3/12/2018

História do Brasil: a Terra (Ensaio), de Rocha Pombo



A Terra

1 - O nome que dera Cabral à terra descoberta foi logo mudado no de Terra da Santa Cruz.

Durante o reinado de D. Manuel o nome oficial foi Província de Santa Cruz.

Uma carta de 1527 traz já Santa Cruz do Brasil.

Os missionários nunca deixaram o nome primitivo de Terra ou Província de Santa Cruz.

Está, no entanto, plenamente verificado que na linguagem comum, e principalmente entre os comerciantes, desde os primeiros anos se dizia — Terra do Brasil. E assim se foi, pouco a pouco, esquecendo a primeira denominação.

Apesar da relutância com que se deixava o nome de Santa Cruz, venceu, pois, o de Brasil, ficando aquele como simples reminiscência histórica, e usado apenas em estilo acadêmico.

Quanto à extensão da terra, por mais escassas que fossem as explorações feitas durante o reinado do rei venturoso, pode-se ter como já mais ou menos conhecido em 1521 o relevo marítimo de uma grande parte da América do Sul, do lado do Atlântico.

E pelo que respeita particularmente à jurisdição portuguesa, o que se sabe é que durante quase todo o período colonial nunca se conseguira determinar geograficamente os limites do domínio pelo meridiano convencional de Tordesilhas.

A conquista alterou ainda muito os confins com as terras de Espanha; e mesmo depois que a diplomacia reconheceu, para simplificar o problema de contérminos, o uti possidetis, corrigindo a insuficiência de tratados antigos por meio de novos convênios, mesmo assim continuou incerta a extensão do país.

Só depois da independência é que se foram convencionando as linhas definitivas de fronteira com os povos limítrofes; e esse trabalho delongou-se até os dias da República.

Só hoje, portanto, é que se pode dar um cálculo aproximado de superfície total do Brasil; parecendo que se não fica muito longe da verdade estimando-a era cerca de oito milhões e meio de quilômetros quadrados.

Confinando com quase todos os países da América do Sul, tem hoje o Brasil o seu vasto contorno continental perfeitamente fixado.

2 - Quem pudesse abranger de relance uma miniatura do nosso território, vê-lo-ia limitado, de uma parte, a oriente, pelo oceano; e da oposta, pelas abas dessa maravilhosa região, que é a única no globo — a das Cordilheiras como vastas muralhas a separar-nos daquele outro mundo do Pacífico.

Dos Andes para leste, o solo como que se vem abaixando até o Atlântico; e os acidentes do relevo desaparecem na vastidão do continente: a altitude, a extensão, a massa das nossas serranias, tudo se funde na grandeza do conjunto, para fazer, da porção americana que ocupamos, uma superfície baixa e uniforme comparada com a zona andina, e quase na sua totalidade  uma como verdadeira formação sedimentária, devido principalmente àquele descomunal sistema de montanhas.

Neste amplo cenário parece, ainda hoje, estar flagrante a história geológica do continente. Pelo menos os grandes fenômenos da gênese continental se apanham de surpresa, desde a época em que o hemisfério começou a emergir do oceano primitivo; e mesmo a maneira como se foi constituindo e integrando até o presente.

Já se tem mesmo como até mais que provável que as primeiras que apareceram na imensidade vazia devem ter sido as terras do nosso planalto central e outras altas do país, como as cumeadas das nossas cordilheiras, que teriam surgido com grandes ilhas no infinito das águas.

Em seguida, levantaram-se os Andes (quem sabe se coincidindo com a desaparição da lendária Atlântida!) como para formar o arcabouço da figura continental.

Em relação às ilhas que lhe ficavam a leste, deviam os Andes parecer, então, ainda muito mais altos.

Deu-se depois o solevamento dessas ilhas e de grande parte das terras submarinas que jaziam entre elas e as Cordilheiras.

Essas terras emergentes foram apertando contra o baluarte ocidental, e constringindo-a cada vez mais, a porção de oceano, de cuja existência ficaram vestígios, até hoje, em todo o nosso interior até os Andes.

É assim que se podem considerar as grandes bacias divergentes do Amazonas e do Prata como compreendendo hoje as vastas zonas que estiveram cobertas pelo antigo mediterrâneo, e que foram emergindo e solidificando à custa principalmente do desbastamento dos Andes.

Estas ideias já não se reduzem ao domínio das hipóteses: têm por si a opinião de muitos homens de ciência.

3 -  O nosso sistema orográfico, de ordem secundária no continente, como acabamos de ver, é constituído por duas grandes cadeias — a marítima e a central —, e pelas montanhas da vertente norte do Amazonas.

A cordilheira Marítima (ou Serra do Mar) começa no sul um pouco acima da lagoa dos Patos; e, perlongando a fita marítima, aproximando-se nuns, e noutros pontos afastando-se mais ou menos da costa, cai até o Rio Grande do Norte (perto do cabo de São Roque).

Em toda esta longa extensão (de mais de 500 léguas) amplia-se irregularmente, ou se aperta, e projeta em muitos pontos grande número de ramais e contrafortes.

Pelas alturas do Rio de Janeiro, correspondentes, no interior, ao norte de São Paulo e ao sul de Minas, a ramificação é mais profusa e desordenada, dividindo-se a massa da cordilheira em duas linhas quase paralelas — a da Marítima propriamente, e a da Mantiqueira.

A cadeia central, ou das Vertentes, é ainda mais extensa e complicada, mas é menos notável pela altitude. Estende-se do extremo noroeste de Mato Grosso, e tomando direção de sueste, vem até confins de Goiás e de São Paulo, e daí dobra-se para nordeste até o Ceará.

A Cadeia de Parima (ou das Guianas) no extremo norte, confins do Brasil com os domínios da França, da Holanda e da Inglaterra, e com a Venezuela, é a menos considerável.

A nossa nesografia geral compreende: — ilhas oceânicas (como as de Fernando de Noronha e as da Trindade); — ilhas costeiras (como a de Marajó, a Caviana, a Mexiana, e outras, no estuário do Amazonas; a do Maranhão, onde está a cidade de São Luís; Itamaracá, na costa de Pernambuco; Itaparica, à entrada da baía de Todos os Santos; a do Governador, na baía do Rio de Janeiro; a ilha Grande; a de São Sebastião, a de São Vicente e a de Santa Catarina); e ilhas fluviais (como a do Bananal, na bacia do Tocantins-Araguaia; e grande número de outras no Amazonas, e em todos os nossos maiores rios).

4 -  A nossa potamografia geral pode reduzir-se a três seções: a amazônica, a platina, e a terceira compreendendo as bacias secundárias que se não incluem nessas duas.

A do Amazonas — Tocantins é a mais ampla e opulenta vertente fluvial do mundo: abrange uma região de mais de oito milhões de quilômetros quadrados, pertencendo ao Brasil mais de dois terços dessa amplitude. Em Tabatinga, ao entrar em território brasileiro, é de três quilômetros a largura do rio.

Quando se estreita um pouco, e sobretudo na época das cheias (de novembro a março), as águas se espalham por largas redes de furos, canais e lagunas.

Os mais notáveis afluentes do Amazonas são: o Javari (limite do Brasil com o Peru), o Madeira, o Tapajós, o Xingu, e o Tocantins (da margem direita); e o Putumaio, o Japurá e o Negro (da outra).

A bacia do Prata, na parte que pertence ao Brasil, compreende águas do Paraná, no interior; do Paraguai a leste; e do Uruguai ao sul.

O maior dos rios que ficam fora das duas grandes bacias indicadas, é o São Francisco.

Além deste: o Parnaíba (limite de Maranhão com o Piauí), o Itapicuru, o Apodi, o Doce, o Paraíba do Sul e outros muitos de menor curso.

A nossa rede fluvial interna é admirável pela grandeza do teatro que há de abrir à capacidade da raça em futuro não longínquo.

A Amazônia comunica-se, através da Venezuela, com o mar das Antilhas; pela Bolívia, pelo Equador e pela Colômbia, seguindo o curso de numerosos afluentes do rio-oceano, aproxima-se do Pacífico; e pelos grandes tributários que lhe vão do sul, alcança o Amazonas as contravertentes do Prata; e por outros, como o Tocantins, ganha o São Francisco, e por este vem ao Atlântico; alcança ainda o Paraná, e por afluentes deste chega até a cordilheira marítima, à vista do oceano.

5- Passando à nossa climatologia geral, o mais que é possível acerca de um país cujo território abrange quase 40 graus de latitude, a maior parte no hemisfério do sul, é assinalar a regularidade das modificações que as circunstâncias climatológicas determinam.

Para isso, o que é mais simples é dividir o país em zonas, onde seja possível reduzir a variedade de diferenças locais a médias aproximativas, de algum valor para a apreciação do conjunto.

O critério para tal divisão tem de fundar-se na própria natureza do país e na proporcionalidade dos vários elementos que entram na formação dos climas.

Teremos assim: a zona marítima, compreendendo toda a faixa litorânea, do cabo Orange ao extremo sul; e a zona do interior.

A primeira é a mais uniforme, não obstante a desigualdade de latitude.

Uma singularidade notável, e que é talvez a mais perfeita característica do clima, é sem dúvida a que consiste na pequena oscilação termométrica que se verifica em todo o nosso litoral.

As mais completas observações locais em longos anos registradas dão apenas 3 a 4 graus de diferença entre as médias, desde o Rio Grande do Sul até o extremo norte.

O clima de toda a costa é muito semelhante ao do Rio de Janeiro.

Mesmo as ligeiras diferenças que se notam quase que desaparecem sob a ação das contínuas correntes atmosféricas que lavam toda a região marítima.

Outra particularidade notável é que a diferença entre os extremos termométricos é crescente de norte para sul: e daí resulta a crescente regularidade das estações à medida que se vai do sul para o norte.

Dá-se ainda um fenômeno, que parece estranho à primeira vista, mas que é perfeitamente explicável se não esquecermos que é preciso aqui juntar sempre, ao da latitude, outros vários coeficientes essenciais do clima: é o aumento da máxima termométrica também de norte para sul, pelo menos até certa latitude, e em todo o continente. É assim que, de janeiro a março, se sente muito mais calor em Buenos Aires do que em Manaus ou Belém.

A zona do interior é muito mais acidentada; e tem de ser subdividida em três seções: a da bacia amazônica; a dos chapadões que dividem as águas das duas grandes bacias; e a do sul, compreendendo os Estados de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande.

No seu aspecto geral, o do Amazonas é um clima quente, mas muito longe de ser abrasador. A máxima termométrica só excepcionalmente é que excede ali a 33 graus; e a oscilação é de 13 a 14. A média é de 26 graus.

Na segunda seção do interior a média geral fica sempre entre 20 e 25 graus. É esta seção delimitada pelos paralelos 15 e 24.

Grande parte de São Paulo e todo o território do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul constituem a terceira seção. Aqui a média regula por 17 ou 18 graus.

6 - No Brasil é fácil determinar o valor do regime dos ventos como fator decisivo do clima. Aqui, a terra, entre o oceano e os Andes, produz deslocações muito regulares. A atmosfera sobre o mar é muito mais fria do que em terra. Mais fria ainda é a camada vizinha das Cordilheiras. Entre umas
e outras massas de baixa temperatura, fica o nosso ambiente continental, de temperatura em regra mais elevada. Daí a regularidade das duas correntes gerais, que explicam o que tem de particular o nosso clima — a que nos vem do Atlântico e a que sopra dos Andes, e que, encontrando-se, tomam rumo para o norte ou para o sul.

E aí estão os quatro ventos gerais dominantes: os alísios, os de leste, os do sul e os do norte — é claro que sujeitos às variações devidas à intercorrência de causas secundárias derivativas.

Este regime dos ventos determina a frequência e a quantidade de chuvas em todo o país. Na parte da costa onde dominam os alísios livres da cordilheira marítima {da Paraíba para além) há muito mais irregularidades que no resto até o sul. Daí talvez as condições excepcionais daquele trecho sob o ponto de vista meteorológico. Por ali tanto se conhecem longas chuvas  torrenciais como grandes secas.

Ao regime das chuvas correspondem a frequência e intensidade das trovoadas. Ainda sob este aspecto a nossa meteorologia geral pode ser discriminada em grandes zonas: a costeira, a contígua formada pelas serranias paralelas no litoral, e a do interior.

A medida que se vem do norte para o sul, na primeira zona, são mais frequentes as trovoadas. Nos pontos da costa onde a cordilheira marítima corre mais distante do oceano (mesmo no Rio de Janeiro), as trovoadas são, no entanto, raras. Nos pontos onde a serra é mais elevada, há paragens em que, durante os meses de novembro a março, troveja quase diariamente.

Na zona do interior, quanto a trovoadas, dá-se o mesmo que assinalamos quanto às chuvas. Em regra, é o relevo orográfico, depois do regime dos ventos, o que regula melhor a frequência das trovoadas. É assim que mesmo no interior, em regiões de planura, o fenômeno não é tão frequente. Quanto, porém, mais nos aproximamos dos Andes, vai sendo, não só mais frequente, como de mais violência.

Uma ordem de fenômenos, da física terrestre, quase desconhecidos no Brasil, é o de movimentos sísmicos. Não se tem notícia até hoje senão de vagos tremores, que nunca passaram de repercussões de terremotos nos Andes.

7 - Das condições físicas aí ligeiramente esboçadas decorre a salubridade geral do país. Todos os cronistas dos primeiros séculos têm uma só palavra de admiração pela excelência da terra.

O único mal que atacava os índios em certas situações era a malária. Mas, esse mesmo não se conhecia nos núcleos policiados.

Com o tempo isso mudou. Aumentava a população, formavam-se grandes centros, que se punham em comunicações com outros portos do exterior, e sem que a essas mudanças correspondessem medidas de cautela contra os "ares novos" que assim se iam criando.

Começamos, pois, a perder, desde o século XVI, a nossa imunidade contra invasões de epidemias; e para isso, além das causas referidas, concorria também a importação de africanos em massa.

Por cerca de duzentos anos (de 1666 a 1880) os morbos que nos invadiram quase todos levaram a flagelar-nos periodicamente; e alguns, de certa época em diante, com insistência tal que chegaram a persuadir de que se tratava mesmo de males endêmicos, ou quando menos, de epidemias sempre iminentes, de modo especial o da febre amarela, que todo mundo acreditava ser o nosso grande inimigo, e que afinal foi completamente extinta em todo o país.

E uma observação que a ninguém escapa é que, desde que começamos a proscrever a velha desídia por tudo quanto respeita à higiene e à saúde pública, também melhorou a salubridade geral do nosso meio. A julgar pela coragem com que se reage em toda parte contra a incúria colonial, tudo nos autoriza a confiar que o Brasil vai ser em breve outra vez o que foi como natureza — terra capaz de criar homens fortes e sãos, tal como a encontraram os primeiros europeus que vieram aqui viver.

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