Invasão da Bahia
pelos holandeses
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
1 - Em 1609 celebra-se, entre a Espanha e as
Províncias Unidas dos Países-Baixos, uma trégua de doze anos. Conquanto, pelo
que respeita às colônias, fosse perfeitamente ilusório esse tratado, sempre se
teve em Holanda alguns escrúpulos em atacar o Brasil com intuito de conquista, limitando-se
os aventureiros aos gordos negócios da pirataria.
À medida, porém, que se ia aproximando o termo
daquela trégua, agitava-se entre os armadores de Haia o pensamento de completar
aquela primeira Companhia, que já operava com tanto sucesso na África e na Ásia,
por uma outra que viesse explorar as colônias da América.
Em 1621 (assim, portanto, que cessou a trégua)
autorizam os Estados Gerais a incorporação de uma nova Companhia das índias
para operar no Ocidente, fazendo-lhe concessões extraordinárias, que lhe davam
o caráter de uma verdadeira delegação de soberania nas terras onde se
instalasse. Em menos de dois anos estava a nova empresa organizada, e tratou-se
de estudar o plano de operações com que se começaria a agir.
Cuidava-se, naquele momento, de estabelecer no
Atlântico um cruzeiro destinado a dar caça às frotas que todos os anos
conduziam para a Espanha as fabulosas riquezas da América.
Foi logo a nova companhia convidada para aquela
obra, em que já se associavam a outra companhia e o próprio governo das
Províncias Unidas.
Mas os diretores daquela preferiram levar com mais
tática e segurança os seus cálculos, procurando primeiro na América oriental um
ponto de apoio para as suas operações no Atlântico.
Fixou-se, então, o desígnio na conquista da Bahia,
de onde seria fácil estender a influência, e mesmo o domínio flamengo, por todo
o país, e até ao Peru pelo interior.
O plano despertou alvoroços gerais entre os
argentários de Holanda, e teve logo aprovação do governo.
Pelos fins de 1623 estava equipada uma poderosa
frota de vinte e seis velas, montando quinhentas bocas de fogo, sob o comando
em chefe de Jacó Willekens, tendo como vice-almirante o temeroso Pieter Heyn. A
guarnição era de 3.300 homens, sendo 1.700 de tropas de terra, às ordens do
coronel Johan van Dorth, que seria também o governador da conquista.
2 - De vários portos de Holanda levantou ferros a
esquadra pelos fins de dezembro e princípios de janeiro de 1624 - Com exceção
do Holândia (a bordo do qual vinha van Dorth) vieram os navios reunir-se na
ilha de São Vicente (Cabo Verde), onde se demorou uns três meses, refazendo-se de
água e de víveres, e pondo em ordem o material de guerra.
Dali zarpou a 26 de março.
Tinham chegado avisos desta expedição à corte de
Madrid; e esta, como desde algum tempo não cessava de fazer, preveniu o
governador-geral, Diogo de Mendonça Furtado, recomendando-lhe que estivesse
vigilante e que cuidasse de fortificar a Bahia, valendo-se de quantos recursos
pudesse ter à mão.
Cuidou o Governador, secundado pelo entusiasmo de
muitos capitães da terra, de aperceber-se para a emergência.
Melhoraram-se as duas fortalezas, de Santo Antônio e de Itapagipe.
Reconstruiu-se uma linha de trincheiras que protegiam a cidade pelo lado da
terra. Levantou-se uma bateria (forte do Mar) num recife fronteiro à cidade.
Havia por ali uns tantos desgostos entre a
população, e até entre o bispo e o Governador. Tudo isso, porém, se desvaneceu
no dia em que correu a notícia de que pelas vizinhanças da barra andara uma nau
holandesa, e que apresara um navio negreiro que chegava da África, tendo em
seguida desaparecido.
Tanto bastou para que a população se alvoroçasse em
grande alarma, cessando todas as dúvidas e questões, e unindo-se todas as classes
e partidos. Puseram-se todos prontos para repelir os assaltantes; e o próprio bispo
foi apresentar-se ao Governador, oferecendo os seus serviços de guerra onde
fossem necessários.
Sem perda de tempo convocou-se toda a gente do
Recôncavo e imediações, tanto colonos como índios conversos.
Pode imaginar-se o alarido geral que lavrou por
aquela terra, a situação de angústia em que se viram as famílias,
principalmente dos moradores da redondeza, privadas dos respectivos chefes, e
sob a iminência de perigos a que os boatos davam proporções descomunais.
A todos os temores e aflições, no entanto, dominava
a exaltação daqueles ânimos, insuflados pela palavra dos padres e pelos
exemplos das autoridades.
Converteu-se a Bahia em verdadeira praça militar.
Todo o mundo abandonou engenhos, lavouras e oficinas, cuidando-se
exclusivamente de coisas de guerra, e só se ouvindo arruídos de peleja.
O bispo, D. Marcos Teixeira, tomou a si o comando de
grande parte das forças, dirigindo todo o serviço, superintendendo a disciplina
nos batalhões, ordenando exercício, e pelos estímulos do seu ardor nos quartéis
e nos templos, a associar a religião e a pátria, nutrindo de coragem a alma,
ora incendida, ora hesitante daquelas turbas.
3 - Mas passam-se os dias, as semanas, os meses, e
nada de aparecerem os anunciados inimigos.
Começava tudo aquilo a tomar uns ares de pura ilusão
no espírito de toda a gente. Desde muito que se vive ali como sob um contínuo
terror fantástico. Já se anda cansado de falsos rebates. A esquadra, que se
dava como tendo tomado direção do Brasil, havia mais de quatro meses, não chega
nunca. O navio, que se avistara um instante na costa, sumira-se.
Toda razão tinham, pois, os que não acreditavam em
tais perigos, com que tão grande celeuma andavam fazendo governos e capitães,
que mais pareciam comprazer-se de guerra que do labor pacífico e dos legítimos
interesses dos povos.
Entre os que menos criam na probabilidade de
agressões estava já outra vez o prelado, em cujo espírito só a insistência dos
navios produzia aquela alternativa de incredulidade e exaltamento.
E agora, refletia-se, tinha mesmo visos de pura
balela o último rebate; pois havia quase um mês que desaparecera aquela nau
avistada na costa; que isso era prova de que o navio era de piratas; e que, se
com efeito a esquadra flamenga tinha mesmo partido de Texel, não era possível
que demorasse tanto se o seu destino fosse mesmo o Brasil, como se dizia.
Todas essas reflexões dir-se-ia que eram contra os
baianos uma como conspiração do destino. Preparava-se assim, a alma daquela
população, para o destroço. Basta imaginar as impressões, que se lhe geram no
ânimo indeciso, com todos os agouros que se espalham. Não há coragem que não
diminua um pouco sob o susto de ameaças contínuas. Não há sangue-frio que se não
altere ao rumor de repetidos alarmas. O primeiro e seguro efeito dos rebates
falsos é exagerar o perigo anunciado.
A fortuna dos holandeses precedia-os, pois, na terra
que vêm buscando.
Começam os moradores a desertar para os seus lares,
e muito às claras, bem certos de que estavam ali fazendo um sacrifício sem
proveito. O próprio Governador e o Bispo não tiveram grandes razões com que
reprimir a dispersão, e limitaram-se a aconselhar aos retirantes que estivessem
de sobreaviso para acudir à cidade ao primeiro sinal.
4 - Não tiveram tempo de descansar muito. Passados
alguns dias, novo aviso se recebe de Boipeba. Mandou o Governador o próprio
filho a reconhecer os navios que se dizia estarem ali. Não demorou o capitão
Antônio de Mendonça a voltar com a certeza de que nas alturas daquela ilha se reunira
muitas velas. Agora não havia mais dúvida. De fato, a esquadra holandesa,
depois de mais de quatro meses, chegava aos nossos mares a 4 de maio; e a algumas léguas para o sul da Bahia,
punha o almirante em ordem os seus navios.
Dá então o Governador o rebate geral; e a iminência,
agora visível, da refrega põe toda a terra em tumulto. Acode a maior parte da
gente à praça. Apresenta-se outra vez o Bispo ao Governador, com todos os da sua
casa e todo o clero, dizendo-lhe que — "conquanto na sua idade mais lhe
conviesse pelejar com orações do que com armas, confiava que o Senhor dos
exércitos lhe daria forças para, se fosse necessário, sacrificar a vida pelas
suas ovelhas, e o ajudaria contra um inimigo rebelde a Deus e ao rei".
Em dois ou três dias tinham reunido na cidade uns
1.000 e tantos homens, quase todos voluntários, pois da tropa de linha não havia
mais que 80 soldados.
Distribuiu o Governador essa gente pelos pontos mais
expostos a ataques, ficando Antônio de Mendonça com a sua companhia para acudir
onde fosse necessário.
Foram postos em lugar abrigado os navios mercantes
que estavam no porto. Aumentou-se a guarnição do baluarte fronteiro à cidade.
No forte da barra, além de muitos
flecheiros indígenas, ficaram uns 200 homens. No porto, ao mando de Vasco
Carneiro, ficava o maior da força.
5 - No dia 8 de maio apresentou-se a esquadra
holandesa defronte à barra, a umas nove léguas da costa.
Houve logo um desvario geral na cidade, começando,
em vasto atropelo, a fuga das famílias.
Nem era para estranhar aquele imenso terror: da
Europa falava-se em bandidos hereges, inimigos cruéis, queimadores de imagens e
igrejas, e desalmados facínoras.
Tudo isso eram os próprios holandeses que faziam correr,
de astúcia, para abalar o ânimo dos colonos.
A estratégia de Willekens foi, na verdade, de uma
segurança absoluta: revelando, não apenas capacidade militar, mas também exato
conhecimento do país, da situação moral dos habitantes, e mais ainda das condições
de defesa da praça.
O plano de ataque, aprovado em conselho de guerra,
consistiu em reunir as tropas de desembarque em quatro navios, aos quais se
juntariam as chalupas necessárias para o transporte de bordo para terra; e o
mais da frota penetraria no porto atacando imediatamente a cidade. Enquanto se fizesse
o bombardeio, no momento oportuno, a um sinal do almirante, desembarcariam dos
quatro navios as forças (perto de 1.500 homens) junto ao forte da barra.
Era, como se vê, formidável o plano, dada a situação
com que contavam os agressores. Sem conhecer perfeitamente o estado de coisas
que iriam encontrar, não se atreveriam sem dúvida os holandeses a arriscar
assim aquele golpe. Para o burlar, ou pelo menos, para fazer tudo mais difícil,
bastaria que o forte de Santo Antônio estivesse em condições de impedir o
desembarque daqueles 1.500 homens.
Sabendo, no entanto, como se encontrava a terra,
entrava ali o inimigo muito confiante e seguro de tomar a praça quase de
assalto.
6 - No dia seguinte (9 de maio) pela madrugada,
transpuseram a barra os navios que conduziam tropa, sob as ordens de Pieter
Heyn; e tomaram posição defronte à praia onde devia fazer-se o desembarque.
Logo atrás entraram os outros navios, avançando
afoitamente, sem rebater o fogo da fortaleza; e foram pôr-se em linha diante da
cidade.
Deu então o almirante uma salva, e ato contínuo,
dela destacou-se um batel com bandeira branca, na direção do baluarte.
Não esperaram, porém, os de terra, pelo
parlamentário: deram o sinal de fogo e rompeu o combate. A frota inimiga
descarrega contra a cidade, o forte e os navios mercantes atracados, toda a
massa da sua artilharia. "E tal foi — descreve o padre Vieira — a
tempestade de fogo e ferro, tal o estrondo e confusão, que a muitos causou perturbação
e espanto; porque, por uma parte os muitos relâmpagos fuzilando feriam os
olhos, e com a nuvem espessa do fumo não havia quem se visse; por outra, o contínuo
trovão da artilharia tolhe o uso das línguas e orelhas; e tudo junto, de
mistura com as trombetas e mais instrumentos bélicos, era terror a muitos, e
confusão a todos".
Dura todo o dia a luta, estende-se pela noite. E
então a temeridade do inimigo só não desorienta de uma vez os nossos, porque
nestes pode mais a cólera que o espanto. Chusmas de marinheiros atiram-se aos
navios mercantes, e apoderam-se logo de alguns. Esta manobra é de efeito
tremendo. Os tripulantes dos navios, não podendo defendê-los, lançam-lhes fogo.
"Isto foi causa de se estender o dia e a guerra; porque ainda que era noite,
vencia as trevas dela a claridade do fogo, que ateando-se no breu e no açúcar (das
embarcações incendiadas) lançava grandes labaredas”...
Aproveitando-se daquele espetáculo sinistro, vai o
próprio Heyn, com um troço de marujos, tomar de assalto o forte do Mar; e dali,
voltam as baterias contra a cidade. Só alta noite é que, sob fuzilaria
incessante de terra, foram os assaltantes obrigados a abandonar por sua vez o
baluarte.
Enquanto o vice-almirante executava esta manobra,
desembarcavam junto à fortaleza da barra as tropas que, sob o comando de Albert
Schouten, só esperavam por aquele momento.
Guiadas por práticos de confiança, marcham as forças
contra a cidade; mas havendo encontrado a gente de Antônio de Mendonça, tiveram
de acampar no alto de São Bento até o dia seguinte.
É durante o resto da noite que saem da cidade os que
tinham procurado defendê-la.
Pode-se inculpar a Diogo de Mendonça do erro
lamentável de haver, no meio daquela balbúrdia, conservado vivo demais o seu
pundonor de homem de guerra, quando é certo que cedendo, menos intransigente, à
contingência daquela desgraça, e saindo da cidade, poderia ter logo posto em
ordem aquela gente debandada, e apressado o desforço contra os invasores.
O que é, porém, preciso levar-lhe a crédito da honra
cívica é sem dúvida aquela grandeza moral com que aguentou a tormenta. Até os
últimos instantes, andara ele "na confusão — diz ainda Vieira — cansado, aflito,
como outros Enéias na do incêndio, juntando e animando os soldados a morrer
antes com honra que a ter vida sem ela"... Diogo de Mendonça — escreve o
próprio Netscher — ficou com sua família na cidade, e defendeu-se ainda muito
tempo em seu palácio com verdadeiro frenesi, julgando que lhe seria indigno
fugir".
E no entanto, aquele imenso desvario, que passara a
cidade para os campos e bosques da redondeza, não fora pressentido sequer dos
inimigos.
Pela manhã, avançam cautelosamente as forças de
Schouten, preparadas para, a tiros de canhão, abrir os muros, quando viram ali
hasteada uma bandeira branca.
E viram, com espanto, que a cidade estava deserta.
Tomando conta da praça, foram imediatamente ao
palácio do Governo, onde prenderam a Diogo de Mendonça e os poucos que com ele
estavam.
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