava estreme de preocupações europeias bebidas nas escolas.
Deste grupo de poetas é Frei José
de Santa Rita Durão o mais velho, pois nasceu em Cata Preta , distrito de
Mariana, no qual também viu a luz Cláudio da Costa, pelos anos de 1717 a 1720. Seu pai, o
sargento-mor Paulo Rodrigues Durão, era português e abastado. Ignoramos a
nacionalidade da mãe, D. Ana Garcez de Morais. Era o pai homem religioso e
nimiamente devoto. Por sua morte deixou importantes legados para quantidade de
objetos e esmolas por sua alma e pelas de seus pais, escravos e outros. Iguais
sentimentos piedosos seriam os da família, consoante era então comum em Minas. Explica-se
assim a vocação religiosa de seu filho José, o nosso poeta, que depois de
estudos preparatórios no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro, onde a vocação
incipiente se lhe teria desenvolvido, passou-se a Portugal. Ali, na ordem de
Santo Agostinho, entrou, fez o noviciado e, em 1738, entre os vinte e vinte
três anos, professou. Para seus alimentos dera o pai à ordem dois mil cruzados.
Já professo num colégio desta, em Coimbra, fez os estudos para a formatura na
Universidade, onde se doutorou em teologia. Foi lente na sua Ordem e teve o título
de substituto na Universidade. Viveu uma vida feliz de estudos e alguns pequenos
trabalhos literários. Cultivou então a amizade do célebre erudito português, o
futuro arcebispo de Évora, Frei Manoel do Cenáculo, que associou o nosso
patrício aos seus estudos das línguas orientais contra o estreito confinamento
dos jesuítas na só literatura latina. Não se sabe ao certo por que se achou
Durão na contingência de deixar Portugal, retirando-se, senão fugindo, para
Espanha. Na carta em que conta a Fr. Manoel do Cenáculo a sua escapula e lhe
reclama o apoio, apenas diz: "As minhas desgraças me levaram
inconsideradamente à Cidade... em 1762", sem explicar quais desgraças
foram. Após alguns vexames que por motivo de estado de guerra entre a Espanha e
Portugal ali sofreu, inclusive a prisão, pôde transferir-se à Itália, onde se
achava já em 1764. Em Roma soube fazer-se patrocinar por alguns figurões da
Cúria, entre os quais o famoso Ganganeli, o futuro papa Benedito XIV, que lhe
arranjou o lugar de bibliotecário da livraria pública Lancisiana, onde esteve
por nove anos, bem aceito dos literatos romanos, que o meteram em várias das
suas sociedades literárias. É notável que ele não figure com algum nome
arcádico, indicando ter pertencido à Arcádia Romana. Naquele cargo
aposentou-se, no propósito de concorrer a uma cadeira das que se esperava vagassem
na Universidade de Coimbra com a iminente expulsão dos jesuítas. Graças,
parece, ao apoio de Cenáculo e à benevolência do nosso compatriota D. Francisco
de Lemos, amigo de Durão, recém-nomeado por Pombal reitor da Universidade,
realizou-se-lhe aquele propósito, pois o encontramos em 1778 recitando como
opositor a oração de sapiência na abertura das aulas.
Por esse tempo teria começado o
seu poema, cuja composição continuaria quando, acaso receoso da reação
antipombalina, recolheu à casa de sua ordem em Lisboa, em 1779. Aí concluído ou
limado, foi publicado em 1781.
Em nenhum dos poetas da plêiade
mineira, ou quaisquer outros seus contemporâneos, o nativismo que preludiou
aqui o nacionalismo e o patriotismo, como estímulo de inspiração literária,
manifesta-se tão claramente como em Santa Rita Durão. O seu poema tinha já, por volta
de 1778 a
80, quando foi imaginado e escrito, um propósito patriótico. "Os sucessos
do Brasil, escreveu o poeta nas Reflexões
prévias, antepostas ao seu livro, não mereciam menos um poema que os da
Índia. Incitou-me a escrever este o amor da pátria." Como por trás de
Camões, trazido aqui à memória por Durão, vemos a João de Barros, o insigne
historiador do descobrimento e conquista da Índia, assim atrás de Santa Rita
Durão enxergamos Rocha Pita, o autor vanglorioso da História da América portuguesa. Não precisava Durão confessar que o
lera. O seu poema bastaria para o atestar e certificar-nos de que dele
principalmente derivam não só passos, incidentes e digressões do Caramuru, mas principalmente o seu
entusiasmo patriótico. Patriotismo, porém, que não era ainda o brasileirismo
estreme, senão um sentimento misto, comum a todos esses poetas, de lealdade
portuguesa e de amor à terra natal, sentimento que se dividia entre a nação,
que era Portugal, e a pátria, que era o Brasil.
Sobre ser impertinente fazer do
descobrimento da Bahia, ou ainda do Brasil, uma epopeia, à luz da estética não
era muito melhor que o de Basílio da Gama o tema de Durão. Tinha, porém, sobre
o daquele a vantagem do maior recuo do tempo, menor precisão ou maior incerteza
histórica, dando ao poeta ensanchas a desenvolvimentos em que aproveitou a História do Brasil do descobrimento ao
governo-geral e ainda a previsão da luta contra os holandeses. Como todos
sabem, o assunto do poema do episódio meio histórico, meio lendário, do
naufrágio do aventureiro português Diogo Álvares Correia, que, soçobrando nas
costas orientais do Brasil, justamente no recôncavo da Bahia, escapou do
naufrágio e caiu nas mãos dos índios que aí havia. Guardado para servir-lhes de
repasto, conseguiu esquivar a sua triste sorte e dominar-lhes com o pavor que
lhes causou matando no voo um pássaro, e fazendo outras façanhas com um arcabuz
que acertara salvar da catástrofe. Sobre esse fato verossímil, e que se teria
repetido entre navegadores e selvagens, ignorantes das armas de fogo, bordou a
imaginação popular circunstâncias e acrescentou desenvolvimentos que a história
mais tarde, por mão do operosíssimo Varnhagen, provaria lendários, como a viagem
de Diogo Álvares à França em companhia da gentia Paraguaçu, sua noiva, o
batismo desta em Paris e o casamento deste casal, sendo padrinhos em ambas as
cerimônias Henrique II e a sua mulher, a célebre Catarina de Médicis, que deu o
seu nome à sua exótica afilhada. Diogo Álvares, dizia a lenda, perfilhada pelos
cronistas, recebeu dos índios, por causa da arma flamante com que dava a morte,
a alcunha de Caramuru. Este nome, que
é simplesmente o de um peixe, e que lhe deram por o terem apanhado no mar, a
nossa fantasia etnológica o interpretou de vários modos, todos evidentemente
falsos. Não havia aliás em Diogo Álvares, nem houve nos seus atos, os
predicados de um herói de epopeia, e a mesma lenda não lhos dá. Nem o poeta
lhos soube emprestar que os relevassem.
Pela sua concepção e execução era
o Caramuru, mais do que o Uraguai, um dos muitos poemas saídos da
fonte camoniana. Sem embargo desta falta de originalidade inicial, da mesma
forma e estilo poético, e de reminiscências do poema de Camões, tem o Caramuru qualidades próprias e
estimáveis. Como poema nacional leva a primazia ao Uraguai, apesar da sua inferioridade poética. Além da intenção
manifesta que o gerou como a epopeia do descobrimento do Brasil, é o Caramuru mais nosso pela sua ação e
teatro dela, o Recôncavo, o berço por assim dizer da nacionalidade que se ia
criar aqui, e ainda pelos múltiplos testemunhos do seu interesse e amor do
país. Descreve-o e conta-o Durão já com o desvanecimento de sua grandeza e
excelência e a previsão de seus altos destinos. Estes, porém, se lhe não
antolhavam ainda na formação de uma nacionalidade distinta, mas apenas no
concurso decisivo que a sua pátria de nascimento traria à restauração da
grandeza da nação cuja era parte
O Brasil aos lusos confiado
Será, cumprindo os fins do alto destino,
Instrumento talvez neste hemisfério
De recobrar no mundo o antigo império.
Infelizmente o modo, imposto pelo
seu estado de frade, e frade de bons costumes, por que tratou o drama amoroso,
e que serve de núcleo ao seu poema, privou-o de dar-lhe a emoção que nos
poderia ainda comover. Gravíssima falta de senso estético foi o fazer de Diogo
Álvares e Paraguaçu, o aventureiro português e a índia sua namorada e depois
sua mulher, um casal de castos amantes. É uma situação contra a natureza,
contra os fatos, contra a verossimilhança, e mais que tudo inestética. Não se
imagina um rude aventureiro português do século XVI, ardente e voluptuoso,
quais se mostraram na conquista, na situação singular, e como quer que seja
esquerda, descrita por Durão, com uma formosa índia, moça e amorosa, em meio
desta natureza excitante e dos fáceis costumes indígenas, e sem nenhum estorvo
social, comportando-se qual se comportou o seu, isto é, como um santo ou um
lendário cavaleiro cristão, e a reservando, num milagre de continência, para
sua esposa segundo a Santa Madre Igreja e ainda em cima doutrinando-a que nem
um missionário profissional sobre as excelências da castidade. Não obstante o
seu profundo catolicismo, Camões não caiu neste erro, e ao contrário enalteceu
o seu poema com os conhecidos passos de uma tão artística voluptuosidade.
Como o Uraguai, o Caramuru
insinua o americanismo na poesia portuguesa, abre aos índios e às coisas
indígenas maior espaço na brasileira do que o fizera aquele, e funda o primeiro
indianismo. Não os acompanharam os outros poetas do grupo. Nestes mesmos,
porém, sentimentos e inspirações mais nativos e mais nativistas do que até aí,
as suas repetidas alusões ou referências a coisas pátrias, a nostalgia dela em
alguns deles entremostrada, procedem incontestavelmente de Basílio da Gama e
Durão, mormente do primeiro, do qual há claras impressões em quase todos estes
poetas. Durão parece não os haver tocado tanto. Não se encontram
reminiscências, e menos memória deles, em seus poemas. É que o seu trazia ainda
muito da velha fórmula que o arcadismo desses poetas menosprezava. Sem embargo
do propósito patriótico de Durão, e das manifestações eloquentes do seu
brasileirismo, eles, mais artistas que patriotas, lhe preferiram, como nós hoje,
Basílio da Gama, a quem Cláudio da Costa, Alvarenga Peixoto e Silva Alvarenga
louvaram com admirativa estimação e imitaram, mostrando sentirem o que de novo,
inspirado e alto havia no seu gênio.
A três dos representantes da
plêiade mineira, Cláudio da Costa, Alvarenga Peixoto e Tomás Gonzaga, tem sido
atribuído o poema satírico das Cartas
Chilenas, composto em Minas, na segunda metade do século XVIII. É mais que
uma sátira, uma diatribe contra o governador D. Luís da Cunha Menezes e sua
administração. Ele figura como o herói burlesco sob o pseudônimo de Fanfarrão Minésio. Fingem-lhe a ação e
sucessos passados em Santiago do Chile, nomes que, conforme já notara
Varnhagen, cabem no verso tanto como Vila Rica e Minas.
Escrito em forma de cartas
dirigidas por um tal Critilo e certo Doroteo, ambos poetas, tem este poema, se
assim se lhe pode chamar, real valor literário. Saíram à luz pela primeira vez,
em edição da revista Minerva Brasiliense,
no Rio de Janeiro, em 1845, em número de sete. Deu uma segunda, mais completa
do que esta, com treze cartas ou cantos, a Livraria Laemmert, desta cidade, em
1863. Dirigiu-a Luís Francisco da Veiga, autor conhecido de vários estimáveis
trabalhos históricos, o qual, entre os papéis de seu pai, encontrara um
manuscrito do poema. Nesse manuscrito, que aliás não era um autógrafo, ocorre a
assinatura de Tomás Antônio Gonzaga, sob a data: Vila Rica, 9 de fevereiro de
1798, no fim da dedicatória em prosa, que precede imediatamente o
"Prólogo" igualmente em
prosa. O pai do editor literário, Saturnino da Veiga, ainda
contemporâneo daqueles poetas, o acreditava de Gonzaga. O primeiro editor das Cartas Chilenas, o escritor chileno aqui
residente e redator da Minerva
Brasiliense, Santiago Nunes Ribeiro, com a sua edição publicara um outro
testemunho da autoria de Gonzaga. É o de Francisco das Chagas Ribeiro, abonado
por Nunes Ribeiro como "ancião entusiasta da literatura brasileira,
depositário de muitos dos seus tesouros e cujo testemunho, se não é
irrecusável, é muito poderoso e digno de respeito". (Apud Cartas Chilenas, edição Laemmert,
introdução de L. F. da Veiga). Francisco das Chagas Ribeiro, sobre o qual se me
não deparou outra informação, pôs no seu manuscrito esta declaração:
"Tenho motivos para certificar que o Dr. Tomás Antônio Gonzaga é o autor
das Cartas Chilenas". E assinou.
Estas duas atribuições, por
sujeitos ainda contemporâneos do poeta, e ao que parece respeitáveis,
bastariam, em boa crítica, para dirimir a questão, se não houvesse contra elas
valiosos testemunhos ou documentos.
Depois de estudo mais atento das Cartas, eu, que de primeiro não
acreditava fossem de Gonzaga, pendo hoje a crer que dele são, e não vejo razão
entre as muitas dadas, que prevaleça contra a atribuição que de sua autoria lhe
fazem Saturnino da Veiga e Chagas Ribeiro. Ao contrário, militam a favor do seu
testemunho os seguintes motivos: a) pelo seu valor literário e poético (que é
muito maior do que se tem dito) não podem essas Cartas ser senão de algum dos
poetas conhecidos que viviam em Minas na época da sua composição, não sendo
provável a existência de nenhum outro capaz de as escrever e que ficasse de
todo incógnito; b) esse poeta devia reunir duas condições, manifestas no
contexto do poema: ser português e ser inimigo rancoroso do governador
satirizado. Que o autor das Cartas
Chilenas é português de naturalidade mostram-no os versos 5 e 15 da pág.
149 da edição Laemmert, em que positivamente alude à sua vinda da Europa e ao
seu nascimento em
Portugal. Revela-se ainda português nas suas várias alusões
todas pouco simpáticas à terra e às suas coisas, e em que, atacando
acrimoniosamente o governador e a sua administração, não malsina jamais do
regime ou do governo colonial. Revê-se ainda o reinol, branco estreme e de
categoria fina, na sua manifesta antipatia aos mulatos, a quem não perde ensejo
de apodar (págs. 106, 203, 312 e passim).
A sua linguagem nimiamente castiça, de boleio de frase e vocabulário muito de
Portugal, e outros sinais idiomáticos que uma análise miúda revelaria, traem
também o português. Ora, como o único português do grupo era Gonzaga, a ele se
deve atribuir o poema, onde aliás se encontram pensamentos, imagens e
expressões que coincidem com as da Marília
de Dirceu. (Cp. pág. 100: "Que importa que os acuses..." com a
lira XXXVI da 1ª parte).
As Cartas são evidentemente de um inimigo acérrimo do governador, a
quem não poupam as mais terríveis acusações e convícios. Ora, dos três poetas
que somente podiam ser os seus autores, e únicos a quem têm sido atribuídas, só
Gonzaga era sabidamente inimigo dele. Alvarenga Peixoto, ao contrário, é um
favorecido, um protegido de Cunha Menezes, que o fez coronel, honraria que o
desvaneceu mais que o seu título de doutor, e lhe concedeu adiasse o pagamento
de certa dívida à Fazenda Real.
Cláudio era personagem quase
oficial, ligado ao governo da Capitania, que por duas vezes (1762-1765 e
1769-1773) secretariara, era já setuagenário, idade menos apropriada às
violências da sátira. Gonzaga, ao contrário, como ouvidor da comarca e deputado
à Junta de Fazenda, achou-se em conflito com aquele governador, quando foi da
arrematação do Contrato das entradas no triênio de 785 a 787, em que Cunha Menezes
"de sua própria particular autoridade", segundo o Ministro do Reino,
Martinho de Melo e Castro (V. Rev. do
Inst., VI, 54 e seg.) e contra o voto fundamentado de Gonzaga, mandou
adjudicar ao seu protegido José Pereira Marques, o Marquesio das Cartas Chilenas, aquele contrato. Foi
esta questão do contrato das entradas, em que, talvez, tanto o governador como
o ouvidor estavam empenhados por martes diversas, que criou a recíproca
hostilidade de Cunha Menezes e Gonzaga, e principalmente motivou as Cartas Chilenas, e que fez o poeta
tomá-lo "entre dentes", segundo a sua expressão, muito portuguesa, do
início da 4ª. E a 8ª é inteiramente consagrada à prevaricação do governador em
contratos e despachos, de que o poeta o acusa e malsina quase com as mesmas
razões e palavras que a Gonzaga ouvidor atribuiu o Ministro Melo e Castro no
documento acima citado. Repetirei que é notável que, maldizendo este poema tão
afrontosamente do governador e da sua roda, jamais deixa perceber o menor
sentimento de desgosto da metrópole e do regime colonial. Um português qualquer
poderia aliás deixá-lo transparecer; não o podia Gonzaga, que, como magistrado
reinol e vogal da Junta da Real Fazenda, fazia parte conspícua do governo da
Capitania. Não obstante esta sua cautela, só a sua autoria conhecida, ou
desconfiada, de tão terrível libelo contra um recente governador e vários
funcionários seus parciais explica que ele fosse, contra a sua manifesta
inocência, comprometido numa conspiração, se conspiração houve, de que tudo –
os seus sentimentos de português, a sua lealdade de funcionário, o seu
interesse pessoal e a sua situação de noivo amorosíssimo – forçosamente o
afastava. O argumento de que o poeta sentimental e mimoso de Marília não podia escrever aquelas
violentas Cartas, de virulenta
sátira, roçando às vezes pela obscenidade, é de uma pobre psicologia,
contradita por mil exemplos da história literária.
Todos os poetas deste grupo, o
que talvez se não reproduza mais na história da nossa literatura com qualquer
dos grupos literários que nela possamos distinguir, além do estro, tinham a
mais completa cultura literária do tempo. Todos fizeram com aproveitamento as
suas humanidades, todos, exceto Basílio da Gama, tinham o seu curso
universitário, eram doutores em leis ou cânones. Todos parecem a par do saber
da sua época, ao menos do que, sem estudos especiais, se adquire com aquela cultura.
Os brasileiros do grupo todos saíram do seu país, estanciaram largos anos em
Portugal e alguns, como Durão e Basílio, estiveram em Espanha e Itália. Liam os
enciclopedistas franceses. Quase todos, além do latim, sabiam o grego, e de
ambas as línguas versavam os poetas no original. Durão, afora essas duas
línguas clássicas, sabia o hebraico. A todos eram familiares os escritores
antigos, particularmente os poetas, e os principais escritores e poetas
modernos, italianos, franceses e espanhóis, e ainda alguns ingleses. Cláudio da
Costa poetava em italiano, acaso não menos excelentemente que em português, e o
podia fazer ainda em castelhano e francês; traduziu Voltaire e cantou a Milton.
Basílio da Gama também traduziu Voltaire.
Conheceram-se, trataram-se, foram
camaradas ou amigos quase todos. Ligou-os o sentimento da pátria comum, o mesmo
amor às letras, a irmandade do estro, e mais, o mesmo espírito liberal, comum a
todos e manifesto na obra de todos. Silva Alvarenga compreendia e admirava a
Basílio da Gama e o cantou com entusiasmo, pode dizer-se patriotismo. Cláudio
da Costa, com igual entusiasmo, consagrou uma ode aos árcades seus patrícios e
endereçou poemas a Alvarenga Peixoto. Serviu também de centro não só a este e a
Gonzaga, mas a outros menores que poetavam em Vila Rica , que todos,
segundo a verídica tradição, lhe submetiam ao saber e experiência os seus
versos. Gonzaga alude carinhosamente em suas liras a Cláudio e a Alvarenga
Peixoto, seus íntimos. Naquela época de acesa briga de poetas, se não sabe que
hajam os nossos entre si brigado.
Todas essas coincidências e
circunstâncias não foram certamente alheias à constituição deste grupo de
poetas e à feição e distinção que os assinalam na nossa literatura e ainda na
poesia portuguesa. Para alguns deles ao menos, a sua justa celebridade foi
grandemente ajudada, sem quebra aliás no seu merecimento, pelos desgraçados
sucessos em que foram envolvidos. Aureolando-os de martírio, não serviriam
pouco, e justo é que assim fosse, à sua glória de poetas.
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Imagens:
Hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital
http://memoria.bn.br/
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Hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital
http://memoria.bn.br/
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