
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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O GOVERNO GERAL
1 — No seu aspecto geral, era esta, em 1548, a
situação do Brasil. Estava iniciado o povoamento nas capitanias de São Vicente,
do Espírito Santo, de Porto Seguro, dos Ilhéus, da Bahia, de Pernambuco e de Itamaracá.
Contavam-se já umas quatorze ou quinze povoações
nessas capitanias, de muitas das quais já se iam exportando para o reino vários
produtos, como açúcar, algodão, tabaco, infinidade de matérias extrativas e
outros artigos do pais.
Começavam a estabelecer relações entre as diversas
capitanias, amparando-se o protegendo-se entre si os donatários. Defendia-se
resolutamente a terra contra os especuladores que varejavam o litoral. Todas as
povoações tinham já, cada qual, o seu forte e competente guarnição. Em quase
todos os portos havia pequenas forjas e estaleiros, onde se consertavam navios,
e até se construíram embarcações para os serviços da costa. As relações com a
metrópole já se faziam mais frequentes, por esforços dos próprios colonos,
mediante contratos com armadores particulares.
Em suma, os donatários tinham revelado o Brasil,
mostrando que ele não era mais o país inóspito e tremendo dos primeiros dias.
Haviam desfeito os mistérios e as lendas. Tinham aberto caminho aos obreiros
futuros, e desembaraçado a terra para a ação da autoridade oficial.
Isolado num único ponto da costa, no meio de
seiscentas léguas desertas, não seria Tomé de Sousa, com a sua pequena
expedição, capaz de resistir aos selvagens, estimulados e dirigidos pelos
franceses.
Aos donatários tocou, portanto, a obra menos
gloriosa, é certo, mas a tarefa mais árdua, sem a qual não se haveria preparado
o país para a organização administrativa que se vai seguir.
Além de tudo quanto desde muito impressionava o
espírito da corte, dois fatos iam agora apressar a deliberação que se tomou; o
desastre de Francisco Pereira Coutinho, e o cruzeiro ostensivo que os
contrabandistas franceses mantinham nos mares da costa, entre a ilha de São
Sebastião e o Cabo Frio. Sobretudo este último perigo denunciava cabalmente a
incapacidade dos donatários para prover com eficácia à guarda da costa.
Tão desafrontados e arrogantes tornaram-se afinal os
franceses que as vilas de São Vicente e do Porto de Santos se viram reduzidas a
uma conjuntura aflitiva, ameaçadas até de bloqueio formal por aqueles
aventureiros.
Não era possível, pois, retardar-se uma providência
decisiva para salvar o Brasil.

Para isso era necessário alterar alguma coisa no
regime das donatárias, derrogando muitas das amplas jurisdições e privilégios
que se haviam concedido aos capitães.
Fizeram-se essas reformas nos próprios regimentos
dados em 1548 a Tomé de Sousa, como Governador Geral; a Antônio Cardoso de
Barros, como Provedor-Mor da Fazenda; e a Pero Borges, como Ouvidor Geral.
A julgar por esses regimentos, o intuito do governo
português é, por enquanto, ensaiar a colonização oficial, e fazer diretamente
um serviço que se tornasse como norma para os donatários.
O Governador Geral vem "fundar uma fortaleza e
povoação grandes na Bahia, de onde se possa dar favor e ajuda às demais
povoações, e prover nas coisas da justiça, direitos das partes e negócios da
real fazenda".
O regimentos de 1548 mal delineiam o regime novo, que
só com o tempo se foi integrando; mas é bastante ver que por eles aqui se
constituía uma como delegação da soberania real para todo o país; que se punha
a justiça fora da alçada exclusiva dos capitães; que se continham os arbítrios
do fisco, pondo os respectivos agentes nas capitanias, e os próprios
donatários, sob a superintendência e inspeção de um Provedor-Mor.
Para assento do Governo Geral escolheu-se a Bahia,
por ser o ponto da costa, de onde, em virtude da respectiva posição geográfica,
mais facilmente se poderia acudir às diversas capitanias. O desastre de
Coutinho facilitou a reversão da donatária à coroa, mediante acordo com o
sucessor do malogrado donatário.

A sua austeridade vinha quebrar logo as tradições
daquela anarquia moral em que andavam vivendo quase todas as colônias.
Ao lado de Tomé de Sousa vieram homens que pareciam
da mesma estofa. As três autoridades superiores (Governador, Ouvidor Geral e
Provedor Mor) eram independentes, ou pelo menos tinham atribuições
discriminadas e próprias; mas deviam andar de acordo, formando um como conselho
do governo.
Investido do comando militar, como capitão-mor da
costa, vinha Pero de Góis, o qual talvez não se tivesse ainda desenganado da
sua paixão pela terra, apesar da desfortuna com que tentara colonizar a sua
donatária (São Tomé ou Paraíba do Sul).
Vinham também outros funcionários subalternos, muitos
oficiais e mestres de obras; uns 200 homens de tropa regular, uns 300 colonos
de contrato, e 400 degradados, formando um total de mais de 1000 homens.
Tendo saído de Lisboa em princípio de fevereiro, veio
a expedição chegar à Bahia pelos fins de março.
Dizem antigos cronistas que viera logo Diogo Álvares
ao encontro dos portugueses assim que fundeara a esquadrilha, um pouco antes de
defrontar com a antiga povoação de Coutinho. Sabe-se que já havia Diogo recebido
aviso da vinda do Governador; e é natural que se prevenisse para uma recepção
condigna.
Informado, pois, da situação da colônia e da atitude
dos selvagens, combinou Tomé de Sousa com o patriarca exule o modo como
convinha entrar no país. Reuniu e pós em ordem o Governador os homens de guerra
que trazia, e da praia marchou em forma para a Vila Velha, indo na frente os
padres (jesuítas e seculares que acompanhavam a expedição) conduzindo uma
grande cruz de madeira.
Dizem que a solenidade do préstito, e os cânticos com
que se maravilhavam os índios, comoveram até às lágrimas os próprios portugueses.
Da praia marchou a gente em ordem até o antigo
arraial de Diogo Álvares, onde se foram todos instalando.
Viu logo Tomé de Sousa que o da Vila Velha não era o
local mais próprio para fundação da cidade, e cuidou de escolher uma paragem
mais adequada. Depois de explorar o Recôncavo, convenceu-se de que ali não havia
sítio a preferir. Um pouco para o norte da Vila Velha, alteia-se a terra em
anfiteatro, da praia até uma larga chapada, coberta, então, de arvoredo. Ali
resolveu-se fundar a capital do domínio.

Com admirável disposição, toda a gente se entregou ao
trabalho, desde o próprio Governador e os padres, até as mulheres e as crianças,
e sobretudo os índios.
Feitas as primeiras casas, onde se puderam recolher
provisoriamente as famílias e as autoridades, cuidou-se de substituir a cerca
de madeira, que defendia a povoação, por uma alta e grossa muralha de taipa,
"com dois baluartes sobre o mar e quatro para parte da terra, com
artilharia e o mais necessário".
Dentro de dois meses, estava quase toda a gente que
viera com o Governador instalada naquele alto, que se guarnecia agora de muros.
Em Vila Velha, no entanto, ficavam sempre alguns já relacionados com o pessoal de
Diogo Álvares. E até fez Tomé de Sousa questão de não abandonar aquele posto,
que serviria ali de nexo entre a barbaria e a civilização que se assenta.
Em pouco tempo transformara-se inteiramente aquela
estância, a nova povoação surgira, como por encanto, do meio daqueles
esplendores da terra.
Acabada a construção da casa da Câmara e da igreja
Matriz, resolveu o Governador fazer com toda pompa a instalação da cidade.
Pela manhã de 1° de novembro (1549), acompanhado dos
seus oficiais e de todas as autoridades, e de multidão de povo, dirigiu-se Tomé
de Sousa para a igreja de N. S. da Ajuda, onde se celebrou missa do Espírito
Santo. Foi em seguida ao paço do senado; e ali, depois de declarar ereta a nova
cidade sob o nome de do Salvador, em presença do clero, nobreza e povo, prestou
juramento e assumiu o cargo de Governador Geral do Brasil, tomando por sua vez
o compromisso das outras autoridades e demais funcionários, e recebendo as
homenagens que lhe eram devidas.

Constituído o governo local, e arregimentados todos
os serviços, começou-se a distribuição de terras aos colonos, nas mesmas
condições em que o faziam já os donatários.
Ao mesmo tempo que distribuía terras e animava os
lavradores, ia o Governador mandando abrir estradas e caminhos em toda parte do
distrito onde não era possível a navegação. Nas vizinhanças da cidade, e até
fora, para o sertão, restauraram-se muitos engenhos que estavam abandonados, e
fundaram-se outros, tomando rápido incremento a indústria rural.
A viação costeira e fluvial tinha de ser o mais
poderoso instrumento do progresso da colônia; e para impulsioná-la, começou-se
por montar um grande estaleiro, onde logo se armaram pequenas embarcações para
o tráfico interno da vasta baía e dos rios que nela confluem, e depois,
galeões, bergantins e barcas para o serviço de cabotagem. Deu isto como resultado
imediato o povoamento de todo o litoral do Recôncavo.
Para estabelecer em grande escala a criação, empregou
o governador uma caravela só no transporte de gado das ilhas, para onde em
troca já se mandava madeira. É ele próprio que diz ao rei que o gado vacum é "a
maior nobreza e fartura que pode haver nestas partes".
Não podia, pois, ter tido mais auspicioso início a colônia
destinada a ser sede do Governo Geral.

Com semelhante intuito, assim que se encaminharam as
obras da cidade, o seu primeiro cuidado foi mandar o Ouvidor Geral e o
Provedor-Mor em visita às capitanias do Sul, onde mais se fazia sentir a
necessidade de corretivo e de amparo oficial.
Para isso organizou-se uma flotilha de duas caravelas
e um bergantim, sob o comando do próprio capitão da costa. Pero de Góis.
Estas autoridades visitaram todas as vilas marítimas
das várias capitanias, tomando as medidas indispensáveis para que se
regularizassem todos os serviços, e tendo ensejo de reprimir a audácia de
traficantes franceses em algumas baías.
O grande proveito que se colheu desta visita foi
exatamente esse de verificar-se até que ponto se haviam os franceses adiantado
na invasão desta parte da costa, ameaçando de graves perigos as colônias
portuguesas. Principalmente Pero de Góis, pelo dever do seu posto, não cessou
mais de clamar, escrevendo continuamente para a corte, e insistindo junto do
Governador Geral por urgente ação decisiva contra os intrusos.
Não dispunha, no entanto, Tomé de Sousa de recursos
com que pudesse assumir ofensiva de proveito. Em tal conjuntura, o mais que
cumpria era ir simulando rigor de vigilância com o fim de desassombrar a
navegação para o sul. Na impossibilidade de manter um cruzeiro regular na
costa, limitou-se ele, de concerto com o capitão do mar, a desimpedir o
trânsito até São Vicente fazendo seguir de quando em quando para ali a pequena e
quase desmantelada flotilha, e mandando escoltar as embarcações mercantes. Desse
modo, ao menos, embargava-se o desplante e arrogância dos especuladores.

Em São Vicente foi recebido com muitas festas. As
coisas da terra iam regularmente. Só as complicações com os índios é que
andavam cada vez mais perturbando a vida dos colonos. Teve, portanto, de
melhorar as condições de defesa, fazendo reparar os antigos fortes, e construir
outros, e aumentando a guarnição das duas vilas.
A instância de João Ramalho, foi o Governador até
Piratininga. Ali encontrou muitas queixas contra aventureiros, mesmo portugueses,
que tinham invadido o campo em grande ânsia de lucros. Os mais afoitos
embrenhavam-se pelos sertões, indo até o Paraguai negociar. Chegou a tal ponto
este comércio com Assunção pelo interior, que o próprio Tomé de Sousa se
alarmou, e entendeu conveniente impedir tais comunicações.
Concluída a visita, apressou-se o Governador a voltar
para a Bahia, onde a sua ausência já se fazia sentir. A incontinência dos
colonos ia gerando colisões com os selvagens; e o que ocorria dava-lhe uma
impressão bem funda do modo como se há de levar na América o problema do
povoamento.
Havendo apanhado em síntese o que se passa ali e nas
demais capitanias, as necessidades de que mais se ressentem todas, os erros que
era mais urgente corrigir, as providências mais instantemente reclamadas, não
perdeu tempo em longos relatórios: formulou concisa e nitidamente o seu modo de
ver, escreveu ao rei expondo tudo com franqueza, e expediu imediatamente para o
reino o homem de mais confiança entre os seus auxiliares, o próprio capitão-mor
da costa, a dar em pessoa e de viva voz todas as informações que pudessem
orientar o governo de Lisboa.
A chegada de Pero de Góis à corte causou a mais viva
satisfação, pela certeza que se teve de que se havia fundado enfim a obra da
colonização, e com tanta fortuna que já se podiam considerar como renascentes, nesta
porção dos vastos domínios da monarquia, aquela antiga coragem e aquela
esperança que começavam a desfalecer na África e na Ásia.
Agora, na América portuguesa, tudo dependia de
continuar com segurança a obra iniciada. Para isso é preciso, antes de tudo,
que no Governo Geral se ponham sempre homens que se meçam pela estatura daquele
que acaba de cumprir conscienciosamente o seu heroico dever.
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