Fundação do Rio
de Janeiro
Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
1 — Como já vimos, havia Estácio de Sá, em 1565
(princípios de março), fundado oficialmente a cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro, ali na estreita várzea entre o morro Cara de Cão do lado do mar, e a
Urca e o Pão de Açúcar, do lado de terra.
Não só celebrou ali a cerimônia da instalação da
cidade, como praticou atos de governo que tornam essa obra perfeitamente
autêntica.
Mas é claro que a escolha daquele local, pequena
nesga de terra apertada entre montes, e quase isolada do continente, fora feita
nas circunstâncias excepcionais em que se achava o capitão tendo a baía
senhoreada pelos franceses.
Agora, expulsos os intrusos, cumpria mudar logo para
outro ponto do litoral o centro urbano. A paragem escolhida para isso foi o
morro, que tomou o nome de morro do Castelo.
Para fazer-se uma ideia do acerto com que se vai
localizar ali a povoação, seria preciso reconstruir um como esboço dessa porção
do litoral dominada pela colina que se tornou lendária. À vista de tal esboço
havia de ser muito difícil reconhecer a topografia e o aspecto geral da cidade de
hoje — tão completa é a transformação que tudo tem sofrido em quase quatro
séculos.
Em toda a linha da praia o mar tem recuado. O desbastamento
de grande número de outeiros tem contribuído muito para alterar a fisionomia topográfica
do centro urbano, determinando, não só uma sensível elevação do solo em toda
parte, como também o entulho de muitas depressões (lagunas e banhados) que desapareceram.
Alguns dos montes que se veem hoje separados da praia (como o de São Bento, o
próprio Castelo e outros) estavam naqueles tempos em contato com o mar. As enseadas
magníficas, que são o encanto da nossa baía, não passavam, então de pequenos
recôncavos e abertas, por onde as grandes marés invadiam às vezes consideráveis
trechos do assento atual da cidade. As ruas paralelas que da Primeiro de Março
vão à Praça da República; todo este parque e imediações; a antiga rua Visconde
de Itaúna, e todo o quarteirão de que era eixo, se não ficavam propriamente
inundadas em épocas de preamar, eram pelo menos alagadiços e charcos que depois
de secas prolongadas se disfarçavam. O grupo formado pelos outeiros da Saúde, da
Providência, do Nheco e de São Diogo, estavam separados da terra firme; o canal
de alagadiços que começava na praia (entre o Castelo e o São Bento) ia
emendar-se à lagoa da Sentinela, e pelo canal do Mangue, seguia até à extinta
praia das Palmeiras.
2 — O morro do Castelo, pois, pela sua situação, era
o que se impunha à perspicácia daqueles homens, entre os quais havia até
pessoal de competência técnica em matéria de construções, e experientes naquela
função de criar cidades.
Como quase todos os outeiros e montes das imediações,
era o Castelo coberto de floresta virgem. Cuidou-se de preparar o sitio para a
cidade, derribando matas e nivelando áreas para as construções.
Na parte mais alta do monte (pico de São Januário)
fronteira à baía, levantaram-se as fortificações que deviam proteger a cidade.
Em outros pontos do morro começou-se a construir a igreja matriz, e a igreja e
Colégio dos Jesuítas; a casa da câmara; a cadeia; e casas particulares.
Decerto que a cidade não seria aquele grupo de
edifícios que se levantaram no alto do monte. Ali se erguera a cidadela, com
suficiente largueza, e em condições de servir de refúgio à população no caso de
perigo.
A cidade desenvolveu-se, primeiro pela ladeira da
Misericórdia, e ao sopé do monte, na parte da praia que tinha o nome indígena
de Piaçaba ("porto") e depois o de ponta do Calabouço.
É ali que se formou verdadeiramente a povoação. As
imediações da ponta do Calabouço e o quarteirão de que é eixo a atual rua da
Misericórdia são as porções mais antigas da cidade. Em seguida, é a rua Direita
(hoje Primeiro de Março), entre o Castelo e o São Bento, e em geral as
cercanias do Castelo.
Em toda aquela praia construíram-se muitos prédios,
tanto particulares como públicos, e principalmente armazéns de comércio; logo
depois uma capela, e mais tarde uma pequena Casa de Misericórdia. Também se
levantaram ali dois baluartes de defesa.
Localizou-se a Santa Casa na mesma parte da praia
onde está o grande estabelecimento de hoje.
Havia, aliás, Estácio de Sá criado de chegada, no
próprio arraial da barra, uma Confraria de São Sebastião, como faziam os
portugueses em toda parte onde se fixavam.
Provavelmente o que se fez por 1579 ou 1580 foi uma
ampliação do que já se havia feito em 1565.
3 — Logo que se murou, no alto do Castelo, o recinto
da fortaleza (que figurava a cidade) repetiu ali, o Governador Geral, a cerimônia
que uns dois anos antes havia já Estácio de Sá celebrado na agora cidade velha:
deu posse de novo ao alcaide-mor entregando-lhe as chaves da cidadela; o alcaide
entrou, fechando em seguida as portas, enquanto ficava Mem de Sá do lado de
fora; perguntou-lhe de dentro o alcaide se queria entrar e quem era; ao que
respondeu que queria entrar e que era o Governador em nome de el-rei nosso
senhor. E imediatamente lhe foram abertas as portas.
Estava assim reinstalada a nova cidade.
Tratou o Governador, em seguida, de prover
efetivamente os diversos lugares da administração e da justiça ainda vagos.
Nomeou ouvidor da comarca, juiz de órfãos, escrivão e
tabelião de notas, meirinho, pregoeiro público, escrivães da câmara e da almotaçaria,
provedor da fazenda, etc.
Concedeu grande número de sesmarias durante todo o
tempo que esteve aqui, respeitando as concessões feitas por Estácio.
4 — Apressou-se Mem de Sá em mandar vir, oferecendo-lhes
terras e outros favores, muitos colonos, do reino e das Ilhas, sementes e mudas
e "muito gado para povoar" o distrito, onde se desenvolveram
rapidamente a criação e a lavoura.
Cuidou também o Governador Geral de regular a
situação dos índios que tinham ajudado aos portugueses.
Concedeu-lhes terras nas imediações da baía, onde se
estabeleceram algumas aldeias sob o patrocínio dos jesuítas.
A principal dessas aldeias foi a de São Lourenço, na
costa oriental da baía em grande parte do assento da hoje cidade de Niterói,
onde se estabeleceu o Arariboia.
Este chefe índio, segundo se conta, havia saído da
Guanabara desgostoso com os franceses no tempo de Villegaignon; e fora
estabelecer-se com os seus na capitania do Espírito Santo, onde prestou bons
serviços aos colonos.
Quando Mem de Sá, em 1560, na sua primeira expedição
contra os intrusos, passou por Vitória, conseguiu que Arariboia, com grande
número dos seus (calcula-se nuns quatro mil arcos), se lhe incorporasse às
forças.
Aqui, na agressão aos franceses do forte Coligny, foi Arariboia com sua gente, de
uma importância decisiva para os portugueses.
É em recompensa de tais serviços que Mem de Sá lhe
faz agora a larga doação daquelas terras, onde se fundaram as duas aldeias, a
de São Lourenço e a de Icaraí. Foi ainda Mem de Sá que alcançou do rei para o
nobre chefe indígena o título de comendador da Ordem de Cristo.
5 — Não quis o Governador deixar a cidade sem
infligir nova lição de escarmento a uns chefes tamoios que se atreveram a provocar
os novos senhores da baía.
Foi ele em pessoa dar sobre aqueles rebeldes
obstinados, destruindo-lhes as aldeias, e forçando-os a fugir ou a submeter-se.
Afinal, dando por concluída a sua tarefa, ao cabo de
mais de um ano de trabalhos, retirou-se Mem de Sá para a Bahia, deixando ao governo
da terra seu sobrinho Salvador Correia de Sá.
Toda aquela obra se fizera sob tão bons auspícios
que, mesmo naqueles tempos, não seria difícil prever que aquele pequeno núcleo,
criado à custa de tanto esforço e sacrifício, viria tornar-se, por um admirável
conjunto de circunstâncias excepcionais, a grande metrópole da nacionalidade
futura.
De passagem para a sua capital, teve ainda o
Governador de ir socorrer os colonos do Espírito Santo contra os índios insurgentes.
Havendo posto em ordem aquela capitania, prosseguiu
para o norte, indo encontrar a Bahia em paz.
Em dez anos de atividade quase aflitiva, parecia este
homem excepcional ressentido agora de fadiga, e ansioso de descanso.
Com redobrada instância, e então já fazendo sentir,
como plena justificativa, o muito que havia feito, começou ele a pedir ao rei
que o dispense dos grandes sacrifícios que faz, e que lhe mande sucessor.
Enquanto lhe não vinha a desejada ordem de embarcar,
ia ele provendo aos negócios ordinários da administração, limitando-se quase
que ao mero expediente do governo.
6 — Mal poderia, no entanto, suspeitar que não tinha
mesmo de rever a pátria, ao cabo daqueles quatorze anos de trabalhos contínuos.
Em 1570 anunciaram-lhe da metrópole que haviam sido afinal atendidas as suas
constantes solicitações: nomeara-se-lhe em seu lugar ao malogrado D. Luís
Fernandes de Vasconcelos.
Apressara-se este em partir para o Brasil, saindo do
Tejo com uma frota de sete ou oito navios, vindo em sua companhia o padre
Inácio de Azevedo como superior de setenta e dois outros jesuítas, que vinham
ampliar em toda a América do Sul a obra da catequese.
Esta expedição celebrizou-se por uma verdadeira
catástrofe, sendo assaltada em viagem pelos corsários franceses Jaques Sória e
João Capdeville, sucumbindo na luta, vítima da despiedade e do ódio religioso daquela
gente, tanto o Governador como cinquenta e dois daqueles missionários.
Foi então nomeado para o governo do Norte do Brasil
Luís de Brito de Almeida.
Este só chegou à Bahia pelos princípios de 1573,
quase um ano depois do falecimento do seu operoso predecessor. Expirara, pois,
a 2 de março de 1572, Mem de Sá "muito piamente", ao cabo de mais de
quatorze anos de governo. Foi o seu cadáver inumado na igreja do Colégio dos
Jesuítas, hoje Catedral da Bahia.
Um ano e tanto antes (a 18 de outubro de 1570) havia
falecido no Rio de Janeiro o padre Manuel da Nóbrega, a respeito de cuja figura
diz o insuspeito Southey: "Não há ninguém a cujos talentos deva o Brasil tantos
e tão permanentes serviços". "Na véspera de sua morte saiu ele a
despedir-se dos amigos, como se fosse partir para uma jornada".
Perguntavam-lhe para onde ia: — "Para casa — era a resposta —; ...para a minha
pátria".
7 — No Rio de Janeiro ficara Salvador Correia de Sá
com poderes de um verdadeiro governador de capitania, e preposto direto do
Governador Geral. Nessa função de criar
a cidade fundada deu ele provas de que era homem de velha têmpera, como não era
ainda muito raro encontrar naquelas gerações.
Cuidou antes de tudo, de pôr a povoação ao abrigo de
surpresas dos índios pelo lado de terra. Para isso fez derribar as matas espessas
que assombravam toda a vizinhança, de forma a ter bem abertas e descampadas as
cercanias do Castelo.
Entenderam-se os dois governadores no sentido de
regular uniformemente as questões de mais interesse naquele momento, além das
soluções capitais indicadas. A que mais o preocupou, e a respeito da qual
tomaram assentos decisivos, foi a dos índios.
Conquanto deixando ainda certas ensanchas à gana dos
escravistas, convencionaram em proteger o gentio o mais que era possível, dadas
as condições que já se haviam criado na terra.
Sabia Salvador que continuavam franceses a frequentar
toda a zona marítima do Cabo Frio, e não se desapercebeu de aumentar o poder defensivo
da cidadela, e de apressar as obras de fortificações da barra. Não demorou a
convencer-se de como andava bem avisado.
Muitos dos franceses que tinham fugido da baía em
1567 foram tomar posição naqueles sítios, por onde, desde mais de meio século,
conservavam
feitorias, em relações muito regulares com os
tamoios.
Dali, na sua audácia, exerciam pilhagem nas costas
contra moradores desgarrados e indefesos, e por fim, quando menos esperava a
população da cidade, entraram pela baía desassombradamente quatro naus,
seguidas de oito lanchas de guerra e grande número de canoas; e foram ancorar defronte
à praia onde acampava o Arariboia com a sua gente (antes de ir para as suas
terras de São Lourenço).
Tomado de surpresa, fez o capitão-mor abrigar todas
as famílias na cidadela, e expediu um emissário àqueles piratas, para saber o
seu intento. Responderam eles que não tinham intenção de hostilizar a cidade, e
que só queriam prender o Arariboia para entregá-lo aos tamoios.
O famoso chefe temiminó, sabendo disso, longe de
esmorecer, fez retirar para sítio seguro a gente que não era de guerra, e
recolheu-se em sua cerca entrincheirada com os seus homens de combate.
Desembarcaram na praia os franceses, preparando-se
decerto para investir no outro dia o arraial de Arariboia.
Este, porém, durante a noite, investe com violência o
acampamento inimigo, obrigando os
franceses a reembarcar e sair da baía.
A tentativa, no entanto servia de aviso à população
da cidade, que por
muito tempo teria de ficar afrontada de tão teimosos
inimigos.
Por fortuna dos portugueses, crescia rapidamente o
número de habitantes. De todas as capitanias vizinhas, sobretudo de São Vicente
e do Espírito Santo, foram procurando o Rio de Janeiro inúmeras famílias, ansiosas
de fixar-se em pontos do domínio onde se vissem amparadas da autoridade
oficial.
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