Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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A atividade literária dos
brasileiros, na segunda fase do período colonial, particularmente na última
metade do século XVII, manifesta-se quase exclusivamente pela poesia. Aliás, em
todo esse período a literatura brasileira compôs-se em grandíssima parte de
poesia. "O Brasil foi uma Arcádia antes de ser uma nação", verificou
finalmente um crítico de meados do século passado. O que não é, no século XVII,
poesia, e poesia de bem pouca poesia, é sermão ou literatura oficial, crônicas,
relações, memoriais de caráter estilo burocrático. A natural pobreza da primeira
fase do mesmo período, da qual só ficou um nome de poeta e um poema, sucede a
sua anormal abundância na segunda metade do século XVII. Anormal pela sua
desproporção com o meio, uma sociedade embrionária, incoerente, apenas
policiada, e inculta, e anormal ainda pela sua correlação com a prosa, de todo
muda nesse momento. Relaciona a poesia quase uma dúzia de poetas. A que
atribuir-lhes a gênese?
Primeiro ao natural incentivo da
própria inspiração, inconscientemente estimulada pela tradição literária da
metrópole, sobretudo poética. A estes primeiros incitamentos juntou-se o
aumento da cultura colonial, pela educação distribuída dos colégios dos
jesuítas. Fazia-se esta principalmente nos poetas latinos lidos, comentados,
aprendidos de cor. Dessa educação, sempre e em toda a parte literária, e
apontando apenas ao brilhante e vistoso, eram elementos principais exercícios
retóricos de poesia, o que aliás não obstou a que da Companhia jamais saísse um
verdadeiro poeta, em qualquer língua. Influíam mais para a produção poética
brasileira, em época em que as preocupações eram forçosamente muito outras que
as literárias, as solenidades oficiais, celebrando faustos sucessos da
monarquia, os abadessados e outeiros desde que aqui houve conventos, isto é,
desde o fim do século XVI, as festividades escolásticas inventadas ou pelo
menos sistematicamente praticadas pelos jesuítas, quase sempre acompanhadas de
representações teatrais, das quais há notícia desde aquele século, as academias
ou assembleias de letrados que reciprocamente se liam versos e prosas – versos
sobretudo – e conversavam de letras, ainda em antes de se fundarem como
sociedades constituídas, no século XVIII. Eram tudo costumes da metrópole logo
transplantados para a colônia. Em tais festas e solenidades, como nessas
academias, havia sempre recitação de versos inspirados pelos mesmos motivos
delas e consagrados a lhes louvar os objetos ou promotores. É justamente nessas
festas que, com certeza desde os princípios do século XVIII, se verifica a
influência do indígena e do negro em costumes e práticas do Brasil e porventura
do seu sentimento no sentimento brasileiro.
Além do natural gosto de se
publicarem, e da vaidade, muito de raiz em poetas e literatos, de aparecerem e
luzirem, estimulava-os o empenho ou a necessidade de angariarem a benevolência
e a proteção dos promotores ou patronos dessas festividades ou objetos delas,
governadores, capitães-generais, capitães-mores, prelados.
Ainda em fins do século XVI
começou o descobrimento das minas de ouro, que, continuado pelo XVII e seguido
do achado dos diamantes, criou no país uma riqueza maior, mais fácil e mais
pronta que o pau-brasil, o açúcar e mais produtos indígenas da sua primitiva
exportação. Simultaneamente deu-se a interpresa dos holandeses contra a
colônia. O primeiro ouro, e até a só bem fundada esperança dele, com a cata
cobiçosa das esmeraldas, entrara a influir nos moradores, quer nativos,
mamelucos e mazombos, quer adventícios, reinóis ou emboabas, a opinião das
grandezas da terra. Disso à benquerença e orgulho dela, com a consequente
presunção dos merecimentos deles próprios seus moradores, ia apenas um passo.
Não distaria muito este sentimento de um incipiente patriotismo. De 1624 a 1654 sofrera o
Brasil, da Bahia ao Maranhão, assaltos, ocupações e conquistas dos holandeses.
Salvador, com o seu Recôncavo, fora duas vezes investida e de uma tomada.
Relativamente, na expugnação do invasor maior fora a parte dos colonos que a da
metrópole. Disso houveram eles clara consciência. Os nossos sucessos nessas
lutas, com as suas consequências políticas e sociais, e ainda morais, haviam
exaltado a nascente alma brasileira com os primeiros ardores daquele
sentimento, então apenas existente sob a forma rudimentar de apego à terra
natal, a que temos chamado nativismo. Essas lutas dão lugar a uma copiosa
literatura histórica: O valeroso Lucideno,
de Fr. Manoel Calado (1648), O castrioto
lusitano, de Fr. Rafael de Jesus (1679), as Memórias diárias, de Duarte de Albuquerque (1654) e ainda a Jornada... para se recuperar a cidade do
Salvador, do P. Bartolomeu Guerreiro (1625) e menores e menos importantes
escritos relativos a essas guerras. A esses cumpre juntar as numerosas
genealogias que posteriormente a essa época se começaram a escrever, umas hoje
publicadas, outras ainda inéditas, provando histórias e genealogias o acordar
de uma consciência coletiva nos naturais da terra e a satisfação que a si mesmo
se queriam dar da sua valia presente e passada, e de que não era tão somenos a
sua prosápia. Não obstante todos estrangeiros, portugueses, os seus autores
falaram da terra e dos seus naturais com tanta estima e encômio que lhes
aumentara a consciência que começavam a ter de si e do seu torrão natal, por
eles defendido com boa vontade, resolução, denodo verdadeiramente admiráveis.
Não só admiráveis mas fecundos, porque principalmente desse padecer por ela
lhes viria a certeza de quanto a amavam e quanto lhes ela merecia o seu amor. O
nacionalismo brasileiro dataria daí.
Não há entretanto nos poetas
nomeados qualquer revelação formal de haverem sido estimulados por essa
exaltação patriótica. É, porém, quase inadmissível que não a tenham ainda
inconscientemente experimentado, sentindo-se, como todos os seus patrícios,
mais dignos e maiores, levantados como foram os brasileiros no próprio conceito
e até no da metrópole, pela galhardia com que em tão apertada conjuntura se
houveram. Não deve ser inteiramente fortuita a coincidência do florescimento,
mofino embora, da nossa poesia na segunda metade do século XVII sucedendo ao
nosso esforço e triunfo nas guerras com os flamengos. Apenas haverá nesses
poetas alguma esquiva referência ou alusão a tais sucessos ainda frescos. É,
porém, seguramente notável que as primeiras manifestações do nacionalismo
brasileiro sob a forma ainda primitiva do apego por assim dizer material à
terra, da ufania das suas excelências e belezas nativas, como sob a forma
grosseira da animadversão ao reinol, datem justamente de após esses
acontecimentos.
Nesse momento também a Bahia, a
cidade do Salvador e a sua comarca, berço da civilização brasileira, pátria e
domicílio desses poetas, crescera e se desenvolvera, avantajando-se a todos os
respeitos aos demais centros de população da colônia. A crer os cronistas
coevos, propensos aliás todos, pois que o hiperbólico e o pomposo estavam na
feição do tempo, ao exagero, era a cidade, desde o primeiro século da sua
fundação, uma povoação adiantada, de muita comodidade e riqueza. "A Bahia
é a cidade de El-Rei e a Corte do Brasil" – escrevia o padre Fernão
Cardim, já em 1585. Tudo é relativo. A nós hoje a Bahia se nos afigura ainda
uma cidade atrasada, de escasso conforto, comparada a outras mesmo do Brasil,
como Rio de Janeiro e S. Paulo. Como quer que seja a cidade do Salvador, na sua
extravagância e incoerência de todas as primitivas cidades americanas, meios
aldeamentos de índios, meios acampamentos militares, meias povoações civis,
aglomerações de choupanas, fortalezas, casas de moradia, residências oficiais,
todas mesquinhas e feias, era a sede do Governo-Geral e assento dos seus
membros, autoridades civis e militares, cujas funções aliás ainda se
confundiam. Dessas autoridades o maior número eram fidalgos de condição e
tratamento. Era também a sede do único bispado do país, com a sua sé e o que
ela implica de cônegos e mais dignidades. Possuía já muitas igrejas, alguns
conventos e um colégio dos jesuítas, cujas aulas quase todos os letrados do
tempo haviam frequentado. No seu tempo se fazia justamente ouvir a voz eloquente
e florida do padre Antônio Vieira e a sua palavra de um tão literário sabor.
Tinha "muitas casas sobradadas e de pedra e cal, telhadas e forradas como
as do Reino" das quais ao tempo de Gandavo, que o diz, "havia ruas
muy cumpridas e formosas". No tempo daqueles poetas teria de uns mil ou
mil e quinhentos moradores, e os seus arredores dois mil e quinhentos a três
mil. Desde meio século antes destes poetas, havia na cidade uma boa praça em
que se corriam touros, e nela "umas nobres casas" onde residiam os
governadores. Numa outra praça faziam-se cavalhadas, que, continuadas no século
XVII, Gregório de Matos devia de celebrar em suas sátiras. Não faltavam
moradores ricos de bens de raiz, peças de prata e ouro, arreios de montaria e
tais alfaias de casa, que muitos possuíam dois a três mil cruzados em joias de
ouro e prata lavrada. Mais de cem deles usufruíam rendas de mil a cinco mil
cruzados e mais, não faltando capitais de vinte e sessenta mil. Tratavam-se
grandemente. Tinham cavalos, criados e escravos. Vestiam-se, principalmente o
mulherio, com grandeza e luxo, não usando elas, "por não ser fria a
terra" senão sedas. Mesmo a gente somenos acompanhava este luxo. Os peões
usavam calção e gibão de cetim e damasco e traziam as mulheres com vasquinhas e
gibões da mesma fazenda. Eram bem arranjadas as casas, e nas mesas comum o
serviço de prata, andando as senhoras ataviadas de joias de ouro. Fernão
Cardim, descrevendo as boas recepções feitas ao visitador jesuíta e seu séquito
na Bahia e arredores, não lhe esquece nem de mencionar os grandes repastos que
lhes ofereciam e as iguarias servidas, galinhas, perus, patos, cabritos,
leitões, todo o gênero de pescado e mariscados de toda a sorte, como lhe não
esquece notar a limpeza e concerto do serviço, na maioria de prata, nem os
ricos leitos de seda, etc. Quem conhece as nossas cidades sertanejas de hoje em
dia, ou as conheceu há trinta anos ou mais, não terá dificuldade em imaginar o
que seria a Bahia dos fins do século XVI e do século XVII: um misto
incongruente de civilização e barbaria, de luxo e desconforto. Já então havia
nela uma grande população negra e mestiça. Os costumes não eram de forma alguma
austeros, antes soltos, como foram sempre os das sociedades incipientes, quando
os não continha uma severa disciplina moral, qual a dos puritanos da Nova
Inglaterra. Afora de guerrear o indígena, que às vezes ainda ameaçava a cidade
ou o Recôncavo, ou de ir atacá-lo nos seus sertões para o descer ou reduzir,
além da preocupação de agressões possíveis de estrangeiros cobiçosos do Brasil,
resumia-se a atividade daquelas populações na cultura dos engenhos de açúcar
vizinhos da cidade ou espalhados pelo Recôncavo. Mas esse trabalho como
qualquer outro, e também a granjearia dos alimentos naturais – caça, pesca,
frutos da terra, era todo exclusivamente feito por escravos, o que criava para
a população livre, indígena ou forasteira, ócio propícios aos vícios e mais
costumes. "Os encargos de consciência são muitos, escrevia o padre Cardim
ao seu Provincial, os pecados que se cometem neles (engenhos) não têm conta:
quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; (e jogando de
vocábulo com o açúcar, principal riqueza da terra) bem cheio de pecados vai
esse doce, por que tanto fazem, grande é a paciência de Deus que tanto
sofre". É também a impressão de Froger como de outros viajantes
estrangeiros, citados por Southey, que pela Bahia passaram aquele tempo. E a
obra satírica, como a mesma vida de Gregório de Matos, confirma essa
descompostura de costumes. A essa população mistura incongruente de fidalguia e
de ralé portuguesa, de negros e mulatos, e índios e mamelucos, de numerosa
soldadesca e não menos copiosa clerezia, ocupavam-na também as devoções
festivais nas sessenta e tantas igrejas da cidade e seus subúrbios.
Afora as festas de igreja, em
cuja frequência e esplendor emulariam as diversas religiões, missas solenes,
procissões, ladainhas, novenas, vias-sacras e outras da bela e rica liturgia
católica, espetáculos diletos da gente ibérica, tinha os moradores da Bahia
para diverti-los touros, não menos dela prezados, as cavalhadas, as
festividades por motivos de júbilos nacionais da metrópole, representações
teatrais dos colégios dos jesuítas ou acompanhando essas festividades, os
abadessados, obrigados aos tradicionais outeiros poéticos da península. Na
cidade e nos seus arredores era comum fazerem-se comédias. A essas
representações consagrou Gregório de Matos mais de um dos seus poemas. A
escravatura africana muito numerosa, com a facilidade e despejo de costumes
produzidos pela escravidão, a soltura da vida colonial devia dar a esses
divertimentos, a que cumpre juntar os batuques, candomblés, cateretês e outras
importações d'África, já aqui mestiçadas com quejandas de Portugal e do país,
um singular pico de talvez maior licença que a da sociedade portuguesa da
época.
Os moradores mais abonados
mandavam os filhos estudar a Coimbra, depois de os haverem feito cursar as
aulas preparatórias locais, mormente as dos jesuítas, que eram as mais
recomendadas e frequentadas. Além das matérias de religião e teologia,
estudavam-se nessas aulas o latim e sua literatura e conjuntamente a história e
geografia antigas e a mitologia. Nelas explicou e comentou Sêneca, está-se a
ver com que abuso de sutilezas e desmancho de trocadilhos, o padre Antônio
Vieira. Os jesuítas mantinham em seu colégio uma livraria, ou biblioteca como
hoje chamamos, em que certamente com livros de religião e teologia se achariam
os poetas antigos e os portugueses e espanhóis de mais nomeada e estimação. Por
citações de Botelho de Oliveira, um dos poetas maiores do grupo baiano,
verifica-se que eram aí conhecidos entre os letrados, Tasso, Marini, Gongora,
Lope de Vega, Camões, Jorge de Montmor, Gabriel Pereira de Castro. E o seriam
com certeza ainda outros, famosos naquele tempo. A educação jesuítica, quase a
única dos nossos primeiros poetas e letrados, é essencialmente formalística,
apenas vistosa, de mostra e aparato, parecendo não apontar senão a ornamentar a
memória. Não é porventura temerário atribuir-lhe a feição geral, abundante destes
estigmas, do século da decadência literária portuguesa, já bem estreada, e o
caráter incolor, e dessaborido como um tema de escolar, da primeira poesia
brasileira.
Nesta cidade e sociedade,
simultaneamente rudimentar e gastada, nasceram, criaram-se, viveram e
produziram no século XVIII os poetas que se convencionou reunir sob o vocábulo
de grupo baiano. Além de os juntar o acidente de existirem no mesmo lugar e
momento, associa-os a comunhão na mesma poética portuguesa da época. São eles,
por ordem de nascimento: Bernardo Vieira Ravasco (1617-1697), irmão do padre
Antônio Vieira; Frei Eusébio de Matos (1629-1692); Domingos Barbosa
(1632-1685); Gonçalo Soares da França (1632-1724?); Gregório de Matos, irmão de
Eusébio (1633-1696); Manoel Botelho de Oliveira (1636-1711); José Borges de
Barros (1657-1719); Gonçalo Ravasco Cavalcanti de Albuquerque, primo do outro
Ravasco (1659-1725) e João de Brito Lima (1677?). Com a só exceção de Botelho
de Oliveira, nenhum deixou livro impresso, sendo que dos outros, excetuado
Gregório de Matos, de quem existe manuscrita parte considerável da sua
produção, apenas nos restam amostras, resguardadas em antologias e repertórios
do século XVIII. Dessas amostras não podemos induzir senão o medíocre engenho
desses versejadores. Nenhuma autoriza a sentir a perda do resto. Apenas se
haveria perdido com ele mais algum sinal, como o da Ilha de Maré, de Botelho de Oliveira, da impressão da terra e dos
seus últimos sucessos nesses poetas, e, portanto, a confirmação interessante do
despontar do nosso nacionalismo.
Cento e quatro anos depois da Prosopopeia de Bento Teixeira, saía à
luz em Lisboa outro livro de brasileiro, uma coleção de poemas líricos, com
este título, muito do tempo: Música do
Parnaso em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas
com seu descante cômico reduzido em duas comédias, oferecida ao
Excelentíssimo Senhor Dom Nuno Álvares Pereira de Melo, Duque do Cadaval, etc.,
e entoada por Manuel Botelho de Oliveira, Fidalgo da Casa de Sua Majestade. Na
oficina de Miguel Menescal, Impressor do Santo Ofício, Ano de 1705, in 4º, 240 págs.
Manoel Botelho de Oliveira é o
único desses poetas cuja obra foi publicada ainda no seu tempo. Daí lhe vem a
relativa, e ainda assim muito apoucada, notoriedade. Há nessa obra, aliás num
só dos seus poemas, o primeiro sintoma de emoção estética produzida pela terra
em um dos seus naturais, e literariamente exprimida. E a expressão não é, sob
este aspecto, de todo somemos. Entre os poemas do tempo é acaso o único que ainda
leiamos com aprazimento.
Segundo a mais antiga e única
notícia que do poeta existe, Botelho de Oliveira "nasceu na cidade da
Bahia, capital da América portuguesa, no ano de 1636, filho de Antônio Álvares
Botelho, capitão de infantaria paga, fidalgo da Casa de Sua Majestade. Estudou
na Universidade de Coimbra jurisprudência cesárea (direito romano), exercitando
na sua pátria a advocacia das causas forenses por muitos anos com grande
crédito da sua literatura. Foi vereador do Senado da sua pátria e capitão-mor
de uma das comarcas dela. Teve grande instrução da língua latina, castelhana,
italiana, como também da poesia, metrificando com suavidade e cadência. Faleceu
a 5 de janeiro de 1711".
O livro de Botelho de Oliveira, a
primeira coleção de poesias publicada por brasileiro, contém, afora os poemas
em português, espanhol, latim e italiano (os quatro coros de rimas a que alude
o título), duas comédias em castelhano: Hay
amigo para amigo e amor - engaños y zelos, das quais a primeira parece
havia já sido impressa antes de sair novamente no volume Música do Parnaso.
Não há neste principal documento
dos começos da nossa poesia, ou melhor, da poesia portuguesa no Brasil,
distinção notável, é pobre de sentimento e inspiração. A língua, como a
metrificação, é correta, ainda boa, se bem não escapem ambas aos vícios e
defeitos do tempo. O chamado catálogo da Academia de Lisboa inclui a Música do Parnaso nos livros que se
haviam de ler para a organização do dicionário da língua, projetado pela mesma
Academia. Os poemas, sonetos, canções madrigais e quejandas composições nas
fórmulas da poética em moda, ou são laudatórios, endereçados a diversas
personagens, geralmente próceres da república, por vários motivos, nenhum
bastante comovente para inspirar um poeta, ou são versos de amor, mas do amor
obrigatório dos poetas, versos frios, sem paixão, a certa Anarda, a amante
proverbial que lhos inspira. Também os há simplesmente galantes, endereçados a
outras damas ou a conta de outras: Pintura
dos olhos de uma dama, pintura de uma dama namorada de um letrado e
quejandos... O nosso cronologicamente primeiro lírico (já que Bento Teixeira
presume-se de épico) não foi, pois, senão um correto e vernáculo versejador
como os teve a nossa língua às dezenas na mesma época e depois. Esta sua obra
poética apenas lhe daria direito a uma menção na história da nossa literatura,
como um nome desvalioso e desinteressante à sua evolução não fora o acidente
feliz do seu poema A Ilha de Maré, que unicamente o salva de
um esquecimento completo e merecido. Ao inconsciente estímulo do nativismo,
gerado dos acontecimentos no meio dos quais nasceu e se fez homem, sentiu-se um
dia Botelho de Oliveira sinceramente tocado pelas belezas e dons do seu torrão
natal, e sob esta comoção cantou-o ingenuamente, caso então extraordinário, e
não sem lindeza. Aquela insignificante ilha da baía de Todos os Santos,
provavelmente o seu berço, não podia conter ela só tanta coisa como ele lhe põe
no poema em que a celebra, tantas e tão boas prendas. É a sua Bahia, é o mesmo Brasil,
que o poeta embevecido resume na sua ilha natal e que, cantando-a, canta com
manifesta satisfação e ufania:
Esta ilha de Maré, ou de alegria
Que é termo da Bahia
Tem quase tudo quanto o Brasil todo,
Que de todo o Brasil é breve apodo.
Dele embevecido faz já, o que é a mesma marca do nativismo brasileiro, ingênuas comparações desfavoráveis a Portugal e à Europa, dando a primazia à sua terra:
Tenho explicado as fruitas e legumes
Que dão a Portugal muitos ciúmes;
Tenho recopilado
O que o Brasil contém para invejado
E para preferir a toda a terra.
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Este poema, que pode ainda hoje ser lido com aprazimento, graças ao seu pitoresco, à sua cor local e simplicidade, inicia na poesia brasileira o seu tocante sestro de cantar a terra natal. Meio século depois, Santa Rita Durão pouco mais fará que repetir e desenvolve com mais largo estro e mais advertido sentimento, a inspiração da Ilha de Maré, quando no canto VII do Caramuru celebra as riquezas naturais e produções do Brasil.
Esta emoção, que não é mais a
simples impressão da terra do versejador da
Prosopopeia, Botelho de Oliveira foi o primeiro a exprimi-la. Outro poeta
baiano, o Anônimo Itaparicano, a repetiria no século XVIII, e ela nunca mais
desapareceria da poesia brasileira. Antes permaneceria nesta como uma das suas
emoções mais peculiares e um dos seus mais comuns motivos de inspiração,
concorrendo para dar-lhe as feições que pouco a foram distinguindo da
portuguesa. Justamente no momento em que, com o Romantismo, a separação entre
as duas literaturas se estabelece e acentua, o maior poeta brasileiro,
Gonçalves Dias, lhe achará a forma definitiva e sublime na sua ingenuidade, na Canção do Exílio. E apenas haverá poeta
no nosso Romantismo em que se não ouça essa nota amorável da terra pátria.
Botelho de Oliveira é, com a sua Ilha de Maré, o mais frisante exemplo,
em nossa primitiva literatura, ao conceito da gênese do sentimento brasileiro
após os sucessos da primeira parte do século XVII, os acrescimentos geográficos
e econômicos da colônia e as suas lutas vitoriosas contra
Holanda pérfida e nociva
como ele disse.
O que nos legaram os outros, excetuando sempre Gregório de Matos, é muito pouco para lhe podermos avaliar com segurança o mérito. Mas sobre insignificante tem tudo o mesmo ar de família da pior poesia contemporânea.
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