O teatro e a
literatura dramática
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
Senão como literatura, como
espetáculo data o teatro no Brasil do século do descobrimento. Foram seus
inventores ou introdutores aqui os jesuítas. Na sua obra de catequese e
educação, a mais inteligente sem dúvida que jamais se fez, recorriam esses
padres, desde a Europa, a todos os recursos, ainda os mais grosseiros, de
sugestão. Desses foram as grandes solenidades, meio profanas, meio religiosas,
dos seus colégios, com representações, recitações, cânticos e danças e
espetáculos a que já podemos chamar de teatrais. Mediante estes, os seus mais
rudes palcos achariam acaso ouvintes mais caroáveis que o seu púlpito.
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Desde o século XVI, na citada Narrativa epistolar de Fernão Cardim e
em outros cronistas, no século XVII, nos longos títulos dos poemas de Gregório
de Matos e em mais de um noticiador do Brasil de então, e com frequência maior
nos cronistas do século XVIII, encontram-se notícias desses espetáculos, que
uma crítica incompetente pretendeu arvorar em início do nosso teatro.
Desses talvez o primeiro de que
há notícia foi o que o Padre José de Anchieta realizou em São Vicente, em 1555,
fazendo representar por índios seus catecúmenos e portugueses, em tupi, e em
português, o auto da Pregação universal,
ruim arremedo dos "autos de devoção" que se representavam no Reino,
dos quais o contemporâneo Gil Vicente deixou os melhores exemplares.
Mas nem esse pobre auto, nem
outros que se lhe seguiram, representados em estabelecimentos jesuíticos ou
alhures, não são propriamente teatro no sentido da literatura dramática. Todos
eles desapareceram sem deixar prole, nem sequência.
As representações ou espetáculos
teatrais, que aqui mais tarde se viram, e de que há notícias desde os meados do
século XVIII, de comédias, entremezes, momos, loas, portugueses e espanhóis,
ou, quem sabe? já produto colonial, nenhuma afinidade teriam com os autos
jesuíticos ou quejandos. Desde, pelo menos, a segunda metade do século XVIII
que em festas públicas celebradas por ocasião da exaltação ao trono de reis
portugueses, ou de nascimentos, desposórios principescos, se faziam aqui
representações teatrais, em geral de peças espanholas, como também sucedia na
metrópole. Em 1761, na Bahia, por motivos dos esponsais da futura D. Maria I,
foi representado um Anfitrião, acaso
o mesmo do nosso engenhoso e desgraçado patrício Antônio José.
Destas representações, e sempre
por idênticos motivos, em outras partes do Brasil, ainda em antes da fundação
da Casa da Ópera no Rio de Janeiro, em 1767, se encontram notícias nas crônicas
e relatos contemporâneos. Se não é ainda possível asseverar que Alvarenga
Peixoto, um dos poetas da plêiade mineira, tenha de fato composto um drama Eneias no Lácio e traduzido a Mérope, de Maffei, e, menos ainda, que
por volta de 1775 estes se hajam representados na referida Casa da Ópera, não parece duvidoso que outro poeta do mesmo grupo,
Cláudio Manoel da Costa, tenha composto "poesias dramáticas" que,
segundo declaração sua, se tinham "muitas vezes representado nos teatros
de Vila Rica, Minas em geral e Rio de Janeiro" e feito "várias
traduções de dramas de Metastásio".
Nesses teatros, de existência
forçosamente precária, e atividade esporádica e intermitente, eram
principalmente, tal qual como em Portugal, peças espanholas que se
representavam. Quando ele começou, já ali mesmo se não representava mais Gil
Vicente. O teatro português vivia de peças estrangeiras, e menos de entremezes
e óperas nacionais – alguma coisa como o moderno vaudeville francês – sendo as principais e melhores destas as do
Judeu, cuja popularidade foi grande e que, sem o nome do seu malogrado autor,
se representavam frequentemente no Reino, e porventura também no Brasil. Este
teatro, pois, de brasileiro só tem a circunstância de estar no Brasil. O teatro
brasileiro propriamente dito, de autores, peças e atores brasileiros ou
abrasileirados, que fosse já um produto do nosso gênio e do meio, é, por assim
dizer, de ontem. Pode existir quem o tenha visto nascer.
Como simples curiosidade
histórica, uma história exaustiva de teatro brasileiro, compreendendo o
espetáculo e a literatura, podia, porventura devia, recordar essas primeiras
representações. Nessa relação caberiam os autos, diálogos, loas e quejandos
espetáculos dados nos estabelecimentos jesuíticos e em festividades públicas ou
particulares nos tempos coloniais. Há para tal notícia material bastante em
documentos contemporâneos. Não existe, porém, um só de literatura dramática,
por onde possamos avaliar-lhe a importância e mérito. Os primeiros que
apareceram são de 1838 para cá, os dramas ou tragédias de Magalhães e as
comédias ou farsas de Martins Pena.
Foi o Romantismo, com o qual se
iniciou o que já podemos chamar de literatura nacional, o criador também do
nosso teatro. Este ficou de todo estreme de qualquer influxo daquelas remotas
e, pode dizer-se, ignoradas representações coloniais. Na sua primeira fase
produziu o Romantismo Gonçalves de Magalhães e Martins Pena, e logo depois
Macedo e José de Alencar. Simultaneamente apareceu aqui um grande ator que, com
seu nativo talento e ardor pela arte dramática, realizou no palco, mediante
companhias em que chegou a interessar os mesmos estadistas do tempo e outros
conspícuos cidadãos, e com aplauso e colaboração do público, o teatro
brasileiro. O nome desse ator, João Caetano (+ 1863), chegou até nós com tal
auréola de admiração e de glória, tão saudosamente lembrado, que se lhe
dispensa a biografia ou mais positivos testemunhos do seu valor real. A
impressão que ele causou nos seus contemporâneos, impressão profunda e
duradoura, basta para assegurar-lhe a primazia na realização cênica daqueles e
doutros autores e, portanto, na criação de "teatro" aqui.
Como literatura, o seu criador
foi, segundo vimos, Gonçalves de Magalhães, com o seu Antônio José ou o poeta e a Inquisição, tragédia em verso, em 5
atos, representada pela primeira vez por João Caetano e sua companhia, no seu
teatro da Praça da Constituição (depois Teatro de São Pedro de Alcântara) em 13
de março de 1838. Esta data asseguraria a Magalhães e ao Brasil a prioridade do
teatro romântico na literatura da nossa língua. A peça com que Garrett
inaugurou o moderno teatro português, Um
auto de Gil Vicente, foi representada em Lisboa quatro meses depois da do
nosso patrício. Esta prioridade, porém, pouco mais é que cronológica. O drama
de Garrett, sobre ter outro valor literário, é bem mais romântico do que a
tragédia de Magalhães. Aproveita, entretanto, a primazia da data, para
comprovar que não foi de Portugal que Magalhães recebeu o impulso renovador, e
portanto que o nosso Romantismo, por ele inaugurado na poesia com os Suspiros poéticos (1836), compostos e
publicados no foco do romantismo latino, Paris, se originou de outras fontes
que a portuguesa.
Magalhães como Porto Alegre, seu
amigo e êmulo nesta renovação, não eram por temperamento e índole literária
dois verdadeiros românticos, quanto o seriam por exemplo Gonçalves Dias e
Alencar. Foram-no antes de estudo e propósito que de vocação. A sua íntima
característica literária seria antes o pseudoclassicismo ou o serôdio arcadismo
do fim do século XVIII e princípio do XIX em Portugal e alhures, e do qual
Ponsard, em França, era no teatro o mais eminente representante. Quando o
Romantismo francês proclamava a falência ou esgotamento da tragédia,
substituindo-a pelo drama em que os elementos da comédia se misturavam ao
patético do teatro trágico, Magalhães escrevia tragédias feitas ainda segundo
as clássicas regras aristotélicas. De fora parte a sobriedade austera dos
grandes moldes gregos, seguidos por Ferreira e Racine, e a inferioridade do seu
estro, renasciam estas no palco de São Pedro de Alcântara, ao gesto poderoso de
João Caetano. Eram, porém, antes uns arremedos da tragédia clássica do que o
verdadeiro drama romântico qual o conceberam Schiller e Hugo. Trasladando para
o nosso teatro, e poderíamos dizer para o teatro português, o drama
shakespeariano, que é o mais remoto e ilustre avoengo do Romantismo, fazia-o
Magalhães das descoradas versões com que Ducis amaneirou ao gosto francês o
teatro de Shakespeare. Mas Antônio José
ou o poeta e a Inquisição, que pelo tema moderno, pelo espírito liberal e
sobretudo pelo título é bem romântico, Olgiato,
que o é de inspiração e expressão, e o mesmo Otelo, deviam ficar na nossa literatura dramática, se não no nosso
teatro, como bons exemplares da nossa obra literária nesse gênero. O
importante, porém, estava feito, um belo exemplo estava dado, uma fecunda
iniciativa realizada, e não sem superioridade. Atores brasileiros ou
abrasileirados, num teatro brasileiro, representavam diante de uma plateia
brasileira entusiasmada e comovida, o autor brasileiro de uma peça cujo
protagonista era também brasileiro e que explícita e implicitamente lhe falava
do Brasil. Isto sucedia dezesseis anos após a Independência, quando ainda
referviam e bulhavam na jovem alma nacional todos os entusiasmos desse grande
momento político e todas as alvoroçadas esperanças e generosas ilusões por ele
criadas. Nada mais era preciso para que na opinião do público brasileiro, em
quem era ainda então vivo o ardor cívico, aquele teatro com os que nele oficiavam
como autores e atores, tomasse a feição de um templo onde se celebrava
literariamente a pátria nova.
Martins Pena, como aliás todos os
românticos, aproveitou deste sentimento. A individualidade que certamente
tinha, a sua originalidade nativa, em uma palavra a sua vocação, livraram-no,
porém, de ceder ao duplo ascendente de Magalhães e de João Caetano, e fizeram
dele o verdadeiro criador do nosso teatro. Mais porventura que a Magalhães,
assegura-lhe este título a cópia de peças que escreveu e fez representar, quer
pela cena, quer pela imprensa, e, sobretudo, o seu muito mais acentuado caráter
nacional. Por tudo isso a obra teatral de Martins Pena certamente influiu mais
no advento do teatro nacional que a de Magalhães.
Luís Carlos Martins Pena nasceu
no Rio de Janeiro a 5 de novembro de 1815 e faleceu em Lisboa a 7 de dezembro
de 1848. A
sua instrução parece não ter tido método nem sequência. Passou pela Aula de
Comércio então existente, e pela Academia de Belas-Artes. Estudou línguas
estrangeiras e completou consigo mesmo os seus estudos. Cultivou também a
música, que o ajudaria na composição dos couplets que lhe exornam as peças. Foi empregado público em dois ministérios e mais
tarde adido à legação brasileira em Londres, onde esteve quase um ano. Dando-se
mal com o clima londrino, veio já bastante doente para Lisboa e aí faleceu
apenas passado um mês. Seria, pois, mais culto e mais instruído pela frequentação
de sociedades mais civilizadas que a da pátria do que o deixam supor as suas
comédias. Não se lhe vislumbra na obra conhecida nada que revele algo de gênio
teatral inglês ou da literatura inglesa, nem de qualquer outra. A sua graça,
pois a tem em quantidade, é já a resultante da fusão aqui da chalaça portuguesa
com a capadoçagem mestiça, a graçola brasileira, sem sombra da finura do
espírito francês ou do humor britânico. Esta sua imunidade, como a já
verificada ao prestígio de Magalhães e João Caetano, a despeito da predileção
pública pelo dramalhão e pela tragédia, está atestando a individualidade própria,
a inspiração nativa, a originalidade de Martins Pena.
Estreando no teatro após o grande
sucesso de Magalhães, servido por João Caetano, e os vários triunfos por este e
seus companheiros alcançados com os dramalhões românticos, e sem lhe dar da
voga deste teatro, antes seguindo o seu gênio e vocação, como deve fazer todo o
artista sincero, Martins Pena começa e prossegue com a comédia. Ingenuamente,
desartificiosamente, com observação sem profundeza, mesmo banal mas exata e
sincera, traz para o teatro – pela primeira vez, note-se, porque o seu sucesso
explica-o a só novidade do seu feito – a nossa vida popular e burguesa e
quotidiana do tempo. Evidentemente não tem presunções nem propósitos literários
como os teve Magalhães; apenas vê claro, observa com atenção e reproduz
fielmente, com a naturalidade em que se revela o escritor de teatro. E Martins
Pena não é senão isto, um escritor de teatro. Do autor dramático possui, em
grau de que se não antolha outro exemplo na nossa literatura, as qualidades essenciais
ao ofício e ainda certos dons, que as realçam: sabe imaginar ou arranjar uma
peça, combinar as cenas, dispor os efeitos, travar o diálogo, e tem essa
espécie de observação fácil, elementar, corriqueira e superficial, mas no caso
preciosa, que é um dos talentos do gênero. Não raro tem o traço psicológico do
caricaturista, e o jeito de apanhar o rasgo significativo de um tipo, de uma
situação, de um vezo. Possui veia cômica nativa, espontânea e ainda abundante,
infelizmente, porém, (defeito desta mesma virtude) com facilidade de se
desmandar na farsa. Martins Pena e Manoel de Almeida, o singular e malogrado
autor das Memórias de um sargento de
milícias, são porventura os melhores, se não os únicos, exemplos de
espontaneidade literária que apresenta a literatura brasileira.
A maior parte das peças de
Martins Pena são antes farsas que comédias. Independentemente dessa
denominação, que ele próprio lhes deu, a sua feição e estilo é de farsa. Ele
exagera o feitio cômico das situações e personagens, acumula o burlesco sobre o
ridículo, manifestamente no intuito de melhor divertir, provocando-lhe o riso
abundante e descomedido, o seu público. É tradição que o conseguiu plenamente.
Ainda hoje se representam as comédias de Pena com o mesmo sucesso de franca
hilaridade que lhe fizeram nossos pais. A mais de meio século de distância,
lidas ou ouvidas, deixam-nos a impressão de representarem suficientemente no
essencial e característico o meio brasileiro que lhe serviu de modelo e tema. E
só talvez delas, em todo o nosso teatro, se poderá dizer a mesma coisa.
Foi considerável, sobretudo em
relação ao tempo, a atividade literária de Martins Pena, exercida de 1838 a 1847. Além de um
romance e folhetins teatrais, de que apenas temos notícia incerta, deixou vinte
e tantas peças de teatro, das quais três dramas. Dezenove pelo menos foram
representadas e nove impressas, sendo algumas reimpressas, ainda em vida do
autor ou posteriormente. Ultimamente foram reeditadas em um só volume,
infelizmente com bem pouco cuidado editorial.
O exemplo de Magalhães e Martins
Pena frutificou. Dos românticos da primeira hora, os principais, Norberto,
Teixeira e Sousa, Porto Alegre, Gonçalves Dias, Macedo e até Varnhagen, com
fortuna e sucesso diverso, em geral medíocre, escreveram também teatro. Alguns
além de Macedo, conseguiram ver-se representados. Já fica dito da obra teatral
de cada um deles, no que ela interessa à literatura. São, porém, muitos os
autores de peças de teatro de todo o gênero escritas ou representadas nessa
fase da nossa literatura e na que imediatamente se lhe segue. Desses apenas um
ou outro nome não está de todo esquecido. Tais são os de Carlos Cordeiro,
Castro Lopes, Luís Burgain, Pinheiro Guimarães, Agrário de Meneses, Quintino
Bocaiúva, cujo teatro é de 1850
a 1870. Estes mesmos são apenas uma recordação cada dia
mais apagada, pois não concorre para avivá-la a sua obra dramática que não mais
se representa e ninguém lê.
Nesse momento, que corresponde à
segunda fase do Romantismo, as duas principais figuras do nosso teatro foram
José de Alencar e Macedo, já atrás como tais estudados. São dois talentos
diversos, dois engenhos quase opostos. Há mais arte, mais gravidade, maior
sentimento e respeito da literatura no primeiro que no segundo. Mas também
menos espontaneidade, menos naturalidade, menor vis comica e somenos dons de autor de teatro. Macedo é o legítimo
continuador de Martins Pena, com melhorias de composição e mais largo engenho
dramático. É, sobretudo, principalmente comparado com Alencar, um autor burguês
e para a burguesia, se é lícito o uso de tais expressões aqui. Na representação
da vida burguesa, ou antes da vida medíocre brasileira, nos deixou Macedo no
seu teatro, como no seu romance, de parte os seus nunca emendados defeitos de
linguagem e estilo, exemplares estimáveis. Geralmente tem as suas peças boas
qualidades teatrais, e há atos seus, como o primeiro de Luxo e vaidade, excelentes. A
torre em concurso, que criou o tipo popular do capitão Tibério, embora
descambe na farsa, tem todo o sabor de uma crítica hilariante feita às nossas
brigas políticas, das quais é ótimo retrato. Nesta, como na maioria de suas
peças, mormente nas estremes de presunções literárias e portanto mais
espontâneas e naturais, enredo, tipos, situações, expressão, é tudo muito
nosso. Quaisquer que sejam as deficiências e defeitos do teatro de Macedo, a
vida brasileira ou mais propriamente a vida carioca do seu tempo, acha-se nele,
como aliás no seu romance, sinceramente representada.
Alencar, natureza literariamente
mais fina que Macedo, ao invés deste leva para a literatura vistas de artista e
de pensador, aponta mais alto. O seu teatro não quer ser, como o de Pena ou o
de Macedo, a simples representação elementar da vida nacional. Representando-a
como melhor lhe permite o seu congênito idealismo, pretende também educar, Para
Alencar, o teatro, segundo o conceito no seu tempo incontestado, é uma escola.
Cabe-lhe a honra de haver trazido para a cena brasileira o que depois se chamou
o teatro de ideias. Mãe (1860), drama
cheio de defeitos, mas não sem intensidade e por partes belo, é uma das
primeiras manifestações literárias do sentimento nacional contra a escravidão. O crédito (1858) trouxe para o nosso
teatro a questão do dinheiro, que com Dumas Filho, começara a ser um dos temas
do teatro francês. Também as questões sociais e morais contemporâneas acham eco
ou encontram cabida no teatro de Alencar. No mais agudo da questão religiosa
aqui (1875), ele fez representar o Jesuíta,
malograda concepção de um tipo que o teatro não comportava tal qual ele o
concebeu, ao contrário não só do que parece ser a verdade, mas, o que é o
importante, do conceito vulgar do jesuíta. E é a inferioridade do teatro que
ele não comporta o que abertamente contraria esses preconceitos.
Alencar, que tinha muito menos
graça e veia cômica que Pena e Macedo, escreveu também puras comédias de
costumes, e uma delas ao menos ficou na nossa literatura teatral com a
expressão arguta e espirituosa de um grave mal da nossa sociedade, não de todo
acabado com a extinção da escravidão: a influência nefasta do moleque, da
"cria da casa", fâmulo da nossa intimidade, intrometido na nossa
vida, e que, graças à nossa proverbial bonacheirice ou desleixo e aos nossos
costumes extremamente igualitários, toma nela uma situação desmoralizadora do
decoro doméstico. É o Demônio familiar,
réplica indígena do criado ou lacaio da antiga comédia italiana, francesa e
ainda portuguesa, mas na de Alencar, criação original, filha somente da sua
observação, da qual, porém, nem ele nem os seus êmulos não souberam tirar todo
o proveito que porventura ela comportava.
O período da maior atividade de
Alencar e Macedo, como escritores dramáticos, vai de meados do decênio de 50
aos fins do de 70. É esse também o de mais vida do nosso teatro, quer como
espetáculo, quer como literatura dramática. Com estes dois escritores
concorreram, além de alguns dos já citados (Quintino Bocaiúva, Agrário de
Meneses, Pinheiro Guimarães e outros somenos), Augusto de Castro, Aquiles
Varejão, França Júnior, que sem notável mérito literário, tiveram entretanto
relativo e não de todo imerecido sucesso no palco.
Agrário de Menezes, baiano
(1834-1863), goza de uma reputação exagerada que a literatura da sua obra
absolutamente não justifica. O seu Calabar,
tão gabado quão pouco conhecido, como aqui muito frequentemente sucede, não lhe
abona nem a imaginação criadora, nem o estro poético. Como escritores de
teatro, mais valor têm Pinheiro Guimarães e França Júnior. Aquele como
dramaturgo, que principalmente foi, tem os mesmos defeitos de Macedo e Alencar,
com menos espontaneidade que o primeiro e pior estilo que o segundo. França
Júnior, com muito da veia cômica popular de Martins Pena, a mesma observação
superficial dos tipos e ridículos sociais, a mesma graça um pouco vulgar no
apresentá-los, carece da ingenuidade que realça o engenho de Pena. No teatro de
França Júnior sente-se o trato com o teatro cômico francês. Em todo caso, é com
Martins Pena e Macedo um dos nossos autores dramáticos ainda porventura
representáveis.
No assinalado período não só
muitos dos nossos literatos escreveram para o teatro e acharam quem lhes
representasse as peças, mas quem os fosse ouvir, o que nunca mais aconteceu. A
nossa bibliografia teatral de então é a mais copiosa de toda a nossa literatura
e para ela não concorreu somente o Rio de Janeiro, mas outras capitais
brasileiras, como Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, São Paulo, Porto
Alegre. Havia pelo teatro vernáculo, brasileiro ou português, ou estrangeiro
nacionalizado por traduções aqui feitas (e numerosas foram então as traduções
do francês), interesse e curiosidade que depois desapareceram de todo com a
concorrência do teatro estrangeiro, trazido por companhias adventícias. O
espetáculo bem mais divertido e interessante por elas apresentado foi um
tremendo confronto para o nosso teatro, que também não tinha mais para
ampará-lo aquele antigo ingênuo sentimento nativista, que tanto aproveitara aos
iniciadores do nosso teatro e da nossa literatura em geral. Ao contrário com
o desenvolvimento das nossas comunicações com a Europa pela mais frequente e
mais rápida navegação a vapor, começara a prevalecer na nossa
"sociedade" o gosto exótico. Antes floresceram várias empresas
teatrais que ofereciam aos autores oportunidades de se fazerem representar e até
lhes desafiavam o engenho. Nas principais capitais do país, companhias locais
ou aventícias era certo darem em estações adequadas espetáculos com peças
nacionais, portuguesas ou traduzidas. Dos atores que as compunham escaparam
alguns nomes, famosos no seu tempo, e que ainda vivem na tradição. Além dos da
primeira hora do nosso teatro e seus fundadores, João Caetano, Florindo, Estela
Sezefreda, Costa, citam-se mais os de Joaquim Augusto, Furtado Coelho, Germano
Amoedo, Vicente de Oliveira, Eugênia Câmara, Ismênia dos Santos, Manuela Luci,
Xisto Baía, Corrêa Vasques e outros.
Produto do Romantismo, o teatro
brasileiro finou-se com ele. Parece-me verdade que não deixou de si nenhum
documento equivalente aos que nos legou o Romantismo no romance o na poesia. A
literatura dramática brasileira nada conta, ao meu ver, que valha o Guarani ou a Iracema, a Moreninha ou
as Memórias de um sargento de milícias,
a Inocência ou Brás Cubas, os Cantos de
Gonçalves Dias ou os poemas da segunda geração romântica.
O modernismo, última fase da
nossa evolução literária, nenhum documento notável deixou de si no nosso teatro
ou na nossa literatura dramática. O seu advento coincidiu com a inteira
decadência de ambos pelos motivos apontados. O naturalismo, à feição do
modernismo que poderia ter influído nesse gênero de literatura, também não
produziu nada de distinto nela. Com excelentes intenções e incontestável
engenho para o teatro, Artur Azevedo (1856-1908) não conseguiu senão tornar
mais patente o esgotamento do nosso, pela descorrelação entre a sua boa vontade
e a sua prática de autor dramático. Vencidos pelas condições em que o
encontraram, e que não tiveram energia suficiente para contrastar, Artur
Azevedo e os moços seus contemporâneos e companheiros no empenho de o reformarem
(Valentim Magalhães, Urbano Duarte, Moreira Sampaio, Figueiredo Coimbra,
Orlando Teixeira e outros) sem maior dificuldade trocaram as suas boas
intenções de fazer literatura dramática (e alguns seriam capazes de fazê-la)
pela resolução de fabricar com ingredientes próprios ou alheios, o teatro que
achava fregueses: revistas de ano, arreglos,
adaptações, paródias ou também traduções de peças estrangeiras. Intervindo o
amor do ganho, a que os românticos tinham romanticamente ficado de todo
estranhos, baixou o nosso teatro em proporções nunca vistas, e, por uma ironia
das coisas, justamente no momento em que Artur Azevedo
e os seus citados companheiros lhe pregavam a regeneração nos jornais onde
escreviam. Uma ou outra peça de valor literário ou teatral que estes autores
fizeram não bastou para levantá-lo. O público se desinteressava, e continuava a
desinteressar-se, pelo que se chama teatro nacional. E como só acudisse àquele
teatro de fancaria, de arreglos,
revistas de ano e paródias, esses escritores pouco escrupulosos tiveram de
servir esse público consoante o seu grosseiro paladar.
Apesar da sua grande
inferioridade relativamente à ficção novelística e à poesia, o nosso teatro e
literatura dramática têm feições que não devem ser desconhecidas e desatendidas
da crítica. Durante a época romântica, foi intencional e manifestamente
nacionalista, e o foi ingênua e naturalmente, de assuntos, temas, figuras e, o
que mais é, de sentimento. Ainda imediatamente depois inspirou-o o mesmo
sentimento. Assim, as principais questões que agitaram o espírito público pelo
fim do Romantismo e logo depois a guerra do Paraguai, a questão religiosa, a da
escravidão, repercutiram no nosso teatro, quer da capital, quer das províncias.
Não são poucas as peças, comédias e dramas, a que estas questões forneceram
temas ou deram motivo. Com todos os seus defeitos, apresenta o teatro
brasileiro de 1850-1880, certos caracteres ou simples sinais que lhe são
próprios, e até lhe dão tal qual originalidade, tirada da sua mesma
imperfeição. Canhestros embora, e por via de regra imitadores do teatro
francês, os seus autores não são sempre copistas servis, e sobrelevam o seu
arremedo com um íntimo sentimento do meio, que ainda não tinha sido de todo
amesquinhado ou extraviado pelo estrangeirismo logo depois triunfante. Na
comédia, em que se mostravam mais capazes, talvez porque em Martins Pena se lhe
deparou modelo apropriado, há em geral boa observação, representação exata e
dialogação conforme as situações, personagens e fatos. Por via de regra tudo
isto falta ao drama brasileiro, que ofende sempre o nosso sentimento da
verossimilhança, à qual mais do que nunca somos hoje sensíveis, e nos deixa
infalivelmente uma impressão de artificialidade. Seja defeito da mesma
sociedade dramatizada, seja falha do engenho dos nossos escritores de teatro, é
fato que nenhum nos deu já uma cabal impressão artística da nossa vida ou
representação dela que não venha eivada de mal disfarçados exotismos de
inspiração, de sentimento e de estilo. Demasiados modismos estrangeiros de
costumes, de atos, de gestos e de linguagem a desfiguram como definição que
presumem ser dessa vida e lhe viciam a expressão literária. A nossa sociedade,
quer a que se tem por superior, quer a média, não tem senão uma sociabilidade
ainda incoerente e canhestra, de relações e interdependências rudimentares e
limitadas. Poucos e apagados são por ora os conflitos de interesses e paixões
que servem de tema ao drama moderno. Carece também ainda de estilo próprio nas
maneiras e na linguagem. Tendo perdido no arremedo contrafeito do estrangeiro,
isto é do francês, o seu caráter cômico, não adquiriu ainda feições peculiares
que lhe facultem a expressão teatral. Quanto à literária, esta é no nosso
teatro, e foi sempre, ainda mais defeituosa e insuficiente do que no nosso
romance.
Com crassa ignorância ou estólido
menosprezo da nossa história literária, estão agora mesmo tentando criar um
"teatro nacional" ab ovo,
como se nada houvesse feito antes. As amostras até agora apresentadas desta
tentativa não autorizam ainda, acho eu, alguma esperança no seu bom sucesso.
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital
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