Invasão da Guanabara
pelos franceses
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
1 — Em 1553 (a 13 de julho) chegava à Bahia o novo
Governador D. Duarte da Costa, assumindo o governo no mesmo dia.
Vem este homem quebrar, logo de entrada, as praxes e
tradições do modesto e criterioso Tomé de Sousa. Começou fazendo administração sua
exclusiva, dispensando até o concurso dos próprios auxiliares oficiais que o
rei lhe punha ao lado. Por um falso sentimento de independência, ou, então,
prevenido contra todos, a ninguém ouvia, nem consultava, mesmo sobre coisas
peculiares da terra, ou sobre casos de importância excepcional para a
população.
O que aconteceu é que se viu logo isolado, e que,
fora do seu gabinete nada sabia do que se passava, nem do que convinha corrigir
ou remediar, às vezes na própria cidade.
Teve ainda D. Duarte da Costa a má fortuna de
encontrar em algumas capitanias os selvagens em atitude agressiva contra os
colonos. Na capital mesmo teve ele de consumir o melhor dos seus cuidados na
guerra formal ao bárbaro insurgido. Por mais de uma vez chegaram os índios a ameaçar
de assalto a cidade.
Quase que se pode dizer que o período inteiro do seu
governo passou D. Duarte da Costa era complicações dessa natureza, que lhe não
deixavam sossego para preocupações de outra ordem.
Além de tudo isso, vêm ainda os dissídios entre o
Governador e o Bispo aumentar os desconcertos em que esteve a terra durante
esta administração. Tomara o prelado uma atitude, parece que mais de
intolerância que de zelo, contra um filho do Governador, ainda moço, e
solteiro, que decerto não seria um modelo de compostura numa terra onde os
costumes andavam muito longe de ser austeros...
Não se pode crer, no entanto, que D. Álvaro da Costa fosse
um malandro desmandado, pois além de haver já servido na África, ali mesmo na
Bahia, no momento mesmo em que recrudescem aquelas rivalidades, toma ele o
comando das poucas forças da guarnição, e revela o seu valor e tino militar na
defesa da cidade.
Mais dois elementos temos para decidir entre as duas
autoridades. Primeiro, o próprio D. Álvaro e o pai procuram humildemente o
prelado, e com ele se reconciliam. Segundo, tanto o Bispo como o Governador se queixam
um do outro e se acusam, em várias cartas que escrevem ao próprio rei; e o rei
chamou o prelado à corte.
Já não se estranha, pois, que D. Duarte da Costa não
tivesse tempo nem meios de impedir que os franceses entrassem na Guanabara, e
muito menos para os expelir depois.
2 — Conheciam muito bem os franceses a nossa baía e
imediações desde muito; e não se sabe como é que só agora, ao cabo de mais de cinquenta
anos de abandono pelos portugueses, é que se sentem instigados a ocupá-la com
intento de fixação.
Nicolas Durand de Villegaignon já era um homem famoso
por grandes façanhas na Europa quando concebeu o plano de vir ter na América o seu
grande papel.
Parece que foi esta efetivamente a fagueira ilusão
que lhe exaltou as esperanças num momento em que a sua estrela periclitava lá
no velho mundo.
Insinuam historiadores que o maior embaraço, que teve
ele de vencer, consistiu em descobrir meios de ficar sem constrangimento entre
o rei (católico) e o almirante Coligny (que se ainda não se havia declarado calvinista,
já não dissimulava as suas inclinações pela seita).
Dão-nos alguns como realmente preocupado com a
situação que se criava em França para os huguenotes; admitindo estes, portanto,
que o Cavaleiro de Malta já se sentisse comprometido com a ortodoxia católica,
e quisesse sinceramente preparar fora da Europa um refúgio seguro para os
cristãos livres; o que, de fato, seria um desígnio eminentemente humano numa época
em que o fanatismo religioso tiranizava as almas.
Pensa, no entanto, Gaffarel que, precisando do apoio
de Coligny (o poderoso ministro de Henrique II), fingiu-se Villegaignon
inclinado a converte-se, insinuou-se habilmente no espírito do almirante,
"acariciando-o com a esperança de criar, no outro lado do Atlântico, um
asilo para os seus consectários quando perseguidos na Europa".
É evidente que este juízo ultrajaria a memória de um
homem que não fosse o Villegaignon que se descobriu depois na América.
Seja como for, o que é certo que Coligny, muito
contente, lhe ampara o projeto. Fala ao rei, mostrando-lhe as vantagens do
cometimento para a própria coroa de França; e Henrique II autoriza a partida da
expedição, fornecendo-se de tudo, navios, artilharia, munições, gente, até
dinheiro, ao vice-almirante de Bretanha.
Formou-se a expedição, e — particularidade curiosa! —
só de homens, tanto protestantes como católicos; e levantou ferros de Dieppe
por meados de agosto de 1555.
A viagem foi muito acidentada; e no dia 10 de
novembro entrava enfim na Guanabara a esquadrilha, ao troar do canhão e com
grande alegria da equipagem, desafogada daquela odisseia.
3 — Havendo fundeado,
cuidou primeiro Villegaignon de fazer explorar bem todas as paragens, reconhecendo
os esteiros e recôncavos da imensa baía.
Enquanto isso, montava-se na ilha a que se deu o nome
de Ratier (Laje, à entrada da barra)
uma bateria de defesa. Viu-se logo o inconveniente das ressacas que
desaconselhava a permanência naquela ilha, e removeram-se os canhões para
outra, maior, e mais no seio da baía. É ali, em Serigipe, que se vai formar o
centro de resistência da posição.
A primeira medida que tomou o vice-almirante, assim
que se estabeleceu naquela ilha, foi impedir todas as comunicações com a terra
firme. A sua gente devia ficar ali fechada, na angústia daquele rochedo.
A ilha de Serigipe era, então, muito diferente da
Villegaignon atual. Não teria de extensão mais que uns 14000 metros. Deve ter
hoje talvez mais que o dobro de superfície. Para esse acréscimo concorreu o
arrasamento dos cômoros que ali havia quando chegaram os franceses.
Desembarcada toda a gente, começaram-se os trabalhos
de fortificação. Em poucos meses murou-se todo o contorno da ilha. Sobre a
colina do centro levantou-se a torre principal, e junto dela a casa de
residência para o chefe. É propriamente a este castelo que se deu o nome de Coligny. Nos dois outros das
extremidades norte e sul construíram-se baluartes, guarnecidos de baterias.
Ao mesmo tempo construíam-se habitações, casernas,
armazéns, e tudo mais indispensável a uma praça de armas.
Mas a vida ali insulada, como queria Villegaignon é
que não era possível. Quando tinham de fazer provisões, de lenha e de víveres,
os encarregados desse serviço haviam de percorrer as tabas vizinhas para conseguir o que desejavam. Por sua parte, foram
os tamoios entrando em francas relações com os hóspedes e prestando-lhes os
melhores serviços.
Nem assim compreendeu o chefe obstinado quanto estava
de absurdo naquele segregamento.
Vêm depois outros erros. Começaram a dar-se colisões
com os índios, queixosos de violências e desabrimentos.
Está-se vendo em que teia de complicações anda em
véspera de ver-se emaranhado aquele chefe imprevidente e descuidoso. Entre os
próprios franceses já lavra um certo descontentamento. Desde os primeiros dias,
aliás, murmurava-se surdamente na ilha. Poucas semanas depois da chegada, já se
denunciava uma conspiração do pessoal subalterno contra o vice-almirante e seus
oficiais. A trama só se burlou por insídias da guarda escocesa, que cercava e
protegia a pessoa de Villegaignon.
Por mais rigoroso que fosse o castigo dos conjurados,
dali por diante a disciplina só seria mantida pelo terror.
4 — Não tardou que os índios fossem correndo do litoral,
alarmados com o que se passava na ilha.
A deserção geral para as florestas teve como consequência
imediata a cessação do fornecimento de víveres, e a gente insulada vai caindo
numa penúria que muito pouco tem de menos horrível que a fome.
Foram a tal extremo os embaraços de que se viram
assediados aqueles míseros forasteiros que o próprio Villegaignon chegou a
desanimar, sentindo que era insustentável a posição. Pensou, pelo que se
presume, em escolher outro ponto da costa para onde se pudesse mudar a colônia
com mais probabilidade de sucesso. Chegou mesmo a mandar duas expedições de
reconhecimento, uma ao Cabo Frio, e outra para o sul; mas sem nenhum proveito.
E o homem, em vez de aperceber-se de que todos os contratempos
ali só eram frutos do seu orgulho e inépcia, preferia acreditar que estaria
melhor onde não estava... como se algures, no mundo, pudesse valer aquele sistema
de colonizar...
Assim que correra em França a notícia de que tão mal
auspiciada empresa chegara a salvamento a uma terra da qual se contavam tantas
maravilhas, reacendeu-se o entusiasmo dos armadores pelos grandes negócios que
se faziam na América. E agora, procuravam, todos os traficantes, de preferência
o porto do Rio de Janeiro, pela circunstância de já terem aqui as garantias de
um posto militar sob a bandeira da França.
Começou assim a baía de Guanabara, alguns meses
depois da instalação da colônia, a ser ainda mais frequentada pelos franceses,
e então francamente, com o desassombro e arrogância de quem pisa em terreno seu
e seguro.
De tais expedições ia ficando por aqui muita gente,
que não querendo deixar-se prender na ilha, preferia desgarrar-se por todo o
litoral, de perfeito conluio com os índios. E com isto mais se desfalcava a
guarnição do forte, dali fugindo quantos para isso encontrassem o primeiro
ensejo.
Como alheado inteiramente do seu desígnio,
isolando-se cada vez mais da sua gente, nada mais fazia Villegaignon que clamar
para a França pedindo recursos, e para Genebra pedindo colonos. Por desfortuna,
mais dos míseros que dele, só lhe vieram afinal colonos.
A nova leva que veio agora é só de protestantes; e
foram estes escolhidos sob as vistas do próprio Calvino, e com o fim de salvar
do desastre iminente a obra que com tanta esperança se lançara na América.
Em vez de melhorar cora isso, tudo na ilha ainda se
agrava. Quando, em março de 1557, dirigidos pelo venerável Dupont, aportaram na
Guanabara os imigrantes genebrinos, já Villegaignon não era o protestante que saíra
de França à procura de um refúgio para a consciência.
5 — A expedição que chegara bem que poderia mudar as
condições da colônia se outro lhe fora o chefe. Trazia alguns reforços
militares sob o comando de um certo Bois-le-Comte, sobrinho de Villegaignon.
Vinham como colonos uns duzentos homens, entre fidalgos e artesãos, e quatorze apóstolos
da Reforma, emissários diretos de Calvino.
Toda esta gente de chegada se surpreende com o que
encontra e mais ainda, dentro de pouco tempo, com as mudanças que vai ali
operar a coragem dos ministros. Tais foram essas mudanças que os mais
incrédulos, entre os que desde muito amargavam aquela vida, esses mesmos,
quiseram persuadir-se de que se transformava com efeito agora aquele espírito.
Logo se viu, no entanto, que tudo aquilo não passava
de pura ilusão. Não demorou que entre Villegaignon (e uns quantos católicos) e
os ministros protestantes, se fossem travando, sobre pontos de fé, irritantes discussões
que logo degeneraram em discórdia aberta.
Além desses grandes motivos de desânimo, sobretudo
para a gente que viera com Dupont, ainda a crueldade, com que a todos se
impunham as mais peníveis tarefas naquele presídio, acabava por matar nos
pobres corações toda a esperança com que tinham vindo.
Sentindo o que se passa em volta da sua pessoa, perde
Villegaignon de todo a cabeça, e desanda de uma vez para os excessos de tirania
que estavam muito na sua índole.
Espantados ante a versatilidade, a desconcertante
inconstância e perfídia de tal homem, procuram os historiadores explicar o que
se lhe passava na alma danada. Falava-se, no tempo, que o cardeal de Lorena
(Carlos de Guise) e outras notabilidades do partido católico em França, lhe
haviam escrito, censurando-lhe acremente a apostasia e que, receoso da
arguição, mudara ele subitamente de pensar.
Seja isto ou não verdade, o que se sabe é que o homem
se tornou tenebroso e sinistro, "como se tivesse na consciência um verdugo
a pungi-lo". O que se infere, em suma, dos documentos, e da própria
conduta de Villegaignon na América, é que o homem nunca deixou de ser católico;
que em França se disfarçou quanto pode, só para criar um grande motivo que
tornasse popular e patriótico o empreendimento planeado; que na ilha de Coligny continuou por algum tempo a
comédia; e que, assim que sentiu como Henrique II tomava interesse pela obra, e
que já não era mais preciso parecer protestante, entendeu que não havia mais
necessidade de contrafazer-se.
6 — Tendo tocado ao extremo a situação no presídio,
declaram formalmente os calvinistas que permanecem fiéis aos sentimentos com que
saíram de Genebra, e que se desligam de quaisquer compromissos com o chefe desmandado.
Compreendeu então este que não era mais possível
continuar aquela farsa. Está reduzido a confiar só naquela guarda temerosa.
Dentre os huguenotes ninguém mais trabalha no forte. Os outros, menos lhe
obedecem do que lhe temem a cólera tremenda.
Em transe tão excepcional, cai o homem numa
verdadeira obsessão de insânia. Fecha-se na sua câmara como numa jaula, e dali
expede os seus decretos e sentenças.
Por fim, teve de consentir que os calvinistas
voltassem para a Europa, mas ordenando-lhes que imediatamente se retirassem da
ilha.
Deram eles graças a tanta fortuna, deixando aquela geena onde haviam penado cerca de oito
meses.
Num ponto da praia quase fronteiro ao forte,
estiveram uns dois meses, nas melhores relações com os índios da vizinhança,
sem o favor dos quais teriam com certeza perecido.
Num velho navio francês, partiram enfim, a 4 de
janeiro de 1558, aqueles homens tão insolitamente desenganados daquele gesto
insidioso da sorte.
Tentou Villegaignon mudar um pouco; mas o regime na
ilha não mudou.
É que ninguém mais cria nele. Os que podiam
continuaram a fugir do forte. E não tardou que o homem dissimulado voltasse a
si, e que o '"seu natural de bruto reaparecesse". E para fazer-se uma
ideia do extremo a que este homem tinha descido naquela fase de histeria
criminosa, basta ver a conduta de celerado que teve com alguns daqueles
calvinistas retirantes, que preferiram retroceder para o forte a arriscar-se a
uma travessia do oceano em um navio que começava a fazer água antes de se haver
afastado da costa. Eram cinco os genebrinos que tinham deixado o navio, e à
custa de longos sofrimentos, vieram alcançar outra vez a Guanabara.
Procuraram logo o vice-almirante, apelando para a sua
misericórdia. O bárbaro, nos primeiros momentos, tranquilizou os desventurados;
mas dali a dias, meteu-se-lhe na alma celerada a suspeita de que aqueles pobres
homens eram espiões dos falsos fugitivos, e com requinte de inclemência e de dureza
que faz gelar o coração, mandou afogar três dos desgraçados na baía, condenando
os dois outros a trabalhos de calceta no forte.
7 — Esta horrível tragédia coroou aquela obra de
demência e de crime. A população, tanto da ilha como do continente, ficou
estarrecida, não se sabe se mais de indignação ou de pavor. Alguns dias depois
da execução dos três mártires — diz Gaffarel — metade dos colonos tinham
desertado, uns metendo-se em desvario pelas florestas; outros procurando as
praias, na esperança de que os recolhesse algum navio francês. Muitos foram até
pedir abrigo aos colonos de São Vicente, sendo ali acolhidos com muita
caridade.
O que nos enche de pasmo é que Villegaignon
"detestado pelos calvinistas, temido e desprezado pelos católicos,
aborrecido pela gente da terra", tenha podido fazer-se algoz de tantas
vítimas, zombando de todas as leis divinas e humanas; e tenha ainda afinal
saído incólume daqui, deixando-nos, num canto escuso da nossa história, a mais
negra mancha que a conspurca.
A própria retirada de Villegaignon foi um ato de
cobardia e desonra. Só a consternação produzida pelo sacrifício daquelas
últimas vítimas é que talvez tivesse aclarado aos olhos do tirano, a situação
que ali criara.
E agravando para ele a conjuntura, começou a correr
notícias de que os portugueses se preparavam para reagir contra os intrusos. Já
haviam, aliás, os colonos começado hostilidades, atirando contra os franceses
os índios que lhes eram aliados.
Como diz o insuspeito autor citado, sente agora
Villegaignon que o terreno lhe falta debaixo dos pés.
Nada mais tem a fazer senão sair. E saiu traindo,
abandonando, e com promessas falazes, aqueles restos da gente que enganara, e
que tanto havia feito padecer.
Nem se pode vacilar: esta figura, que poderia ser ainda
um enigma para muitos, teve de ficar aí aberta e cruenta, como os réprobos que
não merecem o perdão da posteridade.
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Biblioteca Nacional Digital:
http://bndigital.bn.gov.br
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