1 - Na história da escravidão
africana no Brasil houve uma fase (todo o século XVII principalmente) em que,
passados os dias dolorosos do banzo (o espanto do desplantado em terra
estranha), começou o negro a refletir no seu infortúnio, e a pensar em fugir ao
cativeiro metendo-se pelas florestas. Cuidaram naturalmente os senhores de
recapturá-los; e por isso trataram os fugitivos, pela sua parte, de aliar-se
para resistir aos capitães do mato.
É assim que se foram formando
esses temerosos agrupamentos, que desde o começo do referido século se fizeram
em todas as capitanias o terror dos viandantes e das povoações indefesas.
Subsistem vestígios de muitos
desses agrupamentos, a que se deu o nome de quilombos, sendo de todos os mais
notáveis, pela extensão que tiveram, os dos Palmares, no atual Estado de
Alagoas. Tinha este nome (derivado da abundância de umas palmeiras que se
encontravam ali) uma vasta zona de florestas, quase paralela ao litoral e à
distância de 20 ou 30 léguas da costa, entre o São Francisco e o cabo de Santo
Agostinho. Por aí situaram-se grande número de quilombos, entre os quais o do Zambi,
o das Tabocas, o do Macaco, o do Sucupira.
Esses núcleos tomaram grande
incremento com a invasão holandesa, em 1630. Apresentaram-se os intrusos em
Pernambuco iludindo os cativos com promessas de liberdade. Por sua parte,
forçados a defender-se e a fugir, não dispunham os senhores de meios de coação
contra os escravos. Disso se aproveitavam os negros para escapar ao jugo do
cativeiro.
Dentro de pouco tempo, em
vários sítios daquelas florestas, se haviam reunido multidões de negros vivendo
pacificamente das suas lavouras e granjearias. Com eles não repugnavam viver
também índios mansos, que por sua vez fugiam à escravidão.
Mais que o estímulo da
conquista flamenga, concorreu para aumentar aquelas aglomerações de prófugos, a
guerra, que se seguiu, quase contínua, de 24 anos. Para subtrair-se aos azares
de uma campanha, em que tanto se sofria do inimigo, como da penúria geral, e às
vezes até dos próprios capitães sob cujo comando se andava em armas — nenhum,
ou muito raros cativos resistiriam àqueles convites, que os seduziam lá do
sertão.
2 - Enquanto as duas raças em
colisões não se aperceberam do perigo que ali se preparava contra a ordem
vigente, tudo passou sem grandes atritos. Chegavam até os quilombolas a manter
estreitas relações com moradores das vilas vizinhas. Iam a Porto Calvo, a Sirinhaém,
a Alagoas, levar os seus produtos em troca de artigos de que precisavam (armas
de fogo, ferramentas, tecidos). Nessas povoações eram os negros recebidos sem nenhuma
desconfiança e os negociantes eram os primeiros a dar testemunho da lisura e
probidade com que se conduziam aqueles bons fregueses.
Passado, porém, o primeiro
período da guerra contra os holandeses (o período da resistência) começaram
todos, portugueses e flamengos, a aperceber-se daquela original anomalia, que
punha em sério risco o domínio de uns e de outros. E tanto uns como outros
começaram a açular aventureiros contra a confederação dos Palmares.
Aberto o conflito foram
naturalmente os negros saindo da sua compostura pacífica. Já em número
respeitável (por 1640 a 45), calculando-se em uns 10 ou 11.000, e afeitos àquela
vida independente e aventurosa aceitaram eles a luta, e puderam dizer que com
proveito para si, pois nos cinquenta anos que se seguem não há dúvida que se
adestraram nos combates. Chegaram mesmo a trazer em alarma contínuo a zona
ocupada e imediações.
Quando os holandeses sentiram
necessidade de atacá-los, tiveram a prova de que os negros (por eles mesmos
"libertados") já se haviam adiantado muito.
A primeira expedição flamenga
(por 1644) comandada por um Baro, incendiou um dos quilombos, matando uns 100
negros, tendo o maior número fugido para as matas.
A segunda expedição, logo no
ano seguinte, não encontrou mais gente, e teve de voltar trazendo só
mantimentos em abundância.
Sobrevêm a insurreição contra
os intrusos; e a paz em que ficaram deu aos pobres negros a impressão de que
haviam escarmentado os brancos.
É de agora em diante que se
formam os grandes arraiais, como praças fortes, que depois vão custar aos
portugueses mais de quarenta anos de lutas.
Constituíram-se naqueles
sertões uns nove ou dez grandes quilombos, além de outros menores, ou menos bem
fortificados.
Cada um desses grandes
arraiais tinha o seu rei, que vivia veneradona sua muçumba (palácio), tendo o
seu conselho de anciãos e os seus generais. Na vida dessas grandes aldeias
reproduziu-se quase tudo da vida africana, apenas alguma coisa alterada sob a
influência do culto católico e da civilização colonial.
Durante as guerras da
restauração de Pernambuco teve, como dissemos, extraordinário desenvolvimento
este, que se poderia chamar. Estado ex-crescente no domínio, e com o qual, em
seguida à tentativa dos flamengos, tinham de avir-se os pernambucanos.
3 - Expulsos os holandeses (em 1654) voltou-se logo o ânimo dos colonos vitoriosos para o problema que ali no interior se criara havia tantos anos.
Nesta época, os quilombos mais
importantes, pelas suas fortificações e o seu poder de resistência, eram os do
Macaco e do Sucupira. Contaria o primeiro umas 1.500 cabanas, com uma população
de 8 a 10.000 almas. Era considerado como cidade principal e metrópole de
confederação. Ali habitava, em 1678, o Gangazuma, grande chefe, que exercia
ascendente sobre os demais régulos.
O arraial de Sucupira,
conquanto menos populoso (contaria umas 4 a 5.000 almas), era ainda mais
importante como praça militar. Neste exercia o mando supremo o general
Gangazona, irmão do grande rei. Devia considerar-se como guarda avançada da
nação, posta ali na fronteira com os inimigos.
Foram estes os quilombos que
começaram a ser hostilizados. E muitos dos heróis que vinham da reconquista não
se dedignaram de tomar agora o comando de forças dirigidas contra os negros.
Durante vinte anos
repetiram-se tentativas infrutíferas contra aqueles dois redutos, onde se sabia
concentrado o maior poder dos quilombolas. Com uma tenacidade admirável, porém,
e um vigor e coragem só próprio de quem defende a pátria, zombaram os negros de
todos os esforços, frustrando nada menos de vinte e cinco expedições até 1674.
Nesta época, entendeu o
Governador, D. Pedro de Almeida, que não se podia mais adiar aquela conquista
sem grandes prejuízos para a colônia, e até sem riscos muito graves para a
própria soberania portuguesa; pois eram gerais as queixas e reclamos das populações,
expostas à audácia crescente dos negros, vangloriosos daqueles repetidos
insucessos dos brancos.
4 - Preparou, pois, o
Governador, "elementos para uma campanha decisiva", e dispôs tudo
como se uma nova guerra formal se fosse iniciar, destinada a repelir ou
eliminar inimigos que ameaçavam a segurança interna do domínio.
Pelos fins de novembro de 1675
parte de Porto Calvo a expedição, comandada pelo sargento-mor Manuel Lopes
Galvão; e depois de atacar um vasto arraial, e em seguida, outro mais metido no
sertão, fixou-se Galvão ali, espalhando quadrilhas, que durante mais de uns
quatro meses foram perseguindo fugitivos no interior das florestas.
O relativo sucesso desta
primeira animou D. Pedro de Almeida a organizar uma nova tentativa, à frente da
qual se pôs o capitão-mor Fernão Carrilho, famoso pega-negros nos sertões do
Nordeste.
Partiu Carrilho também de
Porto Calvo, em 1677, dirigindo-se primeiro contra um reduto, que encontrou
deserto; e depois contra Sucupira, que além de deserto, estava reduzido quase
todo a cinzas.
De acordo com as instruções
que tinha, fundou ali Carrilho, sobre as ruínas do grande quilombo, o seu
arraial, de onde foi fazendo bater o sertão. Pouco êxito, porém, alcançava o
capitão-mor; e a gente começou a desertar. Pede-se então socorro,
principalmente de tropas, ao Governador; e bastou o aviso de que o socorro já
estava em caminho, para que se reanimassem os expedicionários, e fossem logo
com mais audácia, e com mais proveito, perseguindo os negros. Com a chegada dos
reforços caiu em estrondoso tumulto a zona inteira dos quilombos.
Em quatro meses de correrias e
assaltos nas florestas achavam-se os negros tão corridos e destroçados que se
julgou extinta a confederação dos Palmares.
Voltou então Carrilho ufano
daquela façanha, e foi recebido no Recife como um herói, a quem se devia tão
grande serviço.
Entendeu agora D. Pedro de
Almeida que era oportuno completar com a piedade o que a força havia feito.
Mandou, com pequena escolta, um capitão à procura dos "restos" de
negros, dispersos e errantes, a avisá-los de que o capitão Carrilho se
preparava para acabar de uma vez com os quilombos subsistentes; mas que se eles
quisessem viver em paz com os brancos, o Governador lhes assegurava, em nome de
El-Rei, toda união e bom tratamento.
E tanta coisa mais se oferecia
àqueles relapsos que a proposta foi aceita.
5 - No dia 18 de junho (1678)
entrava no Recife a escolta trazendo já em sua companhia dois filhos do grande
rei e um séquito de notáveis.
O Governador (já então Aires
de Sousa de Castro) recebeu com muita deferência a embaixada; e convocou um
grande conselho, que resolveu celebrar a paz com o rei Gangazirma. Lavrou-se um
auto de tudo; e com a embaixada seguiu para o sertão um oficial do terço dos
Henriques, incumbido de ler ao rei o tratado da paz.
Tivera assim Fernão Carrilho o
seu dia de glória, e os pernambucanos aquele momento de doce ilusão; pois a tal
paz ficara "só na mente dos alvissareiros: em vez de exterminados, iam,
pelo contrário, fazer-se os quilombolas mais fortes e temerosos".
Logo no ano seguinte (1679)
foi necessário mandar-se uma expedição contra o rei Zambi; e esta investida foi
um completo desastre. Com isso redobra o furor e a insolência dos negros; e
mais dez anos vão passar-se de angústias para a capitania.
Chegou um momento em que a
própria corte se impressionou com aquela singular anomalia, e deu ordens
insistentes para resolvê-la.
Refletindo-se naquele gênero de
guerra que era preciso fazer, e tendo-se principalmente em vista os grandes
recursos e as vantagens com que contam os negros, tendo em seu favor a
amplitude do sertão, deliberou-se tomar de uma vez o expediente que pareceu a
todos mais prático e decisivo, e que consistia em confiar a causa a gente
afeita aos processos da caça ao selvagem. Só mesmo o bandeirante seria capaz de
dar cabo daqueles negros, que se haviam assenhoreado de florestas tão vastas e
escusas, e que, pela sua união e disciplina, tanto como pelo seu número, se
tinham tornado mais temerosos que os próprios índios.
Os sertões naquela época, até
o extremo norte, andavam já batidos por aqueles heroicos aventureiros, que
escreveram uma página única na história da América.
Entre os chefes, cuja fama
desde muito corria em todas as colônias, destacava-se o paulista Domingos Jorge
Velho, que havia já devassado as regiões centrais até os confins do Maranhão.
De acordo com o Governo-Geral,
mandou o Governador de Pernambuco, João da Cunha Soto-Maior, propor ao famoso
capitão a conquista definitiva dos Palmares.
Aceitou Jorge Velho o convite;
e sem demora assinavam em Olinda os seus procuradores um contrato com o
Governador, mais tarde ratificado pelo rei.
Antes, porém, de partir contra
os negros, teve o capitão de ir em socorro do Rio Grande do Norte, em grandes
aflições com uma tremenda insurreição de índios.
Protelava-se, assim, um
serviço, que de dia para dia se tornava mais penoso; até que o próprio
Governador-Geral ordenou categoricamente a Domingos Jorge que viesse dar conta
da sua tarefa.
6 - Deixando no Rio Grande um
outro chefe, dos mais famosos naqueles tempos (Matias Cardoso de Almeida),
abala pressuroso o capitão para o Sul, em grande ânsia de dar provas de si cora
façanha que assombrasse a todo o mundo.
Sem chegar primeiro a Olinda,
como lhe pedira o Governador, foi logo tomando rumo para os quilombos, e
estacionou nas imediações do de Zambi, no intento de explorar a situação.
As partidas que para isso
expediu, em vez de observar, distraíram-se com a abundância de frutas que
encontraram por ali, e afinal caíram numa cilada dos negros, que bem caro lhes
cobraram aquela fartura.
Pode dizer-se que começara
Jorge Velho por um desastre. Em todo o caso, havia a sua gente logrado
reconhecer a grande importância do formidável arraial, em que os negros, sob a
autoridade de Zambi, tinham reunido todo o seu poder. Compreendia o quilombo
(situado na encosta da serra do Gigante, junto ao rio Mundaú) "mais de uma
légua de circuito"; e pareceu tão "bem fortificado que só lhe faltava
ter artilharia".
Já estavam os negros avisados
daquela agressão, e tinham recolhido na praça as famílias de todos os mocambos
(aldeias) da redondeza, e acumulado nos seus paióis grande quantidade de
víveres.
Tendo sofrido aquele revés,
retirou-se Jorge Velho com a sua gente para Porto Calvo, onde recompôs as suas
forças, aproveitando os grandes contingentes que ali estavam preparados, e com
os quais elevou o poder da expedição a mais de 7.000 homens.
Este exército, provido de todo
material de guerra para um longo assédio, põe-se em marcha para o sertão, com
"precauções de avançadas e batedores, descobrindo os caminhos, e tomando
todas as medidas para evitar surpresas".
Sem acidentes de nota, chega à
vista do grande quilombo. As vizinhanças estavam desertas, e em larga quietude
de espreita. Antes de recolher-se, haviam os negros destruído tudo em torno do
reduto.
7 - Estabeleceu-se o cerco,
tomando Jorge Velho, e mais dois grandes capitães (Bernardo Vieira de Melo e
Sebastião Dias) a guarda das três portas da frontaria do arraial.
A primeira investida foi
horrível. De dentro das trincheiras repulsam-se os assaltos com veemência
espantosa, tanto a "armas de fogo e a flechas, como a água fervente e a
brasas acesas, lançadas pela estacada".
É diante desta grande cena que
temos de lamentar, com Varnhagen, que semelhante tragédia não tivesse ao menos
o seu cronista. Nada exagerou Oliveira Martins dando à cidade condenada o nome
de Tróia Negra, "o mais belo e heroico de todos os protestos do
escravo", e cuja história
"tem lances de uma Ilíada".
Para que se nos figure toda a
grandeza daquele pleito, bastaria recordar que durou o assédio cerca de três
anos, combatendo-se ali quase continuamente, noite e dia. Sem cessar
"foram as muralhas e as portas batidas... sem efeito algum" antes com
grandes perdas dos sitiantes.
Afinal, pediram estes para o
Recife, que lhes mandassem artilharia, sem o que, declaravam, seria
"impossível romper as fortificações do inimigo".
Em certo dia, enfim,
conseguem, Sebastião Dias e Vieira de Melo, romper as portas que andavam
guardando. Acode então com sua gente Jorge Velho. Dá-se o assalto. Os negros
resistem. Mas é inútil o seu esforço. Imensa confusão se faz naquele vasto
recinto onde se confinara a esperança dos míseros. Enquanto alguns morrem
combatendo, rendem-se outros implorando misericórdia (mulheres e crianças
principalmente) e o maior número dos destroçados debandam fugindo para o
sertão.
Assim caiu, em 1694, o último
reduto dos Palmares, ao cabo de mais de 50 anos de lutas com que se afrontou a
sociedade colonial.
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
http://memoria.bn.br
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