Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
---
MEM DE SÁ
1 — Chegava o terceiro Governador Geral à Bahia pelos
fins de dezembro, empossando-se do cargo num dos primeiros dias de janeiro de
1558.
Encontrava o país na situação de guerra geral com os
índios que o deixara a administração de D. Duarte da Costa. Em Pernambuco, em Porto
Seguro, em Espírito Santo, vivem as povoações continuamente flageladas pelo
gentio insurgido. Em São Vicente, a zona do Paraíba e todo o litoral, de São
Sebastião para o norte, estremecem sobre o tropel do bárbaro em furor.
E para agravar esses males na capitania do extremo
sul, havia ainda as rivalidades entre a gente de Ramalho com os padres de São
Paulo, e dos colonos da marinha com as populações do planalto.
Os franceses, fortificados na baía do Rio, incitam os
tamoios contra as colônias desguarnecidas e espúrias de recursos, e levam o
alarma geral até os sertões.
O recente massacre do Bispo e seus companheiros
trazia ainda em luto e em vivas apreensões toda a Bahia.
A tudo isso junte-se a desorganização em que tinham
caído todos os serviços públicos, a desordem moral em todas as classes, a
competição em que viviam uns com os outros certos funcionários, e o Governo
Geral sem prestígio e numa grande penúria. E aí teremos a herança que vai tocar
a Mem de Sá.
Era mesmo necessário que viesse agora um homem de
pulso forte e de alta confiança como este, segundo dizia o próprio soberano ao
nomeá-lo.
E com efeito, pelo seu bom senso prático e prudência,
pelo seu espírito de conciliação aliado a uma energia e firmeza que nunca
vacilavam, e sobretudo pelo profundo sentimento de justiça, temperado de
piedade e de clemência, pode ser Mem de Sá considerado como verdadeiro modelo do
administrador colonial.
A sua grande obra, valendo por complemento da de Tomé
de Souza, fez mais do que reabilitar na consciência da colônia a fé na
autoridade e na força da metrópole; pois, se o primeiro Governador iniciou aqui
a política portuguesa, Mem de Sá instituiu-lhe definitivamente a soberania, legitimando-a
pela posse exclusiva e pela efetividade da ocupação.
2 — E se no governo, como delegado direto da coroa,
foi ele o consolidador do domínio, na esfera puramente administrativa o influxo
do seu espírito e a ação da sua capacidade de homem público ficaram aqui
plenamente assinalados.
Em mais de quatorze anos de trabalho, conseguiu ele
regularizar as questões e os serviços que mais intimamente entendiam com a
sorte da colônia.
Quanto à catequese, que era a questão capital,
estabeleceu, de acordo com os padres, o único sistema que a experiência provou
ser eficaz, e mediante o qual, atraindo uns e rechaçando outros selvagens para
o sertão, desoprimiu de lutas intermináveis e sangrentas as populações
adventícias que se fixavam no litoral.
Deste modo, normalizou, quanto era possível, a vida,
o trabalho, as relações de comércio em toda a parte povoada do pais,
preparando-lhe assim os grandes recursos para o largo incremento do período que
se lhe vai abrir com o século XVII.
Está evidente que o mais grave embaraço que tinha de
remover o novo Governador era o da intrusão dos franceses na Guanabara.
Conquanto trouxesse instruções e ordens instantes
para conjurar de pronto esse perigo, não quis precipitar-se em relação a caso
de tanta monta. Preferiu estudá-lo com calma e sob um ponto de vista que
abrangesse toda a situação da colônia.
Dir-se-ia que o que se agita no espírito deste homem
é o problema do Brasil. Não é só a expulsão dos intrusos que o preocupa, mas a
causa, vasta e complexa, que a monarquia tinha de levar nesta porção do seu grande
patrimônio.
Em pouco tempo estava ele habilitado a dizer para a corte
como convinha empreender a ofensiva contra os franceses. Fez ver que estes
tinham muitas embarcações pela costa; e que, a julgar pelo que afirmavam
pessoas chegadas do Sul, mais oito estavam sendo construídas no estaleiro da
Guanabara.
E a propósito apressava-se Mem de Sá, com a sua clara
visão do futuro, a dizer ao governo de Lisboa que o primeiro elemento de força
aqui havia de ser a marinha; que "os armadores são o nervo do
Brasil", e que "a capitania que os não tiver se não poderá
sustentar".
3 — Tinham os franceses causado tanto susto em todas
as colônias, que na própria Bahia se receavam agressões.
Desvaneceu o Governador tais suspeitas no ânimo da
corte; mas advertiu que o pensamento do inimigo era fazer-se forte para guardar
a conquista; que Villegaignon dispunha de muita gente e bem armada, e que recebia
frequentemente reforços consideráveis; que o movimento na Guanabara era cada
vez mais vasto; e que os novos navios que se construíam eram destinados a
proteger na baía e imediações o grande comércio dos numerosos armadores
franceses.
Mostrava, pois, Mem de Sá, que tinha formado o seu
plano de agressão aos intrusos e que ia executá-lo com a devida cautela e
segurança.
Não se tratava simplesmente de medidas de ataque mas
de ação lenta e sistemática dirigida no sentido de criar embaraços à
permanência dos franceses naquele ponto, de onde poderiam ir alongando a vista
sobre outras paragens.
Fazia ele sentir ao rei que antes de tudo era preciso
atrair gente de fortuna para o Brasil, mesmo à custa de amplas concessões e
privilégios; pois essa gente rica povoaria a terra, e era essa a primeira
condição de defesa. País despovoado, dizia, é campo aberto a todos os
aventureiros.
Medida importante, e que estava resolvido a por logo
em prática, era também a fundação de uma grande cidade e praça forte na
capitania do Espírito Santo, mais vizinha dos franceses, e de onde mais facilmente
iriam sendo hostilizados.
Tais disposições estavam indicando que Mem de Sá
havia apanhado, de relance, e em toda a amplitude dos seus aspectos, a situação
do país, e concebido e formulado um vasto programa de governo.
Mas a conjuntura em que se via a autoridade superior
da colônia era muito mais complicada e difícil do que poderia parecer à
primeira vista. As condições gerais do país eram para tornar ainda mais
apreensivo um espírito como o do novo Governador. Além dos efeitos da ocupação
francesa, havia a corrigir os erros e desídias da última administração, e os males
inveterados comuns a todas as capitanias.
4 — Na própria capital do domínio encontrava Mem de
Sá os maiores desregramentos, ostentados com desplante às vistas das próprias
autoridades.
O abuso de mais extensos efeitos era o das demandas,
"com que a terra toda andava revolta". A ganância dos especuladores
não tinha medida. Vendia-se a prazo para vender-se pelo dobro; e as liquidações
tinham de fazer-se judicialmente.
Coibiu Mem de Sá este mal, proibindo que se
iniciassem questões em juízo sem uma licença especial, e impondo aos
demandistas formalidades, tributos e outros muitos tropeços que tornavam
onerosas as demandas.
Um dos vícios que teve de reprimir com todo rigor foi
o do jogo, a praga de todas as colônias, e que só se disfarçava um pouco em
centros mais policiados.
A vadiagem, a embriaguez, o furto, a vida de
aventuras, foram também perseguidos tenazmente.
É assim que em breve uma outra ordem se foi trazendo
em todas as povoações.
Para acabar com as guerras entre colonos e índios, e
entre índios de nações diferentes — guerras que os próprios cristãos açulavam
no interesse de escravizar os vencidos — decretou o Governador que com o máximo
rigor seriam punidos, tanto selvagens como colonos, os que sem licença entrassem
em luta. Chegou mesmo a tomar medidas contra a antropofagia. E como um chefe
selvagem, com arrogância e por acinte, lhe apanhasse uns fâmulos, devorando-os
em grande festa, mandou Mem de Sá prendê-lo juntamente com os filhos, e os
conservou em prisão durante um ano, até que se fez dos melhores amigos dos
portugueses.
Ainda um outro chefe, que estava a dezoito léguas da
cidade, e infringia as ordens do Governador, pondo-se em guerra e sacrificando
os inimigos, foi investido na própria aldeia, e teve de pedir paz, a qual lhe
foi concedida sob a condição de se fazerem cristãos ele e todos os seus.
"Esta gente — diz Mem de Sá — é a que depois sempre me ajudou nas guerras que
fiz nesta capitania, e nas outras onde fui, e foi depois de Deus, das melhores
ajudas que tive".
E, convencido de que, em relação aos índios e aos
próprios colonos, tudo dependia de um possível equilíbrio da força e da
clemência, a serviço da humanidade e da justiça, perseguiu e castigou sem
piedade a quantos se mostraram refratários àquelas medidas.
E teve de castigar principalmente os colonos que
protestaram contra as reformas, e que foram logo clamando contra um Governador
que vinha assim rompendo com o espírito e as tradições da colônia.
5 — Não era, aliás, só ali na Bahia que se impunham
aquelas questões de tanta importância para a vida normal dos povos, e de cuja
solução tanto dependiam os destinos da terra. Em todas as outras capitanias
lavravam as mesmas desordens e males (e até agravados pela ausência das autoridades
superiores) e de tal forma que em parte alguma se vivia tranquilo, mas em
conflitos contínuos e guerras abertas com os índios.
Logo depois que assumira o governo, reclamaram os
moradores do Espírito Santo socorro urgente contra o gentio levantado. Não
podendo naquele instante afastar-se da capital, mandou prontamente o Governador
para o sul o filho, Fernão de Sá, capitão de valor, mas jovem sem prudência, e
que lá pagou com a vida a temeridade com que se exaltou demais no cumprimento
do seu heroico dever.
Mal havia Fernão de Sá partido para o Espírito Santo,
e já recebia o Governador notícias alarmantes da vizinha capitania dos Ilhéus.
Depois de incendiar engenhos e casas de lavradores, haviam os índios posto cerco
à vila de São Jorge, onde a população se recolhera e se achava em extremidade angustiosa.
Mesmo contra o parecer dos seus oficiais, resolveu
Mem de Sá partir, ele próprio, sem detença para o sul.
Bastou a notícia desse socorro para que os índios
levantassem o cerco, desafogando a população.
Com a pouca gente que pode às pressas reunir, chegou
o Governador aos Ilhéus de noite; e sem dar tempo a que os rebelados se
ordenassem, marchou contra um baluarte, onde se haviam eles concentrado, a umas
sete léguas da vila; e bateu os insurgentes com tal ímpeto e esforço, que ao
próprio bárbaro causou espanto.
Mas os selvagens pareciam agitados como fúrias; e
depois da primeira refrega, as armas portuguesas, em vez de apavorá-los, parece
que os faziam mais desesperados, à medida que eram feridos de escarmentos.
É durante esta expedição que se trava, entre índios e
colonos, o famoso combate a que se deu o nome de batalha dos nadadores. Quando, depois de desbaratados os selvagens
naquela trincheira, Mem de Sá se retirava com a sua gente, ao longo da praia,
sentiu-se perseguido do furor dos inimigos, e armou-lhes tal cilada que os
levou de roldão sobre o mar, onde a peleja continuou horrível entre os
insurgentes e os índios aliados.
6 — Durante um mês inteiro operou o Governador contra
os bárbaros, produzindo neles tal pavor que tiveram, a maior parte, de fugir
para as montanhas, e embrenhar-se nos sertões. Os que não puderam fugir,
pediram paz, e obrigaram-se a reconstruir os engenhos incendiados; e com isso
"ficou a terra pacífica".
Estava ainda Mem de Sá em Ilhéus, quando se insurgem
os índios de Itaparica e da zona do Paraguaçu. Clamam por socorro os moradores em
grande alarma.
Tornou-se este levante de gravidade excepcional pela
circunstância de haverem os selvagens paralisado todos os negócios no
Recôncavo, onde nenhuma embarcação de colonos ousava mais navegar.
Acudiu prontamente o Governador à Capital; refez as
suas forças; e, dentro de oito dias, moveu-se contra os sublevados, e
derrotou-os em vários recontros, forçando-os a render, e a entrar em
obediência.
Incumbia-se, assim, o próprio Mem de Sá de mostrar
como os seus processos, em relação ao gentio, eram os únicos profícuos, nas
condições em que se achava a colônia.
Antes que uma autoridade conscienciosa se impusesse,
e agisse sobre o ânimo do bárbaro por atos de força e de escarmento, nada seria
possível no sentido de incorporá-lo na sociedade histórica. Dizia mesmo ele que
"sem temor nada se conseguiria", e baldado seria todo esforço.
Os próprios jesuítas estavam de pleno acordo com ele
quanto ao modo de tornar efetiva a catequese. Só depois de vencido, de domado
pela violência, é que o índio, no maior número dos casos, se fazia apto para
receber o influxo da doutrina.
O que é fato é que em pouco mais de um ano estava
mudada a situação da Bahia e nas outras terras onde o gentio se mostrava mais
insubmisso e temeroso.
O sucesso que se alcançara em toda parte fizera
temido e respeitado o Governador, de quem — diziam os padres — "tremem os
índios de medo; o que, ainda que não baste para a vida eterna, bastará para
podermos nós outros edificar".
E já em 1559, explicando para a Europa como se havia
conseguido reprimir a antropofagia, dizia Francisco Pires, cora a singeleza e eloquência
de sua alma simples, "que os índios, antes feras truculentas, agora já choram e se arrependem..."
7 — E, no entanto, para julgar com justiça o sistema
que as circunstâncias tinham sugerido a Mem de Sá; e para entender-lhe o alto
espírito de humanidade, a sábia política, e a perspícua visão histórica — seria
necessário não esquecer o que fazia em favor dos índios paralelamente com todas
essas demonstrações de severidade.
Não se limitava a protegê-los quanto era possível, e
a confiar os submissos à caridade dos padres: tratava-os com indulgência,
procurando mesmo levantá-los, incutindo neles o sentimento de honra pessoal, o
sentimento de família, a noção de direito. Chegou até a encaminhá-los para os
cargos públicos, e a fazer tudo por desperta-lhes na consciência a ideia do que
hão de valer na sociedade nova a cujo seio eram chamados.
Consistia, portanto, o sistema de Mem de Sá, numa
razoável associação da força da autoridade à palavra do missionário. Dadas as
condições da raça indígena, e o modo como se fez a conquista, tem-se de
reconhecer que não havia mesmo outros meios de entrar mais humanamente na
América.
É preciso ainda notar que todos os serviços, que o
absorveram durante os dois primeiros anos do seu governo, os fazia Mem de Sá
sem prejuízo do expediente ordinário da administração.
De entrada na Capital, teve de tomar providência
contra a miséria a que os índios haviam reduzido a população. Assim que as
questões com os selvagens lhe deixavam mais descanso, ia provendo solicitamente
às coisas do Estado, dando incremento à produção agrícola pelo grande número de
engenhos cujo estabelecimento estimulou e favoreceu.
Realizou ainda outros serviços e obras: concluiu o
grande engenho de Pirajá (de conta do rei) que D. Duarte da Costa começara, e
com o qual foram favorecidos os lavradores pobres; acabou as obras da Sé, da
igreja e Casa de Misericórdia; construiu, à sua custa, a capela do colégio dos jesuítas
(onde deviam repousar afinal os despojos do grande administrador e político); e
muita coisa mais fez concernente ao bem e à grandeza da terra.
Só depois de restaurada assim a paz nas colônias e
normalizados todos os negócios, é que podia Mem de Sá cuidar daquela tarefa
capital que trouxera — a expulsão dos franceses da baía do Rio de Janeiro.
É para isso que se trata agora de aparelhar elementos
de guerra.
Estamos por fins de 1559, e só se espera pelos
reforços que devem chegar da metrópole.
---
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...