Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Organiza-se agora (princípios do século XVIII) na região das Minas a ordem
legal; mas nem por isso cessaram as sedições e os motins naquela terra entregue
a todos os desvarios da ambição, tanto dos mineiros entre si, como entre estes
e o fisco real.
Começaram logo novos levantes
e tumultos quando se quis, na arrecadação do imposto sobre o ouro, voltar ao
regime da capitação, que a tantos reclamos tinha dado já lugar. Romperam os
primeiros, em 1716, era Caeté, e dali propagaram-se como verdadeira insurreição
por todos os outros distritos.
Teve o Governador, D. Brás
Baltasar da Silveira, de ceder às imposições gerais que lhe fizeram,
suspendendo a execução da ordem régia, e voltando à forma da finta coletiva e
fixa anual.
O próprio governo da metrópole
teve a prudência de conformar-se com isso.
Mas agora (1717) passam os
protestos a vir do povo, que se sente espoliado, contra os poderosos de conluio
com as Câmaras.
Com um pouco de jeito ainda se
evita a explosão. Mas os clamores vão lavrando, e crescem até os sucessos de
1720, de que vamos tratar, e nos quais, talvez ainda melhor do que nos de 1708,
se pressente em gestação o espírito que setenta anos mais tarde se revelou mais
formalmente, ainda que também vago e inócuo, em Vila Rica.
Pelos princípios de setembro
de 1717, chegara o novo Governador da capitania de São Paulo e Minas, D. Pedro
de Almeida, Conde de Assumar.
Vinha este encontrar o
território mineiro em geral anarquia. Era a cobrança dos quintos o grande
embaraço; mas agravado ainda pelo vício
das desordens.
Trazia o Conde de Assumar o
encargo de estabelecer as fundições, que o governo de Lisboa tinha como seguro
meio de facilitar a arrecadação e ao mesmo tempo impedir o contrabando de ouro.
Para isso, convocou ele na vila
do Carmo uma Junta de autoridades e deputados dos próprios mineiros. Não pôde,
porém, o Conde, inculcar ainda a conveniência da quintagem; pois a Junta,
"fazendo-se desentendida", deliberou que se aumentasse apenas a quota
da finta coletiva, passando a pagar ao erário vinte e cinco arrobas de ouro por
ano.
O Conde capitulou, aguardando
ensejo mais propício.
2 - O governo do rei é que não
esteve por essas condescendências: mandou ao Conde de Assumar um regimento de
dragões de cavalaria, e ordenou-lhe que instalasse as fundições, declarando
logo que assim que começassem estas a funcionar, cessaria toda e qualquer outra
forma de arrecadação dos quintos, e nenhum metal mais poderia circular ou ser
exportado que não fosse em barras, com todos os carimbos da fazenda real.
Agora, não mais hesita o
Governador. Montam-se quatro casas de fundição (em Vila Rica, em São João
d'El-Rei, em Sabará e no Serro), anunciando-se que a quintagem começaria a ser
feita no dia 23 de julho de 1720.
Houve logo um alarma geral,
dos potentados e dos frades principalmente, dizendo estes que contavam com seus
aliados de 1708, e até com o próprio Nunes Viana, cujo prestígio era ainda
grande na região das Minas.
E de fato, rebatendo aquelas
medidas tomadas pelo Conde, publicou o antigo ditador que na zona do rio São
Francisco os moradores não se deviam sujeitar à quintagem. E além dessa, com
outras disposições, criou o velho caudilho os maiores embaraços ao Governador.
Fez este partir para aqueles distritos o Ouvidor do Rio das Velhas. Viana então
não trepidou em obrigar o juiz a voltar do caminho.
Danou o Conde; mas teve de
reprimir a gama de escarmento porque não dispunha de forças suficientes. O mais
que fez foi queixar-se para a corte, descarregando todo o seu despeito contra o
velho caudilho.
Autorizou-o o rei a
"chamar à ordem e punir" aquele súdito rebelde. Mas Nunes decerto que
não era tolo de se deixar prender, como deligenciara o Governador: foi para a
Bahia; e dali seguiu para o reino, onde se justificou de tudo, e "ainda recebeu
de El-Rei muitas mercês".
Pensava Assumar que com o
afastamento de Viana entrariam as Minas em sossego. Mas enganou-se. Aquele ano
de 1720 foi o de maiores tormentos que se passou ali. Por toda parte
distúrbios; e em muitos pontos, revoltas formais. Em Pitangui, insurge-se o
"terrível" Domingos Rodrigues do Prado, e afronta o Governador. Em
outros distritos, constantes tumultos.
Mas a sedição de Vila Rica foi
a mais importante daquele ano fatídico. Coincidindo com o estabelecimento das
casas de fundição, veio também da corte (Carta régia de 25 de abril de 1719)
ordem de baixa a todos os oficiais de Ordenanças onde não houvesse corpos
organizados. Não os havia em parte alguma: o que se queria era dissolver a
milícia da terra, e deixar só o terço de dragões no seu império. Grandes
animosidades se levantaram em todas as comarcas. Entendem-se os chefes, e tudo
se previne para o rompimento da insurreição em Vila Rica na noite de 28 para 29
de junho.
3 - Começou-se pela expulsão
do Ouvidor. Em seguida, reunidos no paço da Câmara, assinaram os sediciosos uma
mensagem ao Governador, na qual exigiam supressão de certos impostos, repressão
de alguns abusos do foro, e abolição do monopólio de vários artigos de consumo.
Foi levar a mensagem ao Conde, o letrado José Peixoto da Silva, entusiasta da
revolta, mas dissimulado. Foi ele entrar espalhafatosamente na vila do Carmo, a
galope solto pelas ruas, com o papel na mão erguida, e gritando que as Gerais estavam levantadas!
Assumar já o esperava, porque
sabia de tudo. Respondeu ele à Câmara e aos principais da Vila Rica,
assegurando que concederia ao povo tudo que fosse justo, contanto que se
restabelecesse a ordem. O que ele queria era evitar os perigos enquanto se
apercebia para o bote certeiro. Declarou também que convocaria uma Junta Geral
para resolver o caso.
Ante as promessas do
Governador o povo sossegava; mas daí a pouco, ouvindo os corifeus da terra,
"volvia prontamente ao motim".
"Campeava já no movimento
o célebre Filipe dos Santos Freire, chefe e tribuno da plebe, único sedioso
verdadeiramente popular". Era este homem, cuja figura começa a
desnublar-se em nossa história, de um radicalismo absoluto nas medidas que
propunha; e queria uma revolução formal, que mudasse tudo na terra das Minas.
Lisonjeados com aquela fingida
continência e moderação do Conde, mandaram pedir-lhe os revoltosos que fosse
ele em pessoa à Vila Rica "a fim de assossegar o povo confirmando de viva
voz as seguranças que havia dado".
Nas aperturas em que se viu,
resolveu o Conde entregar a responsabilidade daquela crise, à Junta que
convocou. Decidiu a Junta que... se concedesse perdão geral aos de Vila Rica.
Satisfeito com a solução, mandou Assumar uns emissários incumbidos de publicar
o perdão entre os rebeldes. Esses emissários foram corridos da vila a pedradas.
Muito assustado, faz o Conde
novas concessões, e suspende por mais de um ano o regime da quintagem.
4 - Ninguém acreditou naquelas
boas intenções: desconfiava-se que tudo aquilo mal disfarça o intuito de acabar
com a revolta para depois cair sobre o povo. Insistiu a Câmara para que fosse o
Governador em pessoa a Vila Rica; e parece que afinal acedera ele ao reclamo.
É o que se queria. Reúnem-se
os levantados; formam um contingente de uns dois mil homens, e põem-se a caminho
da vila do Carmo, calculando que encontrariam o Conde em viagem.
Durante a jornada, protestou
Filipe dos Santos perante os outros chefes que, se o Governador não aceitasse
as condições que levavam, ele próprio o intimaria a sair das Minas, sob pena de
morte.
Preveniu-se Assumar como pôde;
e tentou até impedir que os sediciosos entrassem na vila. Sabendo que
resolutamente avançavam, mandou que um seu ajudante, com a Câmara incorporada,
fossem receber à porta da vila o exército clamante.
Entrando aquelas turbas, foram
ocupar toda a praça fronteira ao palácio. Aparece numa das janelas o próprio
Governador muito sereno, e dirige palavras de conciliação àquelas multidões
desordenadas. Com grande desapontamento dos chefes da revolta, aquela massa
toda, à vista do Conde, prorrompe em aclamações.
Subindo então à sala de
audiências o letrado José Peixoto e ali apresentou, formulados e já escritos,
os reclamos do povo. Exigia-se: que não se montassem as fundições; que se
abolissem os monopólios; que se suprimisse o registro na estrada real; que se
elevasse a trinta arrobas a quota do ouro; que se conceda expressamente, em
nome do rei, o perdão geral, E outras muitas imposições se faziam. A medida que
Peixoto ia lendo a proposta, ia o Governador, a cada artigo declarando; — deferido como pedem.
Quando o letrado, do alto do
palácio, leu ao povo o alvará "concedendo" tudo que se pedia, novas e
ainda mais estrepitosas aclamações estrondaram, e julgou-se decisiva aquela
imensa vitória.
Põe-se à mesma hora toda aquela
gente de volta para Vila Rica, onde se celebra com muitas festas o
acontecimento.
Nem por isso, no entanto,
cessaram os motins. Novas exigências se fazem ao Governador, parecendo que
quanto mais este cedia, mais os outros reclamavam e impunham. Vila Rica
permanece em estado de "anarquia delirante", e fora de toda ação das
autoridades.
5 - Afinal, o que intentam os
sediciosos, estava claro, não é nada daquilo que andavam alcançando: o que eles
querem é o domínio exclusivo das Minas, e para isso precisavam de libertar-se
do delegado da Coroa. Maquinam agora
decisivamente contra a pessoa do Governador.
Mas chegou o momento em que o
Conde perdeu a paciência, e deliberou acabar com semelhantes desordens. E sem
mais ouvir a ninguém, mandou, durante a noite, um alferes com uns trinta
dragões, surpreender em Vila Rica os principais cabeças de motim, e prendê-los
à sua ordem. O alferes executou o mandado; mas a vila caiu em perfeita loucura.
Planeiam os desvairados atacar a vila do Carmo, onde estão presos os seus
chefes.
Assumar, no entanto, já estava
seguro: reuniu todas as forças de que podia lançar mão, e ele próprio, à frente
de uns 1.500 homens, vai entrar em Vila Rica; surpreendendo e espantando a toda
a população.
Teve então notícia, o Conde,
de sublevações e tumultos que se davam em muitos outros pontos das Minas. O
momento afigurou-se complicadíssimo.
Sentindo-se forte, porém, o
Governador não mais vacila. Para dar a impressão de um como escarmento de coisa
sacrílega e maldita, ao mesmo tempo que se arrasassem, mesmo pelo incêndio, as
casas de alguns cabecilhas no arraial do Morro ali perto. "Enquanto as
línguas do incêndio se avistavam da vila, outras diligências derramavam o
espanto desse dia aziago e memorável, em que o Conde tratou de liquidar inexoravelmente
as suas contas"...
Foram presos, ainda, os
letrados José Peixoto e José Ribeiro Dias, além de muitos outros que não se
salvaram pela fuga. "Diligência alguma, porém, excedeu ao estrondo da
chegada de Filipe dos Santos, com sua corrente e algemas, no meio de uma
cavalgada de esbirros improvisados".
Estava o abnegado caudilho na
Cachoeira do Campo, "a pregar a revolta no adro da igreja, quando um
capitão, acompanhado de sequazes, o prendeu de surpresa chegando-lhe bacamartes
ao peito".
Só então é que veio ele a
saber do que se passava em Vila Rica.
6 - Filipe dos Santos é o
vulto que se destaca do meio daquelas desordens. Foi o único, "a julgar
por insuspeitos testemunhos, que sem interesses egoísticos nem perplexidades
calculadas, coloriu a revolta como causa justa. Os potentados não traziam, com
efeito, o povo menos oprimido que os funcionários. Um exator houve sequer, um
fiscal, um Juiz Ordinário, um oficial ou um capitão-mor, que não pertencesse à
classe dos poderosos. Filipe dos Santos foi o conjurado que do povo saiu, e que
moveu a massa popular para que a partida não a jogassem, o Conde com os seus dragões,
e com os seus capangas os chefes, cujo procedimento foi sempre o mais dúbio e
vacilante, querendo sempre deixar, em todas as circunstâncias de perigo, uma
saída para a defesa. Não fosse o humilde plebeu, simples rancheiro, mas talento
próprio da popularidade — aqueles homens não justificariam a revolta na
história, nem pelas causas, nem pelos fins. É por isso que, se afinal sofreram,
podem inspirar-nos a compaixão que é natural... Mas Filipe dos Santos está
muito acima. Este homem não nos comove somente pelo coração: exalta-nos pela
alma".
Não foi um especulador, mas um
convencido da justiça pela qual bradavam aquelas populações. Mais do que o
legítimo "herói da revolta", foi ele a vítima de uma nobre causa; e
não tem nada de inferior, na sua figura histórica, à daquele que, setenta e
dois anos mais tarde, viria renovar, ali na mesma terra das Minas, o vigor e o
entusiasmo com que uma alma generosa é capaz de sacrificar-se por um ideal de
que se apaixone.
"Entregue ao Conde, foi
logo Filipe dos Santos submetido a uma farsa de sumário, e nesse mesmo dia executado"... Afirma Diogo de Vasconcelos que
a execução de Filipe dos Santos se fizera com tal "atropelamento das comezinhas
fórmulas que o próprio Assumar se julgou no dever de a justificar antes que
explicações lhe fossem pedidas: na carta dirigida a El-Rei... confessou ter-se
feito tal condenação contra todas as leis. "Sei que não tinha competência
— dizia — nem jurisdição para proceder tão sumariamente... mas uma coisa é
experimentá-lo, outra ouvi-lo; porque o aperto era tão grande que não havia
instante que perder".
7 - Creem muitos, "de
acordo com a legenda, que o ataram, de braços e pernas, a quatro cavalos, e
estes o despedaçaram espantados pelas ruas... A verdade, porém, é outra, talvez
mais repulsiva: enforcaram-no, e depois o ataram à cauda de um cavalo para ser
arrastado, e feito em pedaços".
Esta revolta de Vila Rica,
assim como todos os outros motins e sedições que desde princípio se deram nas
Minas (sendo esta de Vila Rica e as lutas de 1708 apenas fases de mais
exacerbamento do espírito de desordem) ficaram na história colonial como provas
de quanto a paixão da riqueza em tão breve tempo mudara o ânimo daquela mesma
gente, sempre e em toda parte tão pacífica e sofredora.
Toda aquela imensa anarquia
tinha sem dúvida múltiplas causas: o afastamento das regiões auríferas, e num
sertão até ali despovoado; a ausência de autoridade política nos primeiros
tempos; o rigor crescente do fisco, e ainda por cima os abusos dos funcionários
fiscais; os monopólios, os estancos, as arrematações e outras medidas de
exceção, iníquas e odiosas; e tantas outras causas que deviam atuar fortemente no
espírito dos adventícios em todo o furor da sua insânia.
Desde princípio, aliás,
poder-se-ia ter previsto aquela fase, quando se viu a região das Minas invadida
desordenadamente daquelas chusmas de aventureiros, massa heterogênea tanto de
sangue como de cultura, de índole, de costumes; e todo esse mundo só levado de
um incentivo, inflamado de uma única ambição — a de recolher, quaisquer que
fossem os meios, a sua parte daqueles cabedais.
Mas incontestavelmente, vistas
de longe, e no seu aspecto geral, aquelas lutas revestem o caráter de
verdadeiras colisões do espírito da colônia com a soberania da metrópole.
Não podiam os colonos
compreender como é que as munificências daquela terra haviam de tocar
principalmente ao rei e aos seus prepostos, quando outros as haviam descoberto.
Acompanhem-se tais sucessos
durante quase todo o século XVIII, e ver-se-á se não é mesmo essa a
significação que eles têm.
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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
http://memoria.bn.br
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Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
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