Revolta de Beckman
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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A primeira dessas
manifestações é essa de que nos vamos ocupar, e que se dá no Maranhão antes do
fim do século XVII.
Desde antes da intrusão
flamenga, já se haviam os colonos acostumado a rebater agressões de piratas.
Aliás, por meados do primeiro século, tinham expelido da Guanabara usurpadores
franceses. Mais tarde ainda os tocaram do Maranhão.
Não houve uma investida
depredadora, uma ameaça de conquista, um ataque à soberania do domínio, contra
a qual não fossem as próprias populações as primeiras a insurgir-se, e a
levantar o seu protesto.
Depois de haver defendido o
litoral, começou o colono a invadir e ocupar o interior para além da linha de
Tordesilhas, arredando assim as raias do domínio, ampliando o território,
fazendo-o muito maior do que o tinham feito os tratados.
Nem seria preciso mais nada
para explicar como naturalmente se ia gerando na alma do povo em formação um
forte sentimento do seu valor, e logo uma nova consciência jurídica, em
contraste com as tradições da mãe-pátria.
E como para fazer ainda mais
intenso, profundo e poderoso esse sentimento que teria de dominar toda a vida
da sociedade nova que se constitui sobrevêm a circunstância de se haver aqui,
em dois séculos, criado a riqueza, tornando-se deste modo a colônia em
verdadeiro empório e socorro do velho reino depauperado. Sem o Brasil opulento
do século XVIII, Portugal não teria subsistido: o esforço que fizera na
construção da sua epopeia marítima tinha-lhe exaurido a vitalidade, ao ponto de
fazê-lo incapaz de por si mesmo resistir à competição em que teve de entrar para
manter o seu vasto domínio.
2 - Estes sucessos do Maranhão
assinalam uma das crises em que, de agora por diante, se vão condensar ímpetos
que andavam latentes em toda a colônia, e nos quais, melhor acentuado, se
apanha o novo espírito que se vinha gerando.
Em São Luís as desordens, as
lutas e os escândalos, em que viveu a terra desde que se expulsaram os
franceses, foram tomando um caráter de violência crescente até as vésperas
deste que foi o motim de mais vulto entre os que vinham trazendo a capitania em
estado quase contínuo de sedições e tumultos.
Para mais agravar a situação
na capitania, tinham os governadores do Estado transferido para Belém a sede do
governo, ficando em São Luís apenas o capitão-mor como autoridade superior.
Em 1680 publicava-se uma lei
abolindo a escravidão do gentio, e confiando aos jesuítas toda jurisdição
espiritual e temporal nas aldeias. Estas medidas irritaram profundamente os
ânimos; e mais quando se viu como os executores cuidavam de aquinhoar-se
fartamente na distribuição dos tais índios "livres" e assalariados.
Coincidindo mais ou menos com
estes vexames, concedera o governo a uma empresa de Lisboa o "privilégio
exclusivo do comércio de todo o Estado por espaço de vinte anos". Por essa
concessão, era o comércio "geral e
absolutamente proibido a todos os vassalos". Em relação aos índios, o
caso tomava-se agora curioso: esquecida de que se abolira a escravidão, autorizava
a corte à tal empresa "empregar no seu serviço os casais de que precisasse...
e a fazer no sertão quantas entradas quisesse"...
É ocioso dizer que os
monopolistas agravaram ainda o que tinha de mais odioso o privilégio; e ao
clamor geral que se foi levantando rebatia o Governador (Francisco de Sá e
Menezes) com atos de força e de escandalosa proteção à empresa, mesmo porque
era nela particularmente interessado.
Outras causas concorrem ainda
para fazer mais aflitivas as condições da vida, principalmente em São Luís. Diz
João Francisco Lisboa que "dois anos de esterilidade e de fome precederam
à sublevação".
Não tardou que dos agravos e
queixas se passasse a conspirar.
3 - Os conjurados contaram
logo com o apoio dos frades carmelitas e franciscanos. Segundo o mesmo Lisboa,
celebravam até os seus "conciliábulos no convento dos Capuchos"; e
que '"todos os dias amanheciam pasquins e trovas pelas esquinas...
convidando o povo à revolta; e do alto do púlpito, muitos meses havia que os
frades não faziam outra coisa nos seus sermões". "Frade houve que
chegou a bradar publicamente em uma praça — que lhe dessem quatro homens
resolutos que ele, em poucas horas, se obrigava a livrar o Maranhão do
cativeiro".
Entre os chefes da
conspiração, a figura mais notável era Manuel Beckman (ou Bequimão, como todos lhe chamavam, e ele mesmo escrevia,
aportuguesando o nome).
Tendo tudo combinado,
aprazaram os chefes a última conferência para a noite do dia 23 de fevereiro de
1684 - Deviam nessa noite começar as cerimônias de uma festividade religiosa
que no dia seguinte se celebraria. Resolveram por isso os revoltosos aproveitar
o ensejo daquele concurso de povo para os tumultos preparados.
Efetuou-se a reunião alta
noite no mesmo convento de Santo Antônio, naqueles tempos ainda fora da cidade.
Ali expôs Manuel Beckman os fins do ajuntamento, e os intuitos da revolução.
Ouvindo-lhe a palavra exaltada e segura, apresentaram alguns certas ponderações
sobre a gravidade do passo que se ia dar. "Assomado e impetuoso de seu
natural, e como surpreendido por uma oposição intempestiva, rebateu Beckman
aquelas objeções, cheio de sobrançaria e de despeito. Retrucaram-lhe os outros
no mesmo tom, e dentro em pouco estava travada uma confusa e renhida
disputa".
Ia dissolver-se a reunião,
quando um ilhéu desabrido (Manuel Serrão de Castro) arranca a espada e grita
furioso que não era mais possível recuar daquele propósito, e que o traidor que
se recusasse a avançar, ali mesmo, naquele instante, acabaria.
Este gesto decidiu de tudo. Em
grande entusiasmo, deixam o convento e dirigem-se para a cidade, pondo ali a
população em alvoroço. Tomam logo o corpo da guarda, e vão à casa do
capitão-mor (Baltasar Fernandes) e declaram-no deposto. Dali marcham para o
Colégio dos Jesuítas, e intimam os padres da resolução que se tomara,
"declarando-os presos e incomunicáveis com guardas à vista".
Em seguida apoderaram-se da
casa e dos armazéns da Companhia do Comércio do Estado do Maranhão.
"Ao amanhecer estava
concluído todo aquele trabalho com a maior fortuna; e raro era o habitante que
se não achasse em armas, a maior parte de boa vontade, bem poucos
constrangidos".
4 - Era preciso instalar logo
a nova ordem. Convoca-se para isso uma Junta Geral. Essa Junta aprova por
aclamação o que se havia feito (deposição do capitão-mor, e também do
Governador, que se achava no Pará, abolição do estanco, e expulsão definitiva
dos padres). Ato contínuo. Organiza-se um novo governo, que se compôs dos
oficiais da Câmara e três adjuntos, sob a superintendência suprema de dois procuradores do povo.
Para estes cargos foram
aclamados Manuel Beckman e Eugênio Ribeiro Maranhão; e para o de adjuntos,
Tomás Beckman, João de Sousa Castro e Manuel Coutinho de Freitas.
Este governo põe-se
imediatamente em ação. Reforma a infantaria de linha, dando-lhe novos capitães.
Organiza uma guarda cívica. Estabelece postos de polícia, e guardas em diversos
sítios.
Substitui funcionários que não
inspiravam confiança. Manda confiscar os armazéns da empresa abolida; e
notifica os padres de que vão ser expulsos.
E acabou o dia como sempre —
com Te Deum solene —, ao som de vivas,
sinos e salvas de fuzilaria, "e no meio de congratulações gerais, acreditando
todos que tinham realmente assegurado para sempre a felicidade da república e o
bem de todos".
Reservara-se Beckman o papel
de guia e condutor do povo maranhense. Era uma espécie de tribuno chefe,
aconselhando, reprimindo, contendo pela palavra. Frequentemente falava às
turbas, e das próprias janelas do senado, provocando a sua eloquência ruidosos
aplausos. Pode-se dizer que ali a autoridade suprema era ele, sendo simples
executoras as outras.
Mas, dentro logo dos primeiros
dias, cuidou Beckman de estender a revolução não só na capitania como em todo o
Estado. E agora é que vai ele entrar na fase dos desenganos. Em toda parte
aplaudia-se a abolição do estanco e mesmo a expulsão dos padres; mas ninguém
queria comprometer-se... O próprio Beckman voltou da vizinha Tapuitapera (hoje Alcântara)
sem nada haver conseguido. A Câmara de Belém "estranhou as demasias a que
se arrojara o povo de São Luís"... Conquanto gostasse muito do que se
estava ali fazendo, aproveitou o ensejo de renovar protestos de fidelidade ao
Governador... deixando assim uma porta aberta para entrar na revolução se a
mesma vingasse...
O estilo era mesmo esse: todo
mundo queria; mas dizer alto que se quer é mais sério, e não se faz sem muita
ponderação.
5 - De volta de Tapuitapera,
vinha Beckman encontrar em São Luís uns sintomas que lhe deram a medida dos
perigos a que se expunha a nova ordem de coisas se ali permanecessem os
jesuítas encarcerados e deliberou embarcar imediatamente. Fez logo correr um
bando ordenando que "todo os moradores estivessem presentes" no dia
do embarque.
E com efeito, no dia 26 de
março (domingo de Ramos), depois de ouvirem missa no Colégio, saíram os padres
(eram 26 ou 27) em préstito para a praia, e ali embarcaram em dois navios com
destino à Bahia. Dizem as crônicas que a multidão chegou a comover-se, e que a
cidade ficou mesmo consternada do espetáculo. A viagem dos padres foi muito
acidentada e penosa; e alguns voltaram indo desembarcar no Pará. Os outros foram
bem recebidos na Bahia, e ali ainda tiveram a fortuna de encontrar o grande
velho Antônio Vieira, que muito os confortou daquela desgraça, que ele próprio
já havia também sofrido.
Com a partida dos padres
dir-se-ia que São Luís caíra num súbito esmorecimento. Não era decerto a falta
dos deportados o que se sentia: era a desilusão do sonho passado. Começa-se a
pensar nas consequências de tudo aquilo. Acabado o entusiasmo dos primeiros
dias, as almas estão fatigadas. Ninguém sabe agora que rumo se há de dar dali
em diante ao que se fizera. O próprio Beckman afeta coragem; mas todos veem que
ele procura inspirar aos outros "uma confiança" que ele mesmo já vai
perdendo.
De dia para dia a situação se
agrava. Já não se disfarçam em São Luís os moderados e prudentes, e logo nem
mesmo os arrependidos.
O Governador do Estado, lá
mesmo de Belém, tenta, por bons modos, fazer voltar à ordem legal a gente do
Maranhão. Expediu para São Luís alguns emissários; tentou mesmo subornar ao
chefe da revolução. Tudo, porém, inutilmente.
Já se estava por meados de
outubro (com cerca de oito meses, portanto, de domínio revolucionário) quando
se lembraram os chefes de mandar Tomás Beckman à corte como procurador do povo
do Maranhão. Era uma prova formal de que se anseia já por entrar na ordem,
saindo das incertezas da situação criada. O que se quer, com a embaixada à
corte, é evitar escarmentos.
6 - Tomás Beckman vai suscitar
grandes sustos em Lisboa; pois lá se exageravam muito as proporções do que se
dava em São Luís. Quando se soube, porém, que o motim já estava em declínio,
reergueu-se nos seus melindres a majestade intangível, e todo mundo engrossou a
voz outra vez. Foi logo preso o emissário, com o qual se estava até aí em
arranjos, e devolvido às justiças do Maranhão; e como única providência,
nomeou-se Gomes Freire de Andrada para restabelecer a ordem e castigar os
rebeldes.
Enquanto isso, cresciam em São
Luís as dificuldades com que luta o governo revolucionário. O próprio Manuel
Beckman fica indeciso no meio do geral desânimo e das defecções que lhe fazem
em torno um vazio de terror. Entregou-se o comando da guarnição ao velho
sargento-mor Miguel Belo e desde então pode-se dizer que Beckman não foi mais o
chefe supremo na capitania rebelada.
No dia 15 de maio (1685)
fundeava junto à barra o navio que trazia Gomes Freire. Foram logo à terra dois
sujeitos a sondar os ânimos. Teve então, o general, certeza de que na cidade se
anseia pela ordem; e o navio entrou no porto.
O próprio Beckman, falando na
salvação de todos, consegue que a Câmara mande a bordo uma deputação a
apresentar as boas vindas ao Governador, e a pedir-lhe que retardasse o seu
desembarque até que se lhe preparasse uma recepção condigna.
Soube, no entanto. Gomes
Freire que "traçavam negar-lhe a posse caso não viesse munido do perdão
geral"; e deliberou saltar imediatamente. Foi recebido com as devidas
honras, e até com sinais de alegria e entusiasmo.
Os comprometidos na rebelião
cuidaram de fugir. Só Manuel Beckman não saiu da cidade, e até "continuou
por muitos dias a andar livremente em público".
Parece, com efeito, que Gomes
Freire viera com o propósito de tudo esquecer se a sua autoridade não
encontrasse resistência.
Mas aquela atitude ostentosa
do antigo chefe da revolta ainda agravada pela temeridade com que tentou libertar
o irmão, que chegara preso da Europa, forçou o Governador a mudar de
disposições. Ordenou a prisão dos chefes, e principalmente de Beckman,
pondo-lhe a prêmio a pessoa.
7 - "Obrigado a sair da
cidade, vagou desde então, errante e fugitivo, pela ilha, repelido de uns,
esquivado de outros, e mal recebido por toda parte; até que uma viúva, condoída
da sua desgraça, lhe forneceu uma canoa bem remada, na qual se transportou ao
seu engenho do Mearim" (a umas 60 léguas de São Luís).
Naquele asilo, tentado dos prêmios
oferecidos pelo Governador, vai surpreendê-lo e traí-lo um Lázaro de Melo, que,
segundo uns, era afilhado e pupilo de Beckman. Em todo caso, era seu íntimo
amigo, recebido sempre por ele como pessoa da família.
Ali, enquanto Lázaro se
entretinha amistosamente com o seu antigo benfeitor, os da escolta o
subjugavam. Meteram-no depressa na canoa e carregaram-no de grilhões, levando-o
para São Luís.
O processo foi sumaríssimo.
Dizem que Gomes Freire assinou a sentença muito compungido.
Chegou o dia da lúgubre
cerimonia (2 de novembro de 1685). "Levantou-se a forca na praia chamada
então do Armazém, hoje da Trindade; e ali, pela manhã foram executados Jorge de
Sampaio e Manuel Beckman".
No momento supremo, como alma
cristã, pediu, do alto do patíbulo, perdão a todos e declarou que pelo povo do
Maranhão morria contente. "Grito derradeiro e sublime — diz Lisboa — de um
coração altivo e generoso, admirável sobretudo naqueles tempos, em que as
revoluções, simples fato material, não constituíam doutrina nem direito, e em
que os condenados, ordinariamente humilhados diante da justiça, morriam
protestando seu arrependimento, e beijando a mão que os punia".
Acaba assim (com este grande
lance de alma, que deu à história colonial um dos seus mais nobres vultos)
aquela que foi a primeira manifestação formal e violenta do espírito da terra
contra os processos da metrópole.
E no entanto, o próprio
Governador, com as câmaras de Belém e de São Luís, em Junta Geral, declaravam
abolido o estanco. Era mais uma prova de que, "mesmo quando vencidas, as
revoluções, por dolorosas que sejam, fazem o bem que visaram, se foram
inspiradas na razão".
Imagens:
http://memoria.bn.br
Excelente texto descritivo dessa revolta nativista.
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