Guerra dos Emboabas
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Não há nada que nos possa dar uma ligeira ideia sequer do alvoroço geral
que produziu a notícia (pelos fins do século XVII) da descoberta das grandes
jazidas de ouro no interior. Espalhada a notícia por todo o Brasil e lá no
reino, as migrações em massa tornaram-se espantosas. "Das cidades, das
vilas, dos recôncavos, do fundo dos sertões, acorriam brancos, pardos, negros,
índios. A mistura era de toda condição de pessoas: homens, mulheres, moços e
velhos, pobres e ricos, plebeus e fidalgos, seculares e clérigos, religiosos de
diferentes institutos, muitos que nem tinham no Brasil convento nem casa".
Era a vertigem da fome que atacara todo um tempo!
Seria fácil prever o que se
vai dar naquelas vastas aglomerações de gentes de toda ordem, tangidas do seu
delírio, ali como afastadas do mundo, fora da ação da autoridade oficial, e
tendo de instituir como leis o talante dos mais fortes, o sucesso dos mais
espertos, a preeminência dos que tivessem mais fortuna. Em todas as zonas que
foram invadidas, desde os primeiros dias começou-se a sentir que a existência
nos vários núcleos de mineração ia ser amargurada. Os próprios chefes, que
tinham levado às vezes anos e anos unidos pelo sentimento da mesma causa,
estavam agora suspeitos uns dos outros, quando não inimigos irreconciliáveis.
Enquanto os paulistas
defendiam as minas como de direito patrimônio seu exclusivo, por terem sido
eles os descobridores, iam os forasteiros entrando com eles vigorosamente numa
competição desesperada e quando se sentiram bastante fortes pelo número, não
trepidaram em levantar-se unidos para conseguir pela força o que pela força
lhes recusavam.
Desde 1706, a animosidade
crescente entre os dois partidos fazia prever que o rompimento era inevitável,
e que bastaria um incidente para precipitar uma contra a outra aquelas facções
em alvoroços.
Esse incidente apareceu logo e
mais de um em vários pontos, acendendo-se como de súbito a desordem geral. O
que se deu no Caeté é que foi decisivo. Estavam
ali, pela manhã de um domingo, à porta da igreja, à espera da missa, Jerônimo
Pedroso de Barros e seu cunhado Júlio César Moreira, ambos paulistas orgulhosos
e cheios de império. Passou-lhes pela frente, àquela hora, um forasteiro,
trazendo, como de costume, uma espingarda a tiracolo, e muito ufano, com ares
quase de acinte e ostentação.
Foi isto o bastante. Querem os
paulistas tomar a arma ao forasteiro. Grita
este por socorro, e acodem muitos a defendê-lo, tendo à frente Manuel Nunes
Viana, cabeça dos reinóis, e o mais poderoso caudilho das Minas.
2 - Sujeito inteligente e
muito atilado, compreendeu Viana a inconveniência do destempero e o perigo do
transe, procurou acalmar os ânimos, fazendo sentir aos paulistas a injustiça
que cometiam contra aquele pobre homem.
Mas as boas maneiras de Viana
animaram os paulistas a prorromper em mais violentos impropérios contra os
forasteiros em geral. Tomaram por medo o que não era mais que prudência. E logo
das palavras de insulto foram até o formal desafio — diz o historiador Diogo de
Vasconcelos arrebatado então, de ira, chamou-os Viana ali mesmo a campo.
Interpuseram-se naquele momento alguns circunstantes, e evitou-se o conflito
naquele tão impróprio lugar. O repto, porém, estava lançado entre as duas hostes.
Tendo notícia de que os
paulistas se preparavam para desafrontar a Jerônimo Pedroso, previne-se pela
sua parte Nunes Viana, disposto a fazer-lhes frente em qualquer terreno.
À vista disso, puseram-se em
conselho os paulistas de todo o distrito, e cuidaram do sossegar os ânimos.
Procurou-se então o chefe dos emboabas, e com ele combinou-se a paz por um
ajuste que se reduziu a termo, e foi por todos assinado.
Não tardou, porém, que um novo
incidente viesse comover outra vez todo o distrito de Caeté: a morte do
paulista José Pardo, quando, em sua própria casa, dava refúgio ou escapula a um
mameluco que tinha assassinado um forasteiro, e era perseguido pelo clamor dos
outros.
A guerra tornou-se agora
inevitável.
Pelos fins de 1707 correu
entre os forasteiros o aterrador boato de que os paulistas, em concerto no Rio
das Velhas, tinham decidido expelir ou exterminar de uma vez todos os seus
concorrentes moradores nas Minas. Dizia-se até, já marcado o dia (para meados
de janeiro) em que se devia fazer o massacre em todos os arraiais.
Assim que se espalhou essa
notícia, começaram a afluir de todos os distritos para Caeté multidões de
forasteiros em grande alarma, e pôr-se às ordens de Nunes Viana. Foi este
aclamado governador das minas, "para de uma vez acabar com a insolência
dos paulistas e obrigá-los a viver dentro das leis". Instala Viana o seu
governo em uma das suas casas do Caeté; e proclama à população das Minas,
assegurando que só assumira tão grande responsabilidade para salvar, naquela
conjuntura, os interesses da paz e da justiça.
Assustados com semelhantes
movimentos, fugiram do Caeté os paulistas em grande aflição, e foram
concentrando-se no arraial de Sabará, onde se apercebem para a guerra.
Ali os foi atacar Nunes Viana,
obrigando-os a fugir em completa desordem.
Esta primeira vitória dos
emboabas começa logo a complicar as funções do governador das Minas, pondo-lhe
em contraste com o coração o destempero da massa heterogênea que tinha de
conter. Aparecem dissenções, ciúmes e despeitos no próprio exército vitorioso.
"Os naturais do Norte, em maior número da Bahia e de Pernambuco"
opõem-se formalmente à moderação com que se tratam os vencidos. Alguns chefes
ali mesmo se separam, em grande furor contra Viana.
Como para atalhar os embaraços
que sobrevinham, recebe-se notícia de que os paulistas da Cachoeira do Campo e
do Ribeirão do Carmo ameaçavam o arraial de Ouro Preto.
Aumentada a sua gente com a de
Pascoal da Silva Guimarães, foi o governador das Minas investir a primeira
daquelas posições. Deu-lhe dois ataques, sendo, em ambos, ele próprio ferido,
tendo afinal de passar o comando ao terrível frade Francisco de Menezes, a alma
danada de toda aquela discórdia.
Este homem, já famoso nas
Minas, maligno, astuto e sutil "como um demônio", arma um bote fatal
contra os paulistas. Fingindo uma obrigada suspensão da luta, espera que tudo
no arraial entre no silêncio do sono, e faz, insidioso, felino e sinistro,
invadi-lo alta noite, surpreendendo os paulistas no seu repouso. A confusão foi
horrível. A vitória foi completa.
Com este segundo estrondoso
feito acentuam-se os embaraços com que desde Sabará andava lutando Nunes Viana.
É neste momento que Fr.
Francisco de Menezes, e outros frades que com ele vivem de conluio a explorar
aquela situação, tomam o expediente de sagrar Nunes Viana como supremo ditador
das Minas Gerais, dando-lhe assim à autoridade uma como sanção divina, que a
fizesse parecer legítima aos olhos de toda a gente simples do sertão.
Celebrou-se ali mesmo, em
Cachoeira, a cerimônia da sagração com muita pompa. Dali partiu o ditador para
a Serra do Ouro Preto, onde entrou em triunfo. Tornou-se então, este arraial,
como a capital das Minas, estabelecendo ali o ditador o seu governo.
4 - Os paulistas, que iam
sendo acossados das derrotas, foram reunindo-se no arraial do Rio das Mortes; e
sentindo-se fortes pelo número, resolveram tomar a ofensiva, indo logo cercar o
arraial forasteiro da Ponta do Morro. Resistiram os emboabas até que lhes
chegassem socorros de Ouro Preto. Mandou-lhes o ditador uns mil homens, às
ordens do valente, mas cruel e desumano sargento-mor Bento do Amaral Coutinho.
Sabendo que vinha esse
reforço, levantaram os paulistas o cerco, e seguiram caminho de São Paulo.
Chegando à Ponta do Morro no
outro dia, destacou imediatamente Coutinho uma partida no encalço dos
fugitivos. Voltou esta força dando conta de que, a cerca de umas quatro léguas
dali, estavam os paulistas acampados, ou pelo menos uma parte deles, parecendo
tranquilos como em pouso.
Mal ouvira aquela notícia,
"saltando como um tigre mal ferido", mandou Coutinho reunir a sua
gente, e se pôs em marcha para aquele lugar. No dia seguinte cercava o capão
onde estavam os paulistas, rompendo logo fogo cerrado. Combateu-se ali dois
dias sem cessar. Por fim, não tendo mais munições, renderam-se os paulistas sob
a garantia das vidas. Assim que viu, porém, aquela gente desarmada, caiu o
próprio sargento-mor, e seguido dos seus, sobre ela, massacrando-a toda.
"Eram cerca de trezentos homens, e foram todos imolados. Transidos de
horror, os próprios oficiais, e muitos reinóis protestaram contra a iniquidade;
mas em vão. Só puderam afastar-se, para não selar com o seu testemunho aquela
cena de infâmia e canibalismo".
É fácil imaginar o espanto e
consternação que nas Minas e em toda a colônia produzira aquela sacrílega
enormidade. O sítio onde se deu a carnificina ficava à margem da estrada real;
mas dali por diante mudou-se o caminho, e ninguém mais quis passar junto
daquele, que ficou chamado Capão da Traição.
O próprio governador do Rio de
Janeiro, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lancastro, que não dera ouvido aos
clamores que desde muito lhe vinham do sertão "recebendo agora notícia
daquele pavoroso morticínio, compreendeu que males tinha deixado consumar com a
sua desídia". E tal foi a impressão que sentiu que tomou imediatamente a
resolução de partir ele próprio para as Minas.
Infelizmente, foi este erro
muito maior que o outro. Entrou ele na região conflagrada como quem vai
castigar, e muito ostentoso da sua autoridade.
Preparou-lhe, no entanto,
Nunes Viana, um simulacro de guerra, e o fez retroceder do arraial de
Congonhas, saindo mesmo de noite e atropeladamente.
5 - Tão fortes se sentem os
forasteiros que resolvem expedir para a corte um mensageiro, encarregado de
expor tudo ao próprio rei, "como se quisessem assim dar contas de uma
função legítima, e convencer o governo de que só por melhor zelar os interesses
da justiça, da ordem geral e da fazenda pública é que se tinham
levantado".
O mensageiro escolhido foi fr.
Francisco de Menezes, hábil, astuto, dissimulado como ninguém para aquela
tarefa. Aos argumentos de que se valesse, juntaria o poder de uma eloquência
que mais do que tudo tinha força em Lisboa: a dos quintos que se haviam
arrecadado (de importância superior à dos do último ano) e dos valiosos
presentes que se enviavam ao rei.
Se alcançarem o que intentam,
que é o perdão geral, terão vencido, e as Minas estarão pacificadas. Se o rei
se mostrar austero, e os repelir, neste caso, "sem mais dever de súditos
de um rei que os abandona", cuidarão por si mesmos do seu destino na
amplitude da terra, "ainda que tenham que trasladar-se para os seus
confins à procura de outra lei"...
À vista de caso tão
complicado, a única providência que a corte podia tomar foi a que tomou,
nomeando para o governo do Sul Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, homem
notável, que já havia governado o Maranhão, dando provas de prudência, firmeza,
circunspeção e espírito de justiça.
Por mais alarmantes que fossem
as informações que recebera ao chegar ao Rio acerca da situação das Minas,
principalmente as que lhe dera o seu predecessor, o primeiro cuidado de Antônio
de Albuquerque foi ir em pessoa às regiões que se achavam em violento estado de
rebelião e de guerra.
Antes de partir, teve ensejo
de receber um emissário dos forasteiros, o carmelita fr. Miguel Ribeiro, homem
inteligente e digno, e já conhecido, e parece que até amigo do Governador.
Expôs fr. Miguel o que se havia passado, e a situação em que se encontram as
Minas, e pediu a Albuquerque, em nome dos levantados, que fossem por si mesmo
conhecer a verdade.
Compreendeu tudo o hábil
político, e viu logo que não se enganara quanto ao caminho que planeara tomar.
De acordo com o frade, em vez de seguido de grande aparato de forças, deliberou
partir para o sertão levando apenas, como guarda de pessoa, uma escolta de
vinte soldados.
6 - Dirigiu-se primeiro, o
Governador, acompanhado de Fr. Miguel, para o arraial de Caeté, que estava em
poder dos paulistas; e dali expediu o seu ajudante para Ouro Preto, levando a
Nunes Viana a intimação de apresentar-se com urgência no Caeté.
O ditador, que já se havia
adiantado em declarar-se submisso, recebeu satisfeito a intimação; e no dia
seguinte, em companhia de uns quantos amigos, veio encontrar-se com o Governador.
Com mostras de deferência, recebeu-o Albuquerque; e para dar ao fato "um
caráter solene, convocou uma
Junta", perante a qual depôs Nunes Viana, em mãos da autoridade superior,
"o governo e a regência das Minas, e fez a sua submissão, com juramento de
fidelidade aos delegados de El-Rei, presentes e futuros".
Acabou assim, exatamente no
transe que parecia de mais angústia, aquele extraordinário movimento, sem
dúvida o mais estranho dos tempos coloniais, e o mais notável como expressão
dessa alguma coisa de nova consciência que dá sinal de si na ordem civil. De
certo que em plena paz não se julgam ainda os distritos mineiros (e por ali a
ordem vai ser precária até meados do século); mas aquele grande perigo (de tão
considerável poder militar que crescia com os sucessos) estava desfeito.
Como indispensável medida de
prudência, afastou-se Viana, assim como outros cabeças da revolução, por algum
tempo das Minas, para não embaraçarem por ali a ação reparadora da autoridade.
Com os paulistas, no entanto,
não teve Antônio de Albuquerque a mesma fortuna.
Tendo tomado todas as medidas
tendentes a normalizar as coisas nos vários distritos mineiros, seguiu o
Governador com destino a São Paulo.
Aquele horroroso massacre do
Capão da Traição tinha exacerbado os velhos ódios, e os paulistas agitaram-se
em grande furor de vingança. Reuniu-se o povo no paço do senado, e ali
proclamou-se a guerra santa contra os forasteiros. Aclamado chefe Amador Bueno
da Veiga, em breve estava formado um exército respeitável.
Ao pôr-se em marcha esta gente
para o sertão das Minas, reza a tradição que as esposas "animaram os
maridos para aquela ação do seu maior empenho, lembrando-lhes que só com o
sangue dos inimigos se devia lavar aquela mancha, que tanto denegria o timbre e
o crédito dos paulistas: protestando-lhes juntamente que se assim o não
fizessem, seriam objeto do seu maior desprezo e aborrecimento, ficando para
sempre abandonados da sociedade e união conjugal".
7 - Ao ter notícia da borrasca
iminente, pensou Albuquerque em fazê-la parar chamando à razão as facções outra
vez em delírio. Mas já não havia mais tempo. No Rio das Mortes levanta-se de
novo o alarma geral; e pareceu que as Minas estavam nas vésperas de mais
temeroso incêndio.
Na esperança, porém, de fazer
em São Paulo o que fizera no Caeté, apressa o Governador a sua marcha. Em
Guaratinguetá sabe que os paulistas "estão dali a um dia de viagem",
e enviou um oficial a encontro de Amador Bueno, convidando-o para uma
entrevista antes de continuar a marcha.
Acedeu de pronto Amador,
apresentando-se em Guaratinguetá. Não se sabe o que se passou na conferência.
Pode-se, no entanto, afirmar com segurança que Albuquerque, não tendo
conseguido dissuadir os paulistas daquele intento, lançou-lhes toda a
responsabilidade do passo que iam dar; e dali apressou-se a voltar para o Rio,
onde tomou providências em favor dos arraiais ameaçados.
Por sua parte, tendo aviso de
tudo, acodem os forasteiros à Ponta do Morro, e ali se fortificam.
Não tinham ainda acabado de
construir as suas trincheiras, quando apareceram os paulistas, e foram logo
cercando a praça. Combateu-se ali ferozmente durante mais de uma semana.
Afinal, ao romper da manhã de
um sábado, viu-se do reduto "deserto o campo em fora, e o silêncio mais
profundo em torno do arraial". É que correra, entre os paulistas, a
notícia de que avançava uma grande força em socorro da praça; e mesmo de noite
resolveram abalar, sem mais disciplina nem ordem.
No seu entusiasmo, puseram-se
os forasteiros no encalço dos fugitivos; "oito dias os foram perseguindo —
diz Southey; mas levavam eles a dianteira, e sendo o medo mais veloz do que a
esperança, chegaram a São Paulo sãos e salvos, posto que com pouco fundamento
para esperarem uma recepção triunfal da parte das viragos que os haviam
instigado".
Só agora é que se consideram
pacificadas as Minas Gerais.
Vem logo a criação da nova
capitania de São Paulo e Minas.
O próprio Antônio de
Albuquerque mostrou aos paulistas como eram preferíveis os processos que eles
tinham repelido; com eles se reconciliou; e veio logo o perdão geral; e por
aquela vez parecia tudo esquecido.
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