Grupo maranhense
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Os comprovincianos e admiradores
de Gonçalves Dias levantaram-lhe em São Luís uma estátua. De sobre o airoso
fuste de uma palmeira de mármore, eleva-se a sua débil e melancólica figura de
romântico. Em cada face do plinto onde assenta a planta que o poeta fez, com o
canoro sabiá, símbolo da terra brasileira, destacam-se em relevo os medalhões
de ilustres conterrâneos e camaradas do poeta: João Lisboa (1812-1863), Odorico
Mendes (1799-1864), Sotero dos Reis (1800-1871), Gomes de Sousa. A ideia feliz
da associação destes nomes na justa homenagem que ao máximo de seus filhos
prestava a sua terra natal, comemora a coexistência simultânea nesse mesmo
torrão brasileiro de um grupo de intelectuais, como ora dizemos, que por mal
dela e nosso jamais se repetiria. Console-se o Maranhão, também à Atenas, que
lhe deram por antonomástico, nunca jamais lhe voltou o tempo de Péricles.
Conquistado pelos portugueses ao
franceses em antes de passados três lustros do século XVII, era desde 1624 o
Maranhão constituído em Estado, separado do Brasil, aumentado do Grão-Pará, do
Piauí e do Ceará. Como o Brasil, teve o seu governador particular, geralmente
fidalgo de boa linhagem, sua legislação e administração privativa. A posição
geográfica aproximava-o mais da metrópole que o Brasil, tornando-lhe as
comunicações com ela mais prontas. Não seria pouco motivo para lhe atrair a
imigração que se não desenraiza de todo da pátria e que é talvez, como
qualidade de gente, a melhor. Nota o insigne historiador maranhense que o Maranhão
recebeu menos degradados que o Brasil. Desde 1655, como galardão dos seus
serviços na expulsão dos holandeses, foram pelo rei concedidos aos
"cidadãos" de São Luís (e de Belém do Grão-Pará) os privilégios dos
do Porto. "Qualquer que fosse, pondera o mesmo historiador, a importância
destes privilégios, todos (os moradores) faziam muito empenho em alcançá-los, e
nesta matéria, como em tudo o mais, se introduziram pouco a pouco graves
abusos. Soldados, criados de servir, mercadores degradados, cristãos novos; uns
simplesmente inábeis, outros até infames pela lei, achavam maneiras de
introduzir os seus nomes nos pelouros, obtendo assim por uma parte as
qualificações de nobreza e o exercício dos cargos da governança, e por outro a
isenção do serviço militar na infantaria paga, e nas ordenanças". Desde os
seus começos, foi o Maranhão país agrícola, de cultura de gêneros da terra e
mais de algodão. Nesta cultura, também desde os seus princípios, empregou
numerosa escravaria negra e indígena. A grande propriedade agrícola, mormente
quando baseada no trabalho escravo, sempre e por toda a parte criou presunções
ou fumos de fidalguia, vida ou aparências de grandeza. Excetuado talvez
Pernambuco, foi o Maranhão, em todo o Norte do Brasil, o lugar de mais numerosa
escravatura negra, e pela mesma situação de trabalhadores agrícolas onde esta
mais maltratada e desprezível se achou. Por motivo ainda daquela real ou
supositiva prosápia, foi ali mais vivo do que soía ser no resto do país o
preconceito de cor. Mais porventura do que em outra parte do Brasil se
conservou estreme acolá a branca, predominando na sua capital até a
Independência, e querendo predominar ainda depois dela, o elemento português.
Talvez sejam estes os motivos do sotaque maranhense aproximar-se mais do que
nenhum outro brasileiro do português, o que explicaria também, sabida a
influência da fonética na sintaxe, que ali se tenha falado e escrito melhor do
que algures. Por que são os escritores maranhenses os que menos praticam a
colocação brasileira dos pronomes pessoais oblíquos, senão porque a sua
pronúncia se avizinha mais da de Portugal? Não se pode mais duvidar que este
fato linguístico é em suma produzido por um fenômeno prosódico.
O Maranhão foi no Brasil um dos
bons centros da cultura jesuítica, toda ela particularmente literária. Ali
viveu alguns anos da sua vida, pregou vários dos seus sermões, escreveu muitas
de suas cartas, participou das suas lutas e contendas o padre Antônio Vieira.
Que desde o século XVII havia em São Luís poetas, embora nenhum nome tenha
chegado até nós, mostra-o o fato da existência de devassas contra os homens versistas, autores de sátiras
contra os governantes. Bequimão, o cabeça dos motins de 1684, possuía e lia
livros de histórias de revoluções. Mais de um dos fidalgos portugueses que
governaram o Maranhão, além de Berredo, o autor dos seus Anais, era homem culto e ainda de letras; e de outros funcionários
coloniais portugueses como Guedes Aranha, Henriarte, há documentos preciosos do
que chamo neste livro literatura de informação. Fosse qual fosse a constituição
da sociedade maranhense nos tempos coloniais, tivesse ela no extremo norte a
primazia da prosápia, da riqueza ou da cultura, e demais um sentimento cívico
mais apurado pelas suas lutas com o estrangeiro invasor, ou brigas intestinas
que muitas foram e que, bem como aquelas, poderiam concorrer para lhes aguçar o
entendimento, o certo é que nesse período não concorreu o Maranhão sequer com
um nome para engrossar o nosso cabedal literário. Não há com efeito um só maranhense
entre os escritores brasileiros do período colonial.
Entretanto, mal acabado este,
estreiam os maranhenses em a nossa literatura e da maneira mais brilhante.
Efeito demorado daqueles antecedentes ou simples acaso, isto é, evento,
fortuito, cujas causas não podemos deslindar? Antes de ter imprensa, teve o
Maranhão, em 1821, um jornal manuscrito, como os faziam os rapazes nos
internatos, o qual, em cópias tão numerosas quanto possível, corria a capital.
Ainda nesse ano passou a folha manuscrita a impressa, sob o mesmo título de Conciliador maranhense, que revê o
generoso intuito de empecer as demasias da agitação nacionalista, já bem
começada, contra os reinóis. A partir daí multiplicam-se os jornais na
província. Desde 1825 aparecem como publicistas, à frente de jornais, dois
daquele grupo de intelectuais, Odorico Mendes e Sotero dos Reis. Outro, quiçá o
maior dos quatro, João Francisco Lisboa, é jornalista desde 1832 e o será, com
intermitências e sem fazer disso estado, pelo resto da vida. Desde o princípio
foi escritor mais zeloso do seu estilo do que costumam ou podem ser
jornalistas. Com a Revista aparecida em 1840, inicia Sotero dos Reis o
jornalismo literário na sua Província. Era uma "folha política e
literária" não só pela declaração do seu subtítulo, mas pela sua matéria e
linguagem. "Quando se lhe deparava ensejo, não deixava passar uma obra
literária de cunho sem dar dela notícia, assinalando-lhe as belezas e
reproduzindo trechos de originais brasileiros ou portugueses ou traduzindo-os
que eram em língua estranha". O jornalismo destes homens de letras, talvez
nele deslocados, era doutrinal, de alto tom e boa língua.
Quaisquer que tenham sido as suas
determinantes, existia já na época da Independência o gosto literário no
Maranhão. Prova-o o apuro com que ali se estudava e escrevia a língua nacional
em contraste com o desleixo com que era tratada no resto do Brasil e a parte
que ali se dava no mesmo jornalismo político à literatura. Provam-no mais
outros fatos. Em 1845, uma sociedade literária, composta de nomes não de todo
obscuros nas nossas letras, funda um Jornal
de instrução e recreio, que, além de
versar assuntos didáticos e pedagógicos, "era revista de literatura
amena". Outro grupo de homens de estudo e letras, no qual se encontram
alguns do primeiro, fundou no ano seguinte uma Sociedade filomática, a qual também publicou uma Revista e iniciou, antes de ninguém mais
no Brasil, as conferências literárias. Caso talvez mais notável, desde 1847
tinha o Maranhão uma imprensa capaz de imprimir com decência que lhe podia
invejar a Corte, obras volumosas como os Anais
de Berredo. Nessa oficina aprendeu Belarmino de Matos, talvez o melhor
impressor que já teve o Brasil, e dela saiu para montar uma própria, onde
nitidamente imprimiu bom número de obras, com acabamento então único e ainda
hoje raro excedido. Não é menor testemunho deste pendor maranhense a
possibilidade ali de livros como os de Sotero dos Reis e de publicações como o Jornal de Timon.
Neste ambiente, por qualquer
motivo que nos escapa, literário, apareceu a bela progênie de jornalistas,
poetas, historiadores, críticos, eruditos, sabedores que desde o momento da
Independência até os anos de 1860, isto é, durante cerca de quarenta,
ilustraram o Maranhão e lhe mereceram a alcunha gloriosa de Atenas brasileira.
Beneméritos de mais demorada atenção e maior apreço pela sua importância
literária e parte em a nossa literatura, são os já mencionados.
Manoel Odorico Mendes, nascido em
São Luís em 1799 e falecido em Londres em 1864, é porventura o mais acabado
humanista que já tivemos. À ciência das línguas clássicas, e da sua filologia e
literatura, de que deixou prova cabal e duas versões fidelíssimas, embora de
custosa leitura, de Virgílio e de Homero, juntava estro poético original, se
bem que escasso. Foi também um erudito de coisas literárias castiças e
exóticas. Coube-lhe reivindicar definitivamente para Portugal a composição
original do Palmeirim de Inglaterra,
pretendida pela Espanha, já com assentimento de erudição portuguesa. Mas
sobretudo foi um tradutor insigne, se não pela eloquência e fluência, pela
fidelidade e concisão verdadeiramente assombrosa, dada a diferente índole das
línguas, com que trasladou para o português os dois máximos poetas da antiguidade
clássica, não raras vezes aliás emulando-os em beleza e vigor de expressão.
Também traduziu Mérope (1831) e o Tancredo (1839), de Voltaire. Assevera o
clássico D. Francisco Manuel de Melo que "no pecado de traduções não
costumam cair senão homens de pouco engenho". Que não era grande o de Odorico
Mendes parece mostrá-lo o fato de não nos haver ele deixado, benemérito de
citação e leitura, mais que um poema original, ele que tanto trabalhou e
produziu em traduções.
Esse poema é o Hino à
tarde. Escrito em Portugal e publicado pela primeira vez na Minerva Brasiliense, em 1844, mesclam-se
nesta composição o clássico e o romântico, uma inspiração ainda arcádica e
europeia e sentimentos brasileiros e estilo moderno. É, nada obstante, um dos
melhores produtos poéticos do tempo e merece ainda estimado. Já porventura
prenuncia Gonçalves Dias pelo tom sentimental do seu lirismo mais subjetivo que
o de Magalhães.
Francisco Sotero dos Reis, um ano
mais moço que Odorico Mendes, mas seu condiscípulo de humanidades, sem ter tão
completa cultura clássica deste, o sobrelevou pela maior amplitude e
originalidade de sua obra. Principiou como Odorico Mendes e João Lisboa por
jornalista político, conforme era necessário em época em que todo o brasileiro
de alguma instrução e capacidade de expressão era solicitado, se não
constrangido pelas circunstâncias, a dizer da coisa pública e a tomar parte na
refrega política. Jornalista com letras e professor delas, foi-lhe fácil a
transição para autor de livros, principalmente didáticos, Postilas de gramática geral aplicada à língua portuguesa pela análise
dos clássicos (1862), Gramática
portuguesa (1866), tradução dos Comentários
de César (1863), e finalmente o Curso de
literatura portuguesa e brasileira (1866-1868, 8.º gr., 4 vols.). Não
obstante ainda didático e composto para uso dos seus discípulos do Instituto de
humanidades, onde lecionava a matéria, é por este livro que Sotero dos Reis
pertence à literatura e particularmente à história da nossa.
À crítica de Sotero dos Reis, não
obstante informadíssima e alumiada por uma boa cultura literária clássica e
moderna, falta porventura, com um mais justo critério filosófico ou estético, a
necessária isenção de preconceitos escolásticos e patrióticos. Deriva por muito
ainda das regras e processos quintilianescos e da crítica portuguesa de origem
acadêmica. Não esconde ou sequer disfarça o seu empenho em engrandecer o nosso
valor literário, aumentando o dos autores por eles estudado, muito além da
medida permitida. Equiparar, por exemplo, o Marquês de Maricá a La Rochefoucauld é um
despropósito que por si só bastaria para desqualificar a capacidade crítica e a
inteligência literária de Sotero dos Reis, se a sua obra não desmentisse este
conceito. Como quer que seja, o Curso de literatura, de Sotero dos Reis, é, no
seu gênero, com a História do Brasil,
de Varnhagen, e o Jornal de Timon, de
João Lisboa, uma das obras capitais da fase romântica.
João Francisco Lisboa, nascido no
Itapicurumirim, no Maranhão, em 1812, e falecido em Lisboa, em 1863, é das mais
singulares figuras da nossa literatura. Com grande aproveitamento estudou as
poucas letras que era possível aprender na capital de sua Província, tendo por
mestre de latim e latinidade o seu futuro êmulo e rival Sotero dos Reis, treze
anos mais velho do que ele. Fez-se homem quando os acontecimentos do 7 de abril
de 1831, alvorotando o país, provocaram em todo ele as lutas e conflitos, não
raro mais que de opiniões e de imprensa, entre brasileiros e portugueses ou caramurus, conforme a alcunha que lhes
davam os nossos. Estreou nas letras como jornalista político com o Brasileiro, título que na época era um
programa, em meados de 1832. Já havia então na capital da Província quatro
jornais, "todos quatro muito exagerados e descomedidos na linguagem e
desarrazoados nas doutrinas".
Os trechos desse jornal,
reproduzidos na biografia de Lisboa pelo autor do Panteon maranhense, testemunham já no novel jornalista de vinte
anos o reflexivo pensador, e diserto e vernáculo escritor do futuro Jornal de Timon. Como aos homens de
verdadeiros talento literário e alta compostura moral, a política em que
entrara como jornalista e com legítimas ambições de repúblico, não quis a João
Lisboa. Ele despicou-se-lhe da recusa auspiciosa consagrando-se às letras. Mas
no literato sentir-se-á sempre o repúblico malogrado que, sem amesquinhar-se em
recriminações, se desforra com humor e ironia do desdém ou da boçalidade do
povo soberano e dos seus dignos diretores. Na política e no jornalismo fora
sempre um liberal, no mais alto e melhor sentido da palavra, mais adiantado e
desabusado até que o comum dos liberais do seu tempo. Também o foi em
literatura romanticamente, apesar da gravidade do seu feitio mental, sem temor
do sentimentalismo, como quem sabia que, razoado, é ainda o sentimento o melhor
estímulo da inteligência e da ação humana. Antes de conhecer pessoalmente a
Herculano, e do seu comércio com o maior dos portugueses contemporâneos, já
tinha João Lisboa no pensamento e na escrita o estilo em que se tem querido
enxergar a influência do grande escritor português. O feitio e isenção do seu
caráter deu-lhe a forma tersa, límpida, em que juntou com discernimento e garbo
o casticismo português aos naturais influxos do brasileirismo. É menos purista
do que Sotero dos Reis e Odorico Mendes, que aliás também, em rigor, não o são.
Põe muitas vezes os pronomes à brasileira, porque lhe soariam melhor e ainda se
não havia inventado a cerebrina teoria de fazer de um uso geral a constante de
doutos e indoutos da nossa terra, erro crasso da língua. Não refoge de todo ao
neologismo pertinente nem recua ao estrangeirismo expressivo e necessário.
Encontra-se-lhe por acaso uma ou outra impropriedade ou sacrifício ao uso
comum. Estes senões, se é certo que o sejam, e em todo caso raros, não lhe
chegam a macular a escrita ou sequer a lhe empanarem a geral formosura. Tais e
maiores se nos deparam nos melhores dos chamados clássicos da língua. Esta é
nele portuguesa de lei pela correção gramatical e mais pelo torneio da frase,
índole, número e propriedades do vocabulário, sem indiscretas escavações
arcaicas e apenas com uma ou outra afetação impertinente de classicismo. Com
alumiado entendimento leu e meditou os clássicos, o que não era costume aqui, e
se lhes apropriou da língua, com exata inteligência da sua evolução e fino tato
de escritor de raça.
A sua obra principal, começada a
publicar em 1852, é o Jornal de Timon,
obra sem precedentes na nossa língua e uma das mais originais da nossa
literatura. No pensamento do autor devia o Jornal
de Timon ser uma espécie de revista dos "costumes do tempo"
vistos através do seu temperamento, cuja austeridade lhe valia dos seus
concidadãos o apodo de misantropo ou mais vulgarmente casmurro, e descritos e
comentados com o seu natural humor e veia literária. Dá-se antes como
"amigo contristado e abatido" do que presenciava, que como
"inimigo cheio de fel e desabrimento". O "seu fim
primário", porém, ficaria "sendo sempre a pintura dos costumes
políticos". Mas como na nossa terra, segundo observa perspicazmente, "a
vida e atividade dos partidos se concentram principalmente nas eleições,
transformando assim um simples meio, em princípio e fim, de todos os seus atos,
as cenas eleitorais descritas sob todas as suas relações e pontos de vista
imagináveis" lhe ocuparam grande parte do Jornal. De fato este se veio a dividir em três partes, a primeira
sobre as eleições nos tempos anteriores ao nosso, a segunda sobre partidos e
eleições no Maranhão, e a terceira e última relativa à história desta Província
e por extensão à do Brasil. Sem muita regularidade apareceu o Jornal de Timon de 1852 a 1858, sendo recebido
no país, não obstante o seu tom praguento, com merecida estimação e grandes
louvores. Chegou esse apreço à negação epigramática de que fosse obra de
brasileiro.
A primeira parte é um bom estudo
histórico, em estilo ameno e humorístico, feito não sobre expositores de
segunda mão, mas das mesmas fontes originais, das eleições nos tempos antigos,
médios e modernos, não só com a ciência dos documentos, mas com a intuição e
sentimento da vida pública dessas épocas. O estilo é o mais adequado ao gênero
de que era o autor o criador aqui, natural, prazenteiro, bem-humorado e
irônico. São as mesmas, com maior personalidade, mais ironia, até mais
acrimônia que às vezes chega ao sarcasmo, as qualidades de estilo da segunda
parte. Esta modificação de tom lha impunha o próprio assunto, por mais de perto
lhe importar. Vibram-lhe na pena por mais que o contenha o seu bom gosto e
natural compostura, e lhas disfarce a ironia, as paixões que lhe agitaram a
mocidade e não estavam de todo extintas nem na sua alma, nem na sociedade que
lha formara. Por isso é talvez essa parte a sua obra não só mais original,
porém, do puro aspecto literário, mais curiosa e mais viva. Conquanto aplicada
no Maranhão, fez João Lisboa nela um comentário perpétuo do que é entre nós a
vida política, cifrada como ele argutamente reconheceu, nas lutas dos partidos
e nas brigas eleitorais. Tem o seu opúsculo o sinal das obras que por virtudes
de pensamento e de forma não envelhecem e ficam contemporâneas de todas as
eras. Refere o seu citado minudencioso e fidedigno biógrafo que, horrorizado da
escravidão (a qual na sua terra, justamente mais do que em outras do Norte,
apresentava mais execrando aspecto), começou João Lisboa a escrever um livro,
meio história, meio romance, da escravidão no Brasil, como propaganda contra
ela. Foi isto nas vésperas de 1850 ou à entrada desse decênio. Em todo caso
antes do Jornal de Timon. O
aparecimento da Senzala do Pai Tomé,
como castiçamente vertia o Uncle Tom's
Cabin, de Beecher Stowe, onde parece achou semelhanças com o seu
principiado trabalho, fizeram-no desistir de continuá-lo. Havia, entretanto, em João Lisboa um
romancista, e esta intenção prova que ele próprio o sentia. Provam-no, porém,
melhor As eleições e os partidos no
Maranhão, ruim título de uma excelente porção do Jornal de Timon, onde há cenas, diálogos, invenções, descrições,
criações de tipos, figuras e situações fartamente reveladores de que não
carecia João Lisboa, antes as tinha em grau relevante, das qualidades de
imaginação, sem falar nas de expressão, de um bom romancista. As duas primeiras
partes do mesmo Jornal, revelam em João Lisboa um
pensador político e um moralista, no sentido literário dado hoje a este
vocábulo, como não temos talvez outro. Os seus Apontamentos, notícias e observações para servirem à história do
Maranhão, que constituem a terceira porção da obra, confirmando-lhe as
qualidades literárias, descobrem-lhe peregrinos dotes de investigador, de
erudito e de crítico, e fazem lastimar que como historiador não nos deixasse
mais que essa curta obra fragmentária e a Vida
do padre Antônio Vieira. À história do Brasil, como ela vinha sendo feita
aqui, até, se não mormente, pelo mesmo Varnhagen, história burocrática e
oficial, ainda com o feitio de crônicas ou anais, sem imaginação, filosofia ou
estilo, desanimada e tediosa, dava João Lisboa nova feição com a sua arte de
fazer viver as personagens e os sucessos, aproveitando algum rasgo mais
saliente deles com que os caracterizasse, descobrindo-lhes algum aspecto mais
pitoresco ou lhos engenhando com bom gosto e justo senso das coisas históricas.
Mas sobretudo com um sentimento brasileiro mais íntimo e perfeito que o de
Varnhagen, muito maior sensibilidade artística e capacidade literária de
expressão, e, também, compreendendo melhor do que nenhum dos seus predecessores
os aspectos sociais e psicológicos da História e a importância do povo nela.
Certos rasgos ou questões da nossa, como o respeitante aos índios, processos de
colonização portuguesa, feições e caracteres diversos da vida colonial, ninguém
aqui ainda os encarara com igual compreensão da sua importância, com tanta
sagacidade e inteligência como João Lisboa. Com alumiado entendimento viu a
questão dos índios sem as aberrações realistas de Varnhagen, nem o
sentimentalismo romântico da época, sendo muito para notar em favor da sua
inteligência a isenção com que apreciou o indianismo, em seu tempo tão
vigoroso, e lhe viu a falácia: "Esse falso patriotismo caboclo, espécie de
mania mais ou menos dominante, escreveu ele, leva-nos a formular quanto ao
passado acusações injustas contra os nossos genuínos maiores; desperta no
presente antipatias e animosidades, que a sã razão e uma política ilustrada
aconselham pelo contrário a apartar e adormecer; e ao passo que faz conceber
esperanças infundadas e quiméricas sobre uma reabilitação que seria perigosa,
se não fora impossível, embaraça, retarda e empece os progressos da nossa
pátria, em grande parte dependente da imigração da raça empreendedora dos
brancos, e da transfusão de um sangue mais ativo e generoso, único meio
possível já agora de reabilitação". Brasileiro de origem e nascimento,
brasileiro pelas mais íntimas fibras de sua alma e pelo mais profundo do seu
sentimento, João Lisboa é um dos nossos primeiros europeus, pelas lúcidas
qualidades do seu claro gênio, tento da civilização e desdém dos nossos
parvoinhos preconceitos nativistas e ainda patrióticos.
Não obstante carecer-lhe da
última demão, é a Vida do padre Antônio
Vieira ainda o que de melhor se escreveu sobre o famoso jesuíta, com mais
exata inteligência do homem e da sua obra de missionário e de político, e de
sua época. Não fora algum exagero de liberalismo, é uma obra que se poderia
dizer atual.
Nada adiantaria considerar João Lisboa
sob outros aspectos do seu variado engenho. Em nenhum desmereceu, quer pela
força ou destreza do pensamento, quer pelo vigor ou beleza da expressão. Mesmo
como orador, que dizem fora notável, deixou no seu discurso sobre a anistia
magnífico testemunho de uma viril eloquência e da mais bela, sóbria e comovida
linguagem oratória. É incontestavelmente um dos escritores que mais ilustram a
nossa literatura, dos poucos que hão de viver quando, na seleção que o tempo
vai naturalmente fazendo, houverem desaparecido grande parte de nomes ontem e
hoje mais celebrados que o seu.
Outros nomes, menos ilustres, mas
ainda estimáveis conta o grupo maranhense. São quase todos, se não todos,
produto manifesto da influência destes, geração criada na sua admiração e pelo
seu estímulo. Dos que têm o seu medalhão no pedestal da estátua de Gonçalves
Dias, é Gomes de Sousa o único sem jus à história da literatura. Gomes de Souza
(Joaquim) é de 1829 a
1863. Os seus contemporâneos tiveram-no em conta de gênio. Aos dezenove anos,
já formado em medicina, foi nomeado, após brilhante concurso, professor da
Escola mais tarde denominada Politécnica, e, parece, deu outras provas da sua
extraordinária inteligência, rara capacidade de estudo e variedade de aptidões.
Morrendo aos 34, não deixou mais que uma pequena obra fragmentária de
matemática e uma antologia de poemas líricos das principais línguas cultas. Foi
apenas uma bela e porventura legítima esperança malograda, mas de fato sem
importância literária.
Lisboa Serra (João Duarte, 1818-1855).
Contemporâneo em Coimbra de Gonçalves Dias e seu amigo dedicadíssimo, a quem
este deveu amparo quando se achou isolado e sem recursos em Portugal. Poetou
com longos intervalos e parcamente, mas com bastante sentimento e correção.
Galvão de Carvalho (Trajano, 1830-1864). Andou sucessivamente a estudar por
Portugal, S. Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde afinal se formou e ficou.
Havia nele a massa de um bom, talvez excelente poeta, com muita sensibilidade e
facilidade de expressão. Foi um dos primeiros que aqui cantou compassivamente o
escravo. Cantou igualmente a paisagem, a vida campesina e coisas brasileiras,
com sentimento e graça. Franco de Sá (Antônio Joaquim, 1836-1856). É poeta de
grande sensibilidade e sinceridade de emoção e rara facilidade e singeleza de
expressão, qualidades que a morte, colhendo-o aos vinte anos, lhe não deu tempo
de cultivar.
Desvanece-se ainda o Maranhão com
os nomes de Almeida Braga (Flávio Reimar), Celso de Magalhães, Marques
Rodrigues, Dias Carneiro, Augusto Colin, Frederico Correia, Frei Custódio
Ferrão, Vieira da Silva, Sousa Andrade, Antônio Henriques Leal, homens de
letras ou de saber, todos que com obras de vários gêneros e mérito continuaram
até perto de nós o movimento literário da sua província pelo grupo primitivo
iniciado.
Este grupo é contemporâneo da
primeira geração romântica toda ela de nascimento ou residência fluminense. O
que o situa e distingue na nossa literatura e o sobreleva a essa mesma geração,
é a sua mais clara inteligência literária, a sua maior largueza espiritual. Os
maranhenses não têm os biocos devotos, a ostentação patriótica, a afetação
moralizante do grupo fluminense, e geralmente escrevem melhor que estes.
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital
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