Importação de africanos
1 - Desde épocas imemoriais
havia na África a escravidão histórica; isto é, a que é própria de todas as
sociedades humanas numa certa fase da sua evolução social e política.
Da escravidão histórica nasceu
a escravidão mercantil; isto é, a exploração do cativeiro como um negócio. Esta
é exclusiva e característica das raças africanas degradadas, desde que se
puseram em relações com outras raças em mais alto grau de cultura.
Sem remontar a tempos mais
remotos, parece que se podem ter os árabes como os criadores da moderna escravidão
do negro.
As vitórias do Islã deram como
resultado o estabelecimento do tráfico pelo extremo nordeste do continente. Com
o dervixe penetraram até o coração da África as legiões do profeta. Como a
conquista — a forma de proselitismo preferida pelos apóstolos de Alá — era
fácil, e sem glória nem proveito entre selvagens, salvava-se ao menos o que era
possível no interesse dos conquistadores: o monopólio do comércio, e o tráfico
de escravos destinados a suprir o Sul da Ásia e grande parte do Mediterrâneo oriental.
Esse tráfico ampliou-se com a
expansão do Crescente por todo o Norte da África. Teve então o tráfico externo
dois largos emunctórios: o de leste, pelo mar Vermelho; e o do norte, pelo
deserto, até o Magreb. Nos princípios do século XV, puseram-se os primeiros
navegantes cristãos em relações com os indígenas da costa africana de leste.
Alguns aventureiros chegaram a internar-se no continente subindo os grandes
rios.
Encontraram-se esses com
traficantes e mercadores árabes, e viram então o estado em que se achavam os
negros.
Segundo se diz, o primeiro
português que levou para o reino alguns africanos do Senegal fora Gil Eanes.
Mesmo admitindo que antes de 1432 não se conhecessem na Europa (ao menos na
Península Ibérica) escravos negros, pode-se fixar que só depois de meados do
século XV é que se começou a introdução em Portugal. Ainda assim, o que se fez
até fins do dito século não passou de meros ensaios, sem o caráter franco de
especulação mercantil.
Basta ver que, em 1483 ou 84,
ainda Diogo Cão levara da Guiné para Lisboa, como curiosidade, quatro rapazes
negros que lhe confiara um régulo da costa. Não os levou, porém, como escravos,
senão como visitantes, para que depois, ao voltar para a África, como
efetivamente voltaram, contassem entre os seus o que tinham visto na terra do
branco.
O tráfico efetivo, data,
portanto, dessa época (fins do século XV). Primeiro, fazem-se experiências em
Madeira e em Porto Santo; em seguida, levam-se negros para os Açores; logo
depois para Cabo Verde; e por último (por meados do século XVI) trazem-se para
o Brasil.
2 - Regulou-se logo o negócio
(a compra na África, o transporte, e a venda nos mercados) com aquiescência, e
mesmo com o apoio de todos os governos. A competição mais forte dava-se entre
especuladores da França, da Inglaterra, de Portugal e da Holanda.
Foi principalmente nas novas
terras descobertas que se sentiu mais necessidade de braços vigorosos, sem os
quais os latifúndios, que facilmente se adquiriam, não teriam nenhum valor.
É para a América, pois, que se
fez o tráfico mais vasto.
Não foi, no entanto, o Brasil
o núcleo mais denso de população negra na América; nem nos toca a nós a
prioridade do tráfico. Antes de nós, importaram os espanhóis as primeiras levas
para as Antilhas. Cuba e Haiti tornaram-se definitivamente, sobretudo esta
última ilha, os maiores centros de elemento africano em toda a América; e a tal
ponto que ainda hoje, numa porção considerável da antiga Hispaniola, é a negra
a raça preponderante.
Ao Brasil, só com alguns
donatários, é que começaram a chegar os primeiros negros. A princípio eram
empregados exclusivamente em serviços domésticos; depois, no trabalho dos
engenhos.
Os africanos eram trazidos por
empresas, que disso se ocupavam como negócio lícito e rendoso.
Do porto de desembarque
seguiam as turmas para estações de refresco, de onde se recolhiam depois aos
armazéns das feiras.
Os dois grandes entrepostos da
introdução, no Brasil, foram a Bahia e o Rio de Janeiro. Daí é que saíam
escravos para todo o país.
Tem-se calculado em milhões o
total de africanos que durante três séculos entrou aqui na fusão geral. É isto
bastante para sugerir a enorme importância deste coeficiente na formação do
nosso complexo étnico.
3 - Nos primeiros tempos da
colônia, até meados do século XVII, os núcleos mais densos de escravatura
estavam no Norte, em Pernambuco principalmente, e na Bahia. Logo depois,
tornou-se também o Rio de Janeiro um centro notável.
Durante todo o século XVIII
(primeiro devido ao trabalho dos engenhos, em seguida ao serviço agrícola) o
Rio se fez um como porto africano, com aspecto de uma Loanda mais vasta e mais
agitada.
Nem todos os escravos, aliás,
iam para o interior. Muitos deles ficavam por aqui mesmo, ou nos lares como
fâmulos, ou nos armazéns de comércio, nos serviços de estiva e de transporte
local, e até em pequenas oficinas de artes mecânicas.
Desenvolveu-se mesmo entre a
gente mediana da terra o costume de comprar negros para os por de aluguel em
fábricas, ou de soldada na praça, ou em obras públicas. Este género de negócio
tornou-se logo muito comum. Uma família que conseguia adquirir um casal de
escravos tinha feito às vezes um seguro patrimônio. Era um bem que aumentava,
tanto pela procriação, como pelo acréscimo do valor venal que o escravo ia tendo.
A fecundidade da raça continuou aqui a ser espantosa como na África. Muitos
senhores, em vinte ou trinta anos, viam triplicada ou quintuplicada aquela
propriedade, sacrílega aos nossos olhos de hoje, mas naqueles tempos só
preciosa.
Quanto à valorização do
escravo, basta ver que ainda pelos meados do século XVIII custava uma peça da
índia, ou um fôlego vivo (como se dizia em documentos oficiais) na média
100$000 (os molecotes, de 40 a 80$000) e já em princípios do século XIX, o
valor de cada indivíduo foi crescendo de 500$ até 2:000$000 e mais. O escravo
ladino (já ensinado) valia muito mais que o boçal (chegado recentemente da África).
O crioulo nascia já valendo mais. Um moleque inteligente, sabendo algum ofício,
arte ou mister, valia dinheiro. Uma jovem mulata, vistosa e prendada, era uma
fortuna.
O declínio da mineração fez
volver pouco a pouco a atividade geral para as indústrias agrícolas. O escravo
foi passando da lavra para o eito. De princípios do último século em diante, a
lavoura do café começou a deslocar para São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, a
população negra.
Criou-se então o tráfico
interno: os novos negreiros compravam escravos nas cidades para os vender nas
fazendas.
Nas cidades, com os antigos
senhores, ficavam só os escravos de estimação, as amas de peito e as amas
secas, os criados domésticos {as mucamas), artífices e operários. Foram esses
elementos que entraram na fusão; e hoje se acham mais ou menos diluídos no
aspecto geral da população brasileira.
4 - Procurando apanhar os
vestígios que a escravidão deixou no caráter nacional, vejamos o que é possível
num relancear de olhos.
Foi o escravo que desnobilitou
o trabalho. Ninguém se convence, mesmo hoje, de que num ofício se possa ser
homem de sociedade. As próprias artes liberais voltaram a ser aqui o que tinham
sido na Idade Média. Saber música, tocar um instrumento, conhecer desenho ou
pintura, ser escultor ou arquiteto — eram habilidades que não convinham a
pessoas de família ou de posição social. Ensinar meninos era profissão quase
degradante.
É por isso mesmo que, em
regra, os artistas do período colonial vinham da escravidão, ou das classes
mais humildes.
A coexistência (e na maioria
dos casos, o convívio) do senhor e o escravo (formando quase verdadeiras
castas) deixou em toda a nossa psicologia de povo profundos vincos, que só a
obra da cultura fará desaparecer de todo. É fácil assinalar, por exemplo: — um
sentimento exagerado
da fortuna e do poder, e até
de funções (às vezes mesmo as mais precárias) — em contraste com a mais
absoluta subserviência diante de uma fortuna ou de um poder maior, ou de
funções mais altas; ao lado de uma negação absurda da autoridade — um ridículo
autoritarismo no cargo mais insignificante alternando com a mais leviana
desestima pela justiça e pela ordem, até as mais incríveis audácias — uma
refinada hipocrisia, desplante para invocar, em momento oportuno, o império da
lei ; a violência arrogante, e o mais baixo renunciamento pessoal; a filáucia
destemperada, e a indolência vencida, a desídia moral do bárbaro; a idolatria das
grandezas e o desprezo da humildade; e tantas outras virtudes, de que às vezes
nem nos apercebemos.
O regime servil equivaleu
perfeitamente, nos seus efeitos, aos antigos despotismos. Dele, como destes,
não podiam deixar de sair: um homem que sempre mandou, e outro que sempre
obedeceu; cuja sorte era morrer no trabalho, e outro que tinha direito a gozar voluptuosamente
a vida. à custa do seu semelhante. Um e outro vieram da escravidão, e ficaram como
taras no sangue nacional.
5 - E não se pense que as
altas classes ficavam imunes dessa herança.
Foram exatamente as famílias
ricas que recolheram logo, para todos os serviços domésticos, o homem de cor.
Era muito raro encontrar casas onde houvesse fâmulos que não fossem negros;
pois, os brancos, a isso se recusavam como a uma degradação. Não havia serviço,
mister, e até festa de lar, onde a criadagem negra não entrasse. Mesmo fora de
casa, indo à igreja, ou viajando, a família não prescindia da sua escolta de
serviçais.
A ação do escravo não se
limitava, aliás, a exercer-se nesse trato íntimo e contínuo com a família do
senhor.
Um veículo mais franco do sangue
africano foi a intimidade em que a mulher negra ficou, desde logo, com a parte
da família branca exatamente mais suscetível de ser influenciada: os filhos do
senhor, desde o nascimento até a puerícia, eram entregues à ama e à governante.
Em seguida à ama de leite; faziam o resto a ama seca e o pajem.
Quem quiser hoje, no entanto,
saber onde é que subsiste melhor a índole do negro sobrevivente da escravidão,
não há de ficar nos grandes centros urbanos; mas há de visitar as paragens mais
escusas das cidades, os pequenos povoados nas vizinhanças das praças, os sítios
onde, depois da abolição, se foi refugiar uma grande parte da população negra.
Se no próprio caráter nacional
é incontestável a influência do escravo, em tudo o mais — nas indústrias, nas
artes, nos ofícios, nas festas, na língua — se encontram vestígios bem vivos da
ação do africano.
6 - Estudando-se o negro sob o
ponto de vista do concurso que prestou à raça branca na formação da
nacionalidade, tem-se de reconhecer que ele representa em toda a nossa história
um contingente de primeira ordem.
Aguentou ele aqui, durante
mais de três séculos, todo o peso do trabalho de que viveu a colônia. E isso
não impediu que em toda parte facilitasse o estabelecimento dos portugueses,
guardando-lhes as povoações e as fazendas contra os índios.
Passou em seguida a defender a
terra contra estrangeiros. Em todos os movimentos de repulsa a corsários e
aventureiros e a cobiça de outros governos, figurou o negro com uma coragem e
galhardia que o igualaram aos grandes heróis das duas outras raças. É mais do
que provável que, sem o negro e o índio, não teria o português mantido aqui o
seu domínio.
Mas é como agente da nossa
riqueza que teve o africano, na América, o seu papel mais considerável. Sob este
ponto de vista sobreleva ele indiscutivelmente o elemento indígena. "Os
escravos, dizia Antonil, há mais de dois séculos — são as mãos e os pés do
senhor de engenho; porque sem eles, no Brasil, não é possível fazer, conservar
e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente". Sem eles coisa alguma se
fazia que dependesse de esforço físico e causasse grandes fadigas.
Não lhes coube, pois, apenas o
trabalho dos campos e dos engenhos: além das grandes culturas que só eles
fizeram, em todo género de trabalhos figuram como quase únicos braços de que
dependia a nossa produção geral.
Eis aí como se destaca, em
pleno relevo, a dupla grande função da raça negra nesta parte da América: ela
criou a economia da colônia, sem a qual não se teria fixado aqui o elemento
dirigente; e guardou o território, sem o qual não seria o Brasil o que é hoje.
É evidente que sem a unidade
moral em que ficaram as três raças; sem aquele profundo sentimento da pátria em
que elas se identificaram nas horas do perigo; e sobretudo, sem uma forte
capacidade defensiva é evidente que não teríamos conseguido trazer íntegro e
indivisível, até à sua plena eclosão política, este imenso país.
7 - Há ainda uma prova que não
se há de esquecer quando se quiser julgar com justiça a natureza moral do
africano: é o modo como ele protestou contra a escravidão.
Sob este ponto de vista, a
sorte do negro é muito mais dolorosa que a do próprio índio. Este ainda estava
na sua terra, e tinha por si, não só a soberania do sertão, como o patrocínio
do missionário, a voz da humanidade, e até a palavra de ordem dos governos.
O negro não teve por si
misericórdia de nenhum coração. No seu exílio, nunca teve uma alma a cuja
piedade pudesse recorrer nas suas amarguras. Todo aquele mundo, surdo e
fechado, tinha para ele a mesma repulsa que se tem pelo simples animal.
Pois assim mesmo, vencido e
degradado, teve ainda o negro alma bastante para dar testemunho da sua
indignação contra a força. Desde o primeiro instante do castigo não soube
dissimular o horror da sua imensa miséria. As fieiras de negros que saíam do
interior da África chegavam aos entrepostos da costa sempre desfalcadas pelo suicídio.
Durante a espera dos brigues, muitos morriam de tristeza ou de cólera. Em
viagem, no porão do navio, uns enlouquecem, outros deixam-se morrer de fome e
de sede.
À terra desconhecida chegam
todos como idiotas.
E então começa o longo
noviciado de dor que a raça teve de fazer aqui para chegar à história.
Primeiro resignam-se
espantosamente com a sina.
Depois, vai-se erguendo, hirto
e sinistro, a rebater o crime pelo crime. Não haverá talvez um recanto do país
onde não subsista memória de alguma tragédia.
Travara-se a luta. Como o
senhor era sempre o mais forte, o negro, ou capitulava agravando o suplício, ou
fugia para as florestas. Era a fase dos quilombos.
Abre-se depois, já nos nossos
dias, a última fase. O negro concilia-se com o destino para vencê-lo.
E é então que ele vai ver como
afinal o branco estava, de alma aberta, a seu lado. A causa do negro tornou-se
causa de toda a nação.
A história, em suma, é feita
assim mesmo de tais contrastes. O que andamos fazendo é isso mesmo: andamos
reduzindo cada vez mais o erro e a injustiça.
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Imagens:
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