3/27/2018

História do Brasil: Duguay-Trouin (Ensaio), de Rocha Pombo


Duguay-Trouin

Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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1 - O desastre de Duclerc serviu de pretexto para uma nova agressão ao Rio de Janeiro. É um marinheiro já famoso no corso, Duguay-Trouin, que vai tomar agora a empresa, na qual, além da sedutora perspectiva de grande fortuna, via ele a glória de "vingar os seus compatriotas".

Facilmente arranjou tudo quanto era indispensável a um cometimento de tal natureza. Organizou às pressas uma poderosa esquadra de 17 navios montando mais de 700 canhões e trazendo cerca de 4.000 homens de desembarque.

Assim que se teve disso notícia em Lisboa, cuidou o governo de D. João V de tomar as providências que eram possíveis: fez partir antes da época normal a frota do Brasil, dobrando-lhe o comboio; mandou armar em guerra alguns navios mercantes, embarcando neles algumas tropas de reforço; e confiou o comando destes navios a Gaspar da Costa de Ataíde (o Maquinez), oficial muito distinto, e muito senhor do seu ofício.

Largou Duguay-Trouin da Rochela a 9 de junho (1711), e só a 27 de agosto veio avistar terra pelas alturas da Bahia. Prosseguindo, veio, pelos primeiros dias de setembro, dar fundo na latitude do Rio, mas longe da terra.

Já haviam chegado os reforços com Gaspar da Costa. Pôs este os seus navios em ordem para protegerem a cidade. Passados alguns dias, porém, como não apareciam inimigos, persuadiu-se de que os boatos eram falsos, como era frequente em nossas praças marítimas. Fez então desembarcar as tropas, e deixou-se ficar em terra desapercebido.

Em certa manhã (12 de setembro) era  a população surpreendida com o troar de artilharia na barra; e para maior susto, nada podendo avistar-se, devido ao espesso nevoeiro.

Aproveitando-se da cerração, ordenara Duguay que a esquadra enfiasse pela barra sem fazer caso do fogo das fortalezas, e tomasse posição diante da cidade. E assim se fez. Só alto dia, ao levantar o nevoeiro, é que se viu a esquadra inimiga na baía!

Tal foi a surpresa, que o próprio Gaspar da Costa, nada mais podendo fazer, mandou incendiar os seus navios.

Na manhã seguinte (13 de setembro) apoderam-se da ilha das Cobras os assaltantes. Tendo montado logo ali as suas baterias, considerou-se Duguay senhor da cidade.

2 - No dia 14, desembarcou com perto de 4.000 homens, sem encontrar o mínimo sinal de resistência.

O Governador, que era ainda Francisco de Castro Morais, adotara quase o mesmo sistema de defesa de um ano antes contra Duclerc: com uma força que poderia enfrentar a do inimigo, deixara-se ficar no campo do Rosário, vendo o progressivo assalto da cidade.

Com a sua prudência e tática segura, concentrou o comandante corsário as suas forças nas montanhas da zona norte da cidade, até a ilha das Cobras e na praia fronteira, e intimou ao Governador que se rendesse, declarando-lhe que estava ali, em nome do rei de França, para vingar as crueldades cometidas contra súditos franceses.

Respondeu Castro Morais à intimação, discutindo muito, e rebatendo as recriminações que lhe eram dadas como pretexto para o novo assalto à cidade; e concluía declarando que defenderia a praça "até a última gota de seu sangue".

No dia 20 de setembro começavam os franceses a bombardear os entrincheiramentos do Rosário, preparando-se para um assalto geral no dia seguinte.

Pela tarde, grande pavor caía sobre a cidade. As próprias guardas começam a desertar os seus postos. No próprio acampamento do Rosário, a impressão que a todos domina é a de que se está sob a iminência de inevitável destroço. Procuram alguns reanimar aquela gente com os socorros que se esperam de Minas inutilmente.

À noite, começou a chover; e dentro em pouco desabava sobre a cidade uma grande tormenta. O Governador, desatinado no meio do susto que lavra, consulta em repetidos conselhos os seus oficiais. Muitos destes votam pela resistência, e alguns insistem até por uma resoluta ofensiva; mas a maioria resolve que, enquanto se espera pelo socorro de Minas, se mude o acampamento para posição menos sujeita ao fogo do inimigo.

É este o alvitre que vinga. Nessa mesma noite (21 para 22 de setembro) abalou Castro Morais com o seu exército, e foi acampar primeiro no Engenho Novo, e logo depois em Iguaçu.

Foi o mesmo que dar o sinal da fuga e debandada geral na cidade. As próprias prisões são agora abandonadas; e a população em massa, no meio de gritos e alaridos, desvaira pelos campos e matas, à busca de refúgio, afrontando, para fugir aos canhões inimigos, "uma das noites mais medonhas de que havia memória na terra".

3 - Quando, pela madrugada de 22, se preparava Duguay-Trouin para a investida geral, apareceu-lhe um francês, que tinha sido ajudante de Duclerc, dizendo-lhe que podia entrar sem combate, porque a cidade estava deserta, e já entregue ao saque pela própria gente da outra expedição, que irrompera das prisões abandonadas.

Durante toda a noite de 22 para 23 de setembro, a pilhagem foi horrível. Arrombaram-se "umas três quartas partes das casas e armazéns: vinho, provisões, alfaias, fazendas, gêneros de toda ordem, estavam empilhados a granel na lama das ruas". Chegou o atacante a punir de escarmento alguns dos seus soldados; mas não havia castigos que contivessem a ganância daqueles homens. Preferiu então, para coibir-lhes a fúria devastadora, trazê-los continuamente ocupados em armazenar os frutos da rapina.

Cuidou, entretanto, Duguay-Trouin, de tirar depressa todos os proveitos da sua fortuna. Compreendera quão melindrosa poderia tornar-se ali a situação se por muito tempo se demorasse na cidade. A praça estava inteiramente fechada para ele pelo lado de terra, tornando-se assim muito difícil o suprimento de víveres no caso em que lhe viessem a faltar.

Além disso, o que mais o inquieta é a reação que ali, não longe, em Iguaçu, se estava organizando, e que se tornaria talvez temerosa desde que chegassem de Minas as forças esperadas.

A sua grande ânsia é, pois, agora, apressar a liquidação do seu  grande negócio. Mandou então, como primeiro sinal, dizer a Castro Morais que, se não resgatasse imediatamente a cidade, "vê-la-ia arder até os fundamentos". E para mostrar que não era vã a ameaça, espalhou soldadesca
que pelos subúrbios foi incendiando habitações e tudo que encontrava.

Esses atos de vandalismo impressionaram fortemente o espírito de toda a população, e ninguém mais pensou em esperar pelos socorros de Minas para castigar a audácia dos salteadores: o que se quis foi salvar a cidade.

Foi naturalmente isto o que atuou no espírito do Governador e de todos para levá-los a ceder às imposições do inimigo.

4 - Em tal conjuntura, reuniu Castro Morais o seu conselho, e aí deliberou-se nomear uma comissão de oficiais que se incumbisse de negociar com o corsário o resgate da cidade.

Ofereceu-se-lhe o mais que no transe era possível: 600.000 cruzados. E declarou-se logo, que mesmo essa quantia, só em longo prazo se poderia reunir, não só porque muito já havia caído nas mãos dos franceses, como ainda porque uma grande parte de haveres particulares, e até os fundos do erário público "tinham sido levados para o centro dos bosques e montanhas".

Rejeitou Duguay com arrogância a proposta por irrisória, exigindo, como contribuição de guerra, doze milhões de cruzados... E mandou mostrar aos comissários como estava tudo pronto para arrasar a cidade, inutilizando mesmo quanto o fogo não pudesse consumir, de modo a ser completa a destruição.

Voltaram, pois, os mensageiros, com esta repulsa desconsoladora.

Mas a gana insaciável ia logo arrefecer. Soubera Duguay, por uns pretos desertores, que estavam a chegar a todo instante as tropas que se esperam do interior; e que da Ilha Grande já chegara a Iguaçu um reforço de 1.200 homens.

Era preciso sair de tão arriscado encalhe. Tomou, portanto, a resolução de ir, durante a noite, e com toda cautela, à frente de todas as suas forças, apresentar-se de surpresa, ao romper do dia, diante do acampamento português.

Em sua aflição, expede Castro Morais novos mensageiros encarregados de dizerem ao assaltante que era absolutamente impossível arranjar mais do que a quantia oferecida, à qual poderia acrescentar 10.000 cruzados do seu bolso, e mais 100 caixas de açúcar e 200 bois.

5 - Aceitaram, agora, os franceses a proposta. Estipulou-se que a contribuição ajustada devia ser paga no prazo de quinze dias, ficando doze oficiais como reféns. Combinou-se ainda que aos moradores seria permitido resgatar os objetos que desejassem reaver, pagando-os prontamente.

Em tais condições, foi o convênio assinado no dia 10 de outubro.

Julgando-se sob a iminência de algum perigo com a chegada de tropas de Minas, preveniu-se Duguay-Trouin para qualquer eventualidade, reforçando postos de defesa.

No dia seguinte ao da assinatura do convênio chegava a Iguaçu o socorro de Minas. Na ânsia de salvar a cidade, adiantara-se Antônio de Albuquerque com a sua cavalaria (1.500 homens), deixando o grosso do seu exército (mais uns 4.000 homens) em marcha regular.

Infelizmente, nada mais pôde fazer o digno capitão... porque tudo estava feito, e a ignomínia consumada.

Apercebeu-se Duguay-Trouin do grande perigo a que se achava exposto, vendo chegar tão consideráveis forças, tendo à frente um homem de valor e de talento militar e de tão alta nomeada.

Nem foi naturalmente sem admiração que viu pontualmente cumpridas as condições estipuladas, e sem que mudasse aquela circunstância coisa alguma na atitude resignada dos moradores.

No dia 4 de dezembro (1711) efetuou-se o último pagamento. Receberam, pois, os franceses, em moeda, 610.000 cruzados (perto de 250 mil cruzeiros). Mas, segundo Varnhagen, o lucro total da jornada não andou longe dos doze milhões que exigira o corsário; e isso calculando-se apenas o produto da contribuição oficial e o da venda de despojos aos próprios espoliados; pois as perdas do Estado subiram a mais de trinta milhões de cruzados!

6 - No mesmo dia em que receberam a última quota do resgate, embarcaram os franceses, tendo tido previamente o cuidado de recolher a bordo tudo o que podiam transportar.

Ao deixar a terra saqueada, quis Duguay ter um belo gesto dando prova da sua piedade: cominou de morte a todo soldado em poder do qual se encontrasse alguma prata de igreja; e no momento de embarcar confiou aos jesuítas a prata arrecadada e as alfaias, para serem entregues ao Bispo.

Ufano do magnífico e fácil sucesso alcançado no Rio de Janeiro, pensou o corsário em completar a sua empresa investindo também a Bahia, sob o pretexto de libertar o resto de prisioneiros de Duclerc que ali se achavam, mas no intento, como ele próprio diz, de "tirar daquela colônia maior contribuição".

Largou, pois, do Rio na esperança de fazer mais brilhante a sua glória de pilhar ainda com mais proveito, se é possível.

Mas, depois de lutar com os ventos contrários por mais de quarenta dias, viu-se obrigado a seguir para a França.

Foi "a demora fatal a dois dos seus navios, que açoitados de temporais, foram a pique com 100 homens a bordo, e levando um deles a parte mais preciosa dos despojos, em ouro e prata, no valor de 600.000 libras francesas".

Tendo a esquadra de arribar a Caiena, ainda ali afundou, já ancorado, terceiro navio.

Apesar de todas estas perdas, ainda ficou aos aventureiros um lucro de 92 por cento sobre o capital empregado!

7 - O povo do Rio, indignado com o modo como se portara Francisco de Castro Morais, não pôde vê-lo continuar no governo.

Mandou-se imediatamente ao convento de Iguaçu, onde ficara Antônio de Albuquerque, a pedir-lhe que não voltasse para a sua capitania, e que assumisse o governo, de acordo com as ordens do Rei. Nos termos de uma recente Carta Régia, Antônio de Albuquerque, se por algum motivo qualquer que fosse, regressasse ao Rio durante o governo de Francisco de Castro Morais, devia assumir a administração até que El-Rei resolvesse.

Acedeu Albuquerque, tomando o governo até que a corte decidisse. Castro Morais nem sequer tentou reter a sua autoridade, cônscio talvez da sua má estrela, se não da inépcia ou criminosa desídia.

Mal se soubera em Lisboa de quanto sucedera, mandou-se-lhe sucessor na pessoa de Francisco de Távora.

Trouxe este ordem para sujeitá-lo a processo, bem como a todos os outros que tivessem deixado de cumprir o seu dever.

Foram os culpados metidos em prisão rigorosa. Formou-se uma alçada de sete ministros, e procedeu-se a longa devassa.

Até que afinal foi Castro Morais condenado a degredo perpétuo para a índia, "não por traidor, mas por falta de ânimo e discernimento".

A notícia do assalto ao Rio de Janeiro causou alarma em todas as outras capitanias, em muitas das quais logo se reuniram voluntários dispostos a partir em socorro da cidade.

Na corte, foi ainda mais consternadora a impressão sofrida, pois lá se receava que os franceses tivessem intenção de manter a conquista, lembrados das suas antigas pretensões à terra onde já haviam estado como senhores.

Só a notícia, que logo depois lá chegou, é que foi desafogar de apreensões o governo português, dando como de simples depredação intentos que se suspeitaram mais graves.


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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
http://memoria.bn.br

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