Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Favorecido pela autonomia de fato
resultante da mudança da Corte portuguesa para cá, pelo apartamento intelectual
da metrópole começado a operar com a criação de faculdades, escolas, institutos
de instrução e da imprensa, e, sobretudo, pela total independência política
proclamada em 1822, e efervescência cívica por ela produzida, manifestou-se no
Brasil, por volta de 1840, o movimento de reforma literária chamado o
Romantismo.
É aos Suspiros poéticos e saudades, coleção de poesias publicada em Paris, em 1836, por Domingos José Gonçalves de Magalhães, que ele próprio, os críticos e leitores contemporâneos atribuíram o início do Romantismo aqui. Razoavelmente se não pode discordar deste conceito. O leitor de hoje, entretanto, só com esforço e aplicação encontrará nesse livro o que plenamente o justifique. E somente da comparação com o que era aqui a poesia antes dele, lhe virá a certeza de que não é errado.
Tem um duplo caráter a inspiração
desses poemas, patriótico e religioso. O patriotismo, significando com esta
palavra não só o amor e devoção da terra, mas o sentimento da sua distinção de
Portugal, já era, desde os mineiros, e aumentada pelos poetas difíceis de dominar
que lhes sucederam, a feição particularmente notável da poesia brasileira. Era
aliás apenas o desenvolvimento do nativismo nela manifestado desde o século
XVII, que se acentuava na proporção do progresso do país. A religião, ou melhor
a religiosidade poética de Magalhães, era o produto direto da revivescência
religiosa operada na Alemanha pelo idealismo filosófico de Kant e Hegel, em
França pelo sentimentalismo católico de Chateaubriand. E mais o resultado
imediato da influência de Monte Alverne, o facundo professor dessa filosofia,
mestre muito querido e admirado do poeta.
Em nenhum destes dois rasgos da
poética de Magalhães há mais que traços, como se diria em química, do movimento
de emancipação estética desde o fim do século anterior iniciado na Europa.
Traços iguais encontram-se em José Bonifácio e, apenas mais apagados, em Sousa Caldas. O
impressionismo poético dos Suspiros e
saudades, revelado no livro por poemas inspirados das ruínas romanas, da
meditação sobre a sorte dos impérios, dos grandes espetáculos da natureza ou
das magníficas fábricas humanas, gerando o assombro da grandeza de Deus e dos
prodígios do Cristianismo, a nostalgia curtida entre túmulos e ciprestes, a
cisma dos destinos da pátria, nas paixões humanas e no nada da vida, todos temas
aqui novos, já é certamente, por mais de um aspecto da inspiração e da
expressão, romântico, como romântico é o subjetivismo de que procede essa
impressão poética. Mas o é sem clara consciência ou intuição profunda. Se do
prefácio que sob o vocábulo de "Lede" lhe pôs o poeta, páginas de
pouco valor filosófico ou estético, algo pode tirar-se é que o poeta não
concebia a poesia senão como um "aroma d'alma", que "deve de
contínuo subir ao Senhor"; "som acorde da inteligência"
"deve santificar as virtudes e amaldiçoar o vício". "O poeta,
resume ele em um vazio anfiguri, empunhando a lira da Razão, cumpre-lhe vibrar
as cordas eternas do Santo, do Justo e do Belo." E logo abaixo exprobra
"à maior parte dos nossos poetas" e "ao mesmo Caldas, o primeiro
dos nossos líricos" "não se terem apoderado desta ideia". Essas
páginas anódinas, mal pensadas e mal escritas, nada têm do ardor dos
iniciadores ou neófitos da nova escola fora daqui. Delas se não deduz nenhuma
ideia clara da estética do poeta e do seu conceito dessa escola. Procurou dá-la
desde o aparecimento do livro, Sales Tôrres Homem, o futuro Visconde de
Inhomirim, que então ainda fazia literatura, num artigo da Niterói, Revista Brasiliense, ao tempo publicada em Paris. Apenas ,
porém, com um pouco mais de clareza que o mesmo poeta. Sales Tôrres Homem via o
Romantismo como uma reação contra o paganismo e a literatura deste derivada,
assim como via que da mesma fonte cristã bebiam inspirações "não só a
poesia, como as artes e a filosofia, irmã da teologia". E põe de manifesto
a inspiração religiosa e patriótica do poeta, que é também a da sua crítica.
Como a patriótica, a inspiração religiosa não era uma novidade na poesia
brasileira. Estavam frescos os exemplos de Sousa Caldas e de Elói Otoni, além
de mostras acidentais de outros poetas contemporâneos destes ou seus
antecessores. Deus, sob vários vocábulos (até o de Tupã: "Tupã, ó Númen
dos meus pais", de Firmino Rodrigues Silva) e perífrases, bem como a
religião e seus mistérios entravam frequentemente em tropos, imagens, figuras e
em toda a poética daquela fase intermédia. Erraria quem destas manifestações
inferisse um íntimo e forte sentimento religioso nesses poetas e no povo cujos
órgãos eram. É um simples vezo, um cacoete literário, oriundo da sua educação,
inteiramente eclesiástica. Desde que se iniciou, com o primeiro estabelecimento
dos portugueses, até o começo da segunda metade do século XIX, a instrução aqui
foi toda e exclusivamente dada por padres nas escolas, colégios e seminários, e
ainda nas famílias. Os homens mais instruídos, os letrados que encheram as
listas de sócios das academias literárias coloniais, eram em sua maioria padres
ou frades, doutores em cânones, homens de igreja em suma. A forma oral e
popular da literatura tinha a sua mais alta, mais frequente e mais autorizada
expressão no sermão. Desta educação recebida, na escola e fora dela, de
eclesiásticos, mais do que um real sentimento religioso resultou o hábito de
expressões de caráter religioso não só em a nossa conversação corrente, mas em
nossos escritos, discursos, poesias. São antes tropos, frases feitas, locuções
proverbiais que a expressão de verdadeiro sentimento religioso. Justamente
nesta fase, os dois sentimentos, patriótico e religioso, misturavam-se aqui.
Nas crises nacionais graves, como nos transes individuais, o espírito humano
apavorado, revendo a origem deste sentimento, faz-se religioso. Aqui, demais,
eram em grande número eclesiásticos os principais adeptos e fatores da
revolução que se operava. Do púlpito, as vozes mais ou menos eloquentes de
Januário Barbosa, de São Carlos, de Sampaio e de Monte Alverne pregavam ao
mesmo tempo pela religião e pela pátria. Nas aulas, mestres, em maioria
clérigos regulares ou seculares, juntavam às suas lições fundamentalmente
religiosas as suas excitações patrióticas. No Rio de Janeiro, o principal
centro de cultura e de vida literária do país, como o principal foco do
movimento da independência nacional, Fr. Francisco de Monte Alverne fazia do
púlpito ou da cátedra estrado de tribuno político, misturando constantemente,
com eloquência retumbante, havida então por sublime, a religião e a pátria. De
resto, o Romantismo europeu, mesmo na Alemanha, foi em seus princípios, não só
uma reação religiosa, mas até católica. Esta sua feição bastava para o tornar
simpático aqui, onde o elemento eclesiástico era mentalmente preponderante.
Foi este meio e momento que
produziu Magalhães. Nascido em 1811 no Rio de Janeiro, a sua infância,
adolescência e juventude passaram-se na quadra mais ativa e efervescente da
nossa vida política, que justamente então em verdade começava. Era menino de
onze anos pela Independência, e pelo 7 de abril entrava em plena juventude.
Coincidiu-lhe a idade viril com a da pátria. Se houvesse em Magalhães maior
personalidade, mais caráter, quero dizer qualidades morais salientes e ativas
que lhe estimulassem o engenho, o momento e o meio teriam podido fazer dele um
grande poeta. Não logrou ser senão um distinto poeta, cujo sentimento se
ressente das circunstâncias em que se criou, cujo estro e inspiração reveem
aquele meio e momento, mas sem o relevo e a distinção que foi de moda
atribuir-lhe. Não se veja, aliás, nessa atribuição apenas a mesquinhez do gosto
e do senso crítico do tempo ou um efeito das camaradagens literárias do autor,
senão a consequência dos mesmos exaltados sentimentos nacionais do momento. Nem
foi ele o único a quem esta circunstância aproveitou. Ao contrário, ela influiu
preponderantemente na admiração ingênua e desavisado apreço que os nossos avós
da primeira geração após a Independência tiveram por todos os seus poetas e
literatos. A sua vaidade patriótica, então exagerada, desvanecia-se deles, como
prova da nossa capacidade mental a opor às presunções e preconceitos
portugueses da nossa inferioridade. E, ou fosse porque candidamente estivessem
persuadidos do mérito dos escritores patrícios, ou por despique da opinião da
metrópole, lho encareciam descomedidamente. Que, por Magalhães, não era a
manifestação de uma parceria ou conventículo de literatos, mas o sentimento
geral e sincero mostra-o o terem dele aproveitado ainda os mais medíocres. Tal
sentimento é o inspirador da crítica nimiamente laudatória e até louvaminheira
da época, e que se continuaria até nós em virtude de um hábito adquirido. É
também esse sentimento, ininteligente certamente, mas ao cabo respeitável, que
levaria os primeiros historiadores das nossas letras, que justamente então
começam a aparecer, à enumeração fastidiosa e inútil de nomes e nomes, e a
juntar-lhes os mais descabidos encômios.
Antes dos Suspiros poéticos e saudades, publicara Magalhães, em 1832, um
volume de Poesias, reproduzido mais tarde nas Poesias avulsas (Rio de Janeiro,
Garnier, 1864). Superabunda de provas de que àquela data estava ainda Magalhães
no subarcadismo reinante em Portugal e aqui em todo o primeiro quartel do XIX
século e continuado até o pleno advento do Romantismo. Sob a influência desse
subarcadismo ou pseudoclassicismo, como se lhe tem chamado, conservou-se
Magalhães ainda nas duas décadas seguintes. E acaso se pudesse dizer que, salvo
a exceção da Confederação dos Tamoios
e de parte a intenção do seu teatro, nunca se lhe emancipou de todo. Como o seu
amigo e êmulo Porto Alegre, era Magalhães de temperamento mais um árcade que um
romântico, e mais do que àquele acontecia, lhe iam contra a índole as audácias
do Romantismo, naturais e necessárias nos movimentos revolucionários como foi
esse. Há poemas seus dos anos de 40, e até de 60, de todo em todo arcádicos,
odes pindáricas, com os obsoletos cortes clássicos de estrofes, épodos e
antiestrofes, a terminologia mitológica, os tropos e figuras da velha retórica
quintilianesca, com que os pseudoclássicos de todos os países desde a
Renascença ingenuamente presumiram emular com os latinos e gregos e
reproduzi-los. Nessas poesias avulsas bem pouco há que, ao menos pela
inspiração e estilo, eleve Magalhães acima dos poetas seus imediatos
predecessores, nem que o separe deles. Apenas na composição e forma desses
poemas é possível notar alguma diferença na maior objetividade dos assuntos e
ainda nos títulos de diversas composições. Ao
amor da pátria, à liberdade, à guerra, ao
dia 25 de março, ao dia 7 de abril e quejandos, não são comuns na poesia
anterior. Talvez se pudesse dizer que pronunciam o individualismo romântico
assuntos e títulos como À saudade, A
volta do exílio e outras inspiradas de motivos pessoais, assim como as Noites melancólicas, se o seu íntimo
sentimento e estilo não fossem ainda os da poética dominantes antes do
Romantismo. Compõe elogios dramáticos em verso, como o da Independência do Brasil, tal qual Tenreiro Aranha, e cartas
amistosas em prosa e verso, tal qual Sousa Caldas. Escreve epicédios, liras,
epístolas, copiosamente, perluxamente mas sem engenho que revigore e alente
essas formas de todo gastas. Aliás o vinco dessas categorias poéticas era
profundo na poesia da nossa língua, e o próprio Gonçalves Dias ainda capitulou
com ele quando já era de todo anacrônico e impertinente o seu emprego.
No mesmo ano em que, com 21 de
idade, estreara com as Poesias
(1832), partiu Magalhães para a Europa, em viagem de instrução e recreio. Para
ser doutor, título aqui indispensável de recomendação, formara-se antes em
medicina no Rio de Janeiro. Quatro anos depois apareciam em Paris os Suspiros poéticos e saudades.
Nesse período percorrera a
França, a Bélgica, a Itália, a Suíça. Não foi grande a modificação que o
contato de coisas novas e sugestivas operou na sua índole poética. Em suma os Suspiros poéticos, acolhidos e saudados
como uma renovação literária, não se distinguem com tal relevo das Poesias do ano de 32, que sem mais
exames possamos atribuir-lhe aquele efeito. Teve-o entretanto.
As formas poéticas eram outras,
já a dos poemas soltos não sujeitos a uma nomenclatura preestabelecida. Bania o
poeta, ou ao menos olvidava, as odes com as suas repartições clássicas, e o
resto daquelas categorias, e quando se endereçava aos amigos não mais lhes
trocava os nomes por apelidos arcádicos, como nas Poesias avulsas. O soneto,
forma estrófica de que os árcades usaram e abusaram, e numerosos na primeira
coleção, desaparece totalmente desta, onde não se nos depara nenhum. O
Romantismo foi parco em
sonetos. Há mais variedade, mais liberdade nas formas
métricas e quase nenhum socorro aos recursos mitológicos ou clássicos. O
próprio título da coleção indica uma subjetividade, um sentimentalismo maior, e
da leitura verifica-se que é de fato maior e influi na emoção dos próprios
poemas objetivos. O poeta refere e reporta a si, o que é bem romântico, todas
as comoções que lhe vêm dos aspectos da natureza, da contemplação dos sucessos
humanos, das meditações sobre temas e ficções abstratas. Mistura-lhes
constantemente a sua nostalgia, o seu pesar, os sofrimentos que experimenta ou
cisma. Da biografia conhecida de Magalhães não parece tenha sido desventurado
ou tido grandes penas na vida. Ao invés, quanto dele sabemos, foi um mimoso da
fortuna. Dos seus poemas, entretanto, resultaria a presunção contrária. É
talvez ele quem inaugura na poesia brasileira o estilo lamuriento dos que já
algures chamei de nostálgicos da desgraça, moda poética que tanto floresceu
aqui. Não achou, no entanto, a sua dor, talvez por não ser verdadeiramente
sentida, nenhuma expressão bastante forte para nos comover também a nós. O
abstrato do seu estilo, porventura a sua característica, sob o aspecto do
estilo, concorreu ainda mais para diminuir-lhe a intensidade da emoção já de
si, parece, pouco profunda e o calor da expressão, apenas altiloquente. Daí, e
da prolixidade, outra feição do seu poetar, o desmaio e o banal da sua poesia,
apesar dos seus propósitos filosóficos. É que ele lhe pôs não os seus íntimos
sentimentos atuados pela sua filosofia, as suas emoções apenas influídas por
ela, senão os próprios ditames da escola e do livro, e levou para a sua arte
intenções pedagógicas. Os passos de inspiração filosófica dos seus poemas são
puramente didáticos e não a expressão de uma simples emoção poética:
Não, o medo não foi quem sobre a terra
Os joelhos dobrou ao homem primeiro,
E as mãos aos céus ergueu-lhe. Não, o medo
Não foi o criador da Divindade!
Foi o espanto, o amor, a consciência,
E a sublime efusão d'alma e sentidos,
Viu o homem seu Deus por toda a parte,
E a sua alma exaltou-se de alegria.
Todo esse poema O Cristianismo, cujos são estes desenxabidos
versos, é didático, sem que um sentimento poético, inspirado embora do
religioso, se nele manifeste de maneira a tocar-nos. Noutro seu poema, muito
celebrado, todo ele justificativo deste conceito, se nos deparam trechos como o
seguinte, antes versos de professor de filosofia que de poeta filósofo:
Assaz, oh Deus, o homem sobre a terra
Revela teu poder, tua grandeza,
A Razão, és tu mesmo; a liberdade,
Com que prendaste o homem, não, não pode
Dominar a Razão, que te proclama!
Se muda para mim fosse a Natura,
Na Razão que me aclara, e não é minha,
Senhor, tua existência eu descobrira.
Em arte não basta não imitar para
ser original. Não se descobre em Magalhães imitações, nem predileção por algum
dos mestres do Romantismo. Mas também se lhe não lobriga originalidade. Se
alguma tinha, prejudicou-a a sua filosofia de escola, o seu demasiado respeito
das tradições literárias, e obliterou-lha o abstrato e o fluido do seu estilo
poético. A diplomacia, carreira em que apenas estreado em letras entrou, com a sua
gravidade protocolar, a sua artificialidade, a sua futilidade, a sua compostura
de mostra, não devia ter pouco contribuído para sufocar em Magalhães, ou
amesquinhá-los, os dons poéticos mais vivazes que porventura recebera na
natureza. Influências de filosofia escolástica e livresca e do decoro da
situação social fazem-no versejar os mais triviais lugares-comuns:
Um Deus existe, a Natureza o atesta:
A voz do tempo a sua glória entoa,
De seus prodígios se acumula o espaço;
E esse Deus, que criou milhões de mundos,
Mal queira, num minuto
Pode ainda criar mil mundos novos.
Se a sua emoção poética, a sua
inspiração, carece de profundeza, pobre é também a sua expressão. Raro se faz
nalguma forma sintética, conceituosa ou intuitiva. Por via de regra se derrama
em um longo fraseado, com exclamações e apóstrofes. Roma lhe não inspira senão
banalidades da sua história corriqueira e dos seus mais triviais
aspectos:
Roma é bela, é sublime, é um tesouro
De milhões de riquezas; toda a Itália
É um vasto museu de maravilhas.
Eis o qu'eu dizer possa; esta é a Pátria
Do pintor, do filósofo, do vate.
O prosaico escandaloso destes
versos não é uma exceção ou uma raridade. De todo este grosso volume dos Suspiros poéticos (mais de 350 páginas)
apenas vive hoje, e merece viver, o Napoleão
em Waterloo, que sem ter a profundeza, a intensa emoção humana e poética do
Cinque magio, de Manzoni, salva-se
por um alevantado sopro épico e sem embargo de alguns desfalecimentos, uma bela
forma eloquente e comovida.
O que os contemporâneos acharam
de novo no livro, e o pelo que ele os impressionou, foi, com a ausência dos
fastidiosos e safados assuntos antes preferidos, mitológicos e clássicos, dos
rançosos tropos da caduca retórica, a personalidade do autor. Não se revelava
esta no vigor do sentimento ou no ressalto da expressão, como com Victor Hugo
em França ou Garrett em Portugal, mas se apresentava nas numerosas referências
a si mesmo, nas suas declarações de fé e de princípios, nas suas confissões e
lástimas. Por pouco que tudo isso fosse realmente, ou por pouco que nos pareça
a nós, foi então, com ajuda do sentimento nacionalista predominante, achado
muito. A despeito das restrições que podemos fazer hoje, havia ainda nos Suspiros poéticos, e se não enganaram os
contemporâneos, a exalação de uma alma, tocada da nova graça romântica,
influída, por pouco que fosse, pelo sopro da liberdade estética que agitava a
atmosfera europeia e tão bem se casava com o de liberdade política que soprava
em sua pátria. E às vezes exalava-se linda e sentidamente:
Castas Virgens da Grécia,
Que os sacros bosques habitais do Pindo!
Oh Numes tão fagueiros,
Que o berço me embalastes
Com risos lisonjeiros
Assaz a infância minha fascinastes.
Guardai os louros vossos,
Guardai-os, sim, qu'eu hoje os renuncio.
Adeus ficções de Homero!
Deixai, deixai minha alma
Em seus novos delírios engolfar-se,
Sonhar com as terras do seu pátrio Rio;
Só de suspiros coroar-me quero,
De saudades, de ramos de cipreste;
Só quero suspirar, gemer só quero.
E um cântico formar co'os meus suspiros.
Assim pela aura matinal vibrado
O Anemocórdio, o ramo pendurado,
Em cada corda geme,
E a selva peja de harmonia estreme.
Renunciando às musas clássicas,
é, entretanto, na sua língua que lhes refoge. Distingue o Magalhães dos Suspiros poéticos da geração poética
precedente e do mesmo Magalhães dos versos de 32, outra feição muito do
Romantismo, a soberba do poeta, o senso da nobreza da sua missão, a alevantada
ambição que se lhe gera deste pressuposto. São manifestações do individualismo
romântico, embora nele contidas, mais discretas do que acaso cumpria, sem os
entusiasmos, transbordantes até à descompostura, de muitos dos corifeus da
escola. Leiam-se O Vate, A Poesia, A Mocidade. Este poema
sobretudo revê, e não sem intensidade, aquela "tragédia da ambição"
que, segundo Brandes, se apresentava na alma da juventude romântica francesa.
Como quer que seja, esse grosso volume de poesias teve, de 1836 a 1865, três edições,
fato aqui extraordinário.
Que no fundo de Magalhães, porém,
havia permanecido o árcade retardatário das Poesias de 1832, provam-no os
poemas posteriores a 1836, publicados sob o título de Poesias várias, como segunda parte das Poesias avulsas, em 1864. Neles volta à poética apenas esquecida
nos Suspiros. Prova-o mais, de desde
o título, a sua posterior coleção de versos, Urânia, em que tudo lembra mais a poética obsoleta que a em voga.
A inspiração poética, como a
forma que a realiza, ou o estilo, é função do temperamento do poeta que a
condiciona. O de Magalhães era evidentemente mais consoante ao pensamento geral
e à poética dos últimos cinquenta anos, do que com as ideias e a poética do seu
tempo. Pode ser que, como ele próprio insinua através de Wolf, fosse o
Romantismo alemão, simplesmente como expressão do sentimento nacional, como
revolta contra a servidão de todo o mundo ao classicismo francês, que lhe
atuasse o estro. Em todo caso, sob uma forma comedida e reportada, revendo o
seu medíocre entusiasmo pelo movimento, cujo promotor e chefe, mais por força
das coisas quer por íntima persuasão, foi aqui.
Se Magalhães houvera ficado nos Suspiros poéticos, talvez fosse apenas
um nome a mais no comprido rol dos nossos poetas. Quaisquer que fossem os
méritos dessa coleção, não eram tais que só por ela pudesse o autor tomar na
literatura brasileira a importância que alcançou. Deu-lha mui justamente o
volume e a variedade da sua obra, provando nele capacidades que, sem serem
sublimes, eram menos comuns, aptidões literárias diversas e vocação literária
incontestável.
Magalhães, e o seu exemplo
influiria os seus companheiros e discípulos da primeira geração romântica,
sentiu que o renovamento literário de que as circunstâncias o faziam o
principal promotor, carecia de apoiar-se em um labor mental mais copioso, mais
variado e mais intenso, do que até então aqui feito, e que uma literatura não
pode constar somente de poesia, e menos de pequenos poemas soltos. Com esta
intuição, senão inteligência clara do problema, que para ele e os jovens
intelectuais seus patrícios se estabelecia, Magalhães colaborou em revistas com
ensaios diretamente interessantes ao movimento literário e ao pensamento
brasileiro, criou, com Martins Pena, o teatro nacional, iniciou, com Teixeira e
Sousa, o romance, reatou com os Tamoios
a tradição da poesia épica do Caramuru
e do Uraguai, fez etnografia e
história brasileiras, deu à filosofia do Brasil o seu primeiro livro que não
fosse um mero compêndio, e ainda fez jornalismo político e literário, e
crítica. Pela sua constância, assiduidade, dedicação às letras, que a situação
social alcançada no segundo reinado, ao contrário do que foi aqui comum, nunca
lhe fez abandonar, é Magalhães o primeiro em data dos nossos homens de letras,
e um dos maiores pela inspiração fundamental, volume, variedade e ainda mérito
da sua obra. Pode dizer-se que ele inicia, quanto é ela possível aqui, a
carreira literária no Brasil, e ainda por isso é um fundador.
Os preconceitos pseudoclássicos
de Magalhães e a sua índole literária, sempre mais arcádica que romântica,
levaram-no no teatro à tragédia, na poesia ao poema épico. Em ambos os casos
inspirou-o o espírito nacionalista da época, o propósito de fazer literatura
nacional, de assunto e sentimento. Declara ele próprio o seu desejo de encetar
a carreira dramática com um assunto nacional. A sua estética confessada no
prefácio da tragédia de Antônio José
lhe oscila entre "o rigor dos
clássicos e o desalinho dos românticos". Como eclético de temperamento
e de filosofia, admirador fervoroso de Cousin, Magalhães toma a posição soberba
de um artista alheio e superior a escolas, emancipado. "O poeta
independente, diz ele no seu magro Discurso
sobre a história da literatura do Brasil, citando Schiller, não reconhece
por lei senão as inspirações de sua alma, e por soberano o seu gênio."
Gênio é uma palavra de que Magalhães abusava, metendo-a até um passo onde
forçosamente se referia a si próprio. Infelizmente, gênio não tinha nenhuma, e
a postura de poeta independente que alardeava não lhe calhava ao modesto
engenho. Era a formação pseudoclássica do seu espírito, consoante com a sua
índole literária, e o seu ecletismo filosófico que lhe impunham essa atitude. O
próprio título de tragédia que deu às suas peças de teatro contrastava o
parecer do Romantismo, que em nome da liberdade da arte, e da verdade humana,
refugava a velha fórmula clássica.
O renovador do teatro, e
simultaneamente principal fautor do Romantismo português, Garrett, não por
simples imitação, mas com razões excelentes, chamou ao seu admirável Frei Luís de Sousa de "drama",
não obedeceu à regra dos cinco atos e escreveu-o em prosa, porventura a mais
bela que jamais se fez em nossa língua. Magalhães, que tem sobre Garrett o
mérito da prioridade na introdução do teatro moderno em português, ao invés
deliberadamente chamava à sua de tragédia, punha-lhe os cinco atos clássicos,
embora para isso tivesse de derramar a composição, e fazia-a em verso, segundo
a fórmula consagrada. Distinguem-na, porém, do mesmo passo revendo a influência
do Romantismo, o assunto moderno e nacional, a familiaridade da expressão
apesar do verso clássico, e o pensamento liberal que a inspira, não obstante o
catolicismo do autor. Não será o Antônio
José, sob o puro aspecto literário e estético, uma perfeita ou sequer
notável obra d'arte, mas é sem dúvida um documento muito apreciável da
capacidade do poeta, e não de todo sem força dramática ou beleza de expressão.
E, o que muito importa, no conjunto da nossa literatura dramática, sobre a
iniciar, não é despecienda. Sente-se ainda que é uma obra feita de inspiração.
Põe-no de manifesto o contraste com o Olgíato,
obra prolixa, difusa e declamatória. O Otelo
é apenas a tradução em verso da incolor tragédia do pseudoclássico francês
Ducis, a qual nesta dinamização já nada conserva da fortíssima emoção
shakespeariana.
Como quer que seja, o impulso da
literatura dramática estava dado. Em outubro do mesmo ano de 1838, Martins
Pena, engenho teatral mais nativo que Magalhães, fazia representar a sua
primeira comédia, O juiz de paz na roça,
lidimamente brasileira, por figurar com toda a verdade um aspecto cômico da
nossa vida. Seguindo o exemplo de Magalhães, todos os românticos escreverão
teatro. Nenhum, porém, antes da segunda geração, com o talento, a arte e o
sucesso dele.
Da impressão feita na mente
portuguesa pela epopeia de Camões, resultou não só em Portugal mas no Brasil a
criação épica, que é um dos mais curiosos aspectos da literatura da nossa
língua. Desvaneceram-se dela por tal forma os portugueses, que é de ver o
filaucioso entono com que presumiram amesquinhar a literatura francesa,
reprochando-lhe a carência de uma epopeia. Ao contrário, eles as tinham em demasia. Desta
opinião resultou mais o parvoinho pressuposto de que um poeta, para merecer
inteira estimação, cumpria-lhe escrever um poema épico. Aos brasileiros herdaram
o seu preconceito. Os nossos românticos encontravam-no sancionado pelos
exemplos de Bento Teixeira, de Santa Rita Durão, de Basílio da Gama, de Cláudio
da Costa e de outros poetas autores de poemas épicos mais ou menos
consideráveis. No propósito deliberado de fomentar a literatura da nação
estreante, Magalhães fizera poesia, fizera teatro, fizera novela, escrevera
ensaios filosóficos, históricos e literários. Em 1856 coroou, segundo seria a
sua mesma persuasão, a sua obra de renascença com um poema épico, em dez
cantos, em endecassílabos soltos, de assunto e de inspiração nacional, a Confederação dos Tamoios.
O aparecimento desta obra foi um
acontecimento literário. Contra ela escreveu José de Alencar, então estreante,
uma crítica acerba, e o que é pior, frequentemente desarrazoada. Saíram-lhe em
defesa ninguém menos que Monte Alverne e o próprio Imperador D. Pedro II, que
fora, às ocultas, o editor do poema. Tinha razão Magalhães quando do seu citado
estudo sobre a história da nossa literatura notava que no começo daquele século
"uma só ideia absorve todos os pensamentos, uma ideia até então quase
desconhecida; é a ideia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela e em
seu nome. Independência, liberdade, instituições sociais, reformas políticas,
todas as criações necessárias em uma nova nação, tais são os objetos que ocupam
as inteligências, que atraem a atenção de todos, e os únicos que ao povo
interessam". Continuava verdadeira a sua observação, e desse sentimento
menos de são patriotismo que de vaidade patriótica aproveitou ele largamente, e
aproveitava agora no sucesso da Confederação
dos Tamoios. O que principalmente disseram do poema os seus defensores é
que era uma obra de inspiração patriótica. Este errado critério de juízo de uma
obra literária ou artística permaneceria nos nossos costumes, como um vício de
crítica irradicável, e ainda não desapareceu de todo. O próprio Alencar, três
lustros depois, defendendo obras suas dos ataques da crítica ou da opinião
pública, apelava para o sentimento patriótico que lhas inspirava. Este
indiscreto sentimento, principalmente, ajudou a nomeada que no seu tempo teve a
Confederação dos Tamoios, como em
geral favoreceu a obra dos nossos primeiros românticos, dele inspirada.
O poema de Magalhães apareceu um
ano antes dos quatro cantos dos Timbiras,
de Gonçalves Dias. Parece, entretanto, que os contemporâneos não repararam que
a Confederação dos Tamoios, voltando
ao índio estreado na poesia brasileira por Basílio da Gama e Durão, nada
criava, mas apenas seguia a sua restauração nela, desde 1846 feita por
Gonçalves dias nos seus Primeiros Cantos.
Apenas à feição que se chamou indianismo, e que foi de princípio a mais
singular do nosso Romantismo, trouxe o poema de Magalhães o concurso precioso
de uma obra considerável e de um homem socialmente mais considerado que
Gonçalves Dias, com altas e prestigiosas amizades e relações, poeta então muito
mais estimado que o seu jovem êmulo. Era ainda o momento em que um falso
critério sociológico e um desvairado sentimentalismo queriam fazer do índio um
elemento demasiado interessante da nossa nacionalidade. Portanto, lisonjeava o
sentimento público, e lhe aproveitava da simpatia. A Confederação dos Tamoios não criou na nossa literatura o que se
viria chamar "indianismo", e que se não foi todo o nosso Romantismo,
foi a sua feição mais peculiar. Mas, com a autoridade literária de que então
gozava o seu autor, trouxe à iniciativa de Gonçalves Dias uma cooperação apenas
inferior à ação deste, se é que no momento não foi havida por superior. Em
1859, três anos depois da Confederação,
apresentava Magalhães ao Instituto histórico uma extensa memória sobre Os indígenas do Brasil perante a história,
que poderia ser como o comentário perpétuo de seu poema. O fim declarado desse
trabalho é reabilitar o elemento indígena. Não era outro o íntimo pensamento do
indianismo.
Magalhães foi principalmente e
sobretudo poeta. Por sua obra de poeta influiu poderosamente na implantação do
Romantismo aqui, e, portanto, na fundação da literatura que desde então se
começa a distinguir da portuguesa. Mas escreveu também prosa, ensaios diversos
e tratados filosóficos. Como prosador é seguramente, não obstante alguns
defeitos nativos (como o já ridiculamente famoso da colocação dos pronomes), um
dos mais vernáculos, pela propriedade do vocabulário, sempre nele castiço, e de
parte os legítimos sacrifícios ao seu falar brasileiro, pela correção sintática
do fraseado. É mais simples, mais natural, menos rebuscado ou trabalhado o seu
estilo do que era o dos escritores que aqui o precederam, e ainda da maior
parte dos que se lhe seguiram. Sob o aspecto da linguagem e estilo são escritos
estimáveis, e que se deixam ainda ler sem dificuldade, antes com aprazimento,
os seus opúsculos citados. A sua Biografia
do padre Mestre Fr. Francisco de Monte Alverne, e páginas suas de
literatura amena como O pavão, podem passar por exemplos de boa prosa, como não
era vulgar na época.
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