Capitanias Hereditárias: início da colonização
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1 - Como já vimos, depois das duas expedições (de 1501 e de 1503) que vieram explorar a costa, limitou-se a corte portuguesa a manter por estes mares alguns capitães que guardassem a terra, deixando livre o tráfico
em todo o litoral, e animando
os próprios súditos a concorrer com os traficantes estrangeiros.
Com o tempo, no entanto, como
era de prever, a afluência de especuladores ia-se tornando inquietante. E não
tardou que se visse como já não era suficiente aquela providencia de confiar a
segurança da posse efetiva a capitães sem meios de ação, e que, em regra, só
cuidavam de recolher o que podiam para si.
É esta, pois, a situação em
que se encontra o país no momento em que falece D. Manuel, em 1521: guarda-se a
terra contra pretensões de aventureiros, e estimulam-se armadores portugueses a
entrar em negócios com os índios.
É D. João III que vem cuidar
do problema do Brasil. Sente-se que por lá não se tem ideia alguma quanto a
medidas de eficácia na conjuntura: daí o modo vacilante como se leva ainda a
causa nos primeiros anos.
Em 1526, resolve D. João III
reforçar apenas a vigilância da costa por uma esquadrilha de seis navios sob o
comando de Cristóvão Jaques, marítimo que, segundo alguns, já era prático destas
paragens desde 1516.
Chegou ele à vista da terra
por fins daquele ano, e estacionou primeiro entre a ilha de Itamaracá e o
continente.
Ali encontrou um começo de
povoação (atribuído aos primeiros exploradores) e cuidou de dar-lhe incremento.
Depois desceu até Pernambuco, onde fundou outra feitoria para servir de assento
à administração da colônia.
Em seguida, com três ou quatro
caravelas, correu Cristóvão Jaques grande porção da costa, parecendo que até o
rio da Prata.
De volta para o norte, foi
encontrar na baía de Todos os Santos três navios franceses, que meteu a pique,
aprisionando uns 300 homens, que levou para Portugal.
O problema, porém, continuava
sem solução; e isto, enquanto as condições criadas pelos contrabandistas se
faziam alarmantes.
2 - Toma-se então na corte a
providencia de iniciar decisivamente a colonização oficial nas novas terras,
mandando para aqui uma expedição provida de tudo para esse fim.
Trazia Martim Afonso o título
de capitão-mor, com jurisdição e alçada, tanto no crime como no cível, que lhe
davam autoridade de um verdadeiro locotenente do soberano.
Aprontou-se com muita pressa a
esquadrilha, composta de cinco embarcações. Vinha como piloto, e imediato do
comandante, Pêro Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso, e marítimo de fama. Saiu
do Tejo esta flotilha por fins de 1530 (a 3 de dezembro), e por fim de janeiro
seguinte estava nestes mares, fazendo breve estação em Pernambuco.
Dali mandou Martim Afonso a
Diogo Leite explorar a costa para o norte; e expediu para o reino a João de
Sousa; enquanto a expedição prosseguia para o sul. Na Bahia encontrou-se o
capitão-mor com o Caramuru. Ao meio-dia de 30 de abril (1531) entrava a
esquadrilha na Guanabara.
Tendo escolhido um sítio
perfeitamente abrigado, fez o capitão desembarcar uma parte da gente. Aí
construiu-se casa forte, e montou-se uma ferraria, para reparo das naus, e onde
se armaram dois bergantins.
A instâncias dos naturais,
mandou Martim Afonso para o interior do país quatro homens da equipagem,
acompanhados de muitos selvagens. Dentro de dois meses, estavam de volta esses
homens, trazendo em sua companhia um "grande rei, senhor dos grandes
campos", até onde haviam chegado.
Renovadas as provisões,
continuou a expedição rumo do sul, a 1 de agosto e só ganhou terra no dia 12,
fundeando na baía de Cananeia. Ali encontraram alguns portugueses e
castelhanos, que viviam desde muito em boas relações com os índios.
Induzido por informações desses
homens, permitiu o capitão-mor que fosse Pero Lobo, seguido dos mesmos e de
outros aventureiros, explorar o país, devendo estar de volta no prazo de dez
meses. Soube-se depois que esta entrada não foi feliz como a primeira, tendo
sido quase toda aquela gente massacrada por selvagens.
Sofrendo temporais, desceu a
flotilha até vizinhanças do estuário do Prata. Dali, teve Martim Afonso razões
para retroceder, à procura de paragem onde mais conviesse começar a sua obra.
No dia 20 de janeiro (1532)
vêm as caravelas surgir a meia légua da abra de São Vicente.
3 - Já era São Vicente um dos
pontos mais conhecidos do litoral. Figura nas principais cartas e nos roteiros
mais antigos. Por ali, e nas imediações, viviam alguns portugueses, em perfeita
inteligência com os naturais.
Entre esses portugueses
recolheu a crônica os nomes de João Ramalho e de Antônio Rodrigues, além de
outros.
Tendo certo ascendente sobre
os indígenas, negociavam esses exules com expedições que por ali passavam,
abastecendo-as de produtos da terra, em troca de artigos europeus, e até
vendendo-lhes pequenas embarcações de enseada que já podiam construir.
Estes primitivos colonos
tinham no litoral a sua zona de domínio, entre São Vicente e Cananeia.
Para o sul, a região marítima
era senhoreada pelos Carijós, gente de índole pacífica. De sorte que, tanto por
terra, como por mar, varejando esteiros, varadouros e recôncavos das baías, ou
fazendo caminho pelas praias, ia a gente de Ramalho até Paranaguá e São
Francisco, provavelmente mesmo até o Porto dos Patos (Santa Catarina), onde
viviam também alguns portugueses e espanhóis.
Para o lado do norte, além de
Santo Amaro, dominavam os tamoios,
até o Cabo Frio.
Antes de 1532, andavam todas
essas populações em paz relativa. Com a entrada de Martim Afonso, porém, tudo
por ali vai mudar, principalmente depois que a metrópole portuguesa foi fazendo
sentir o seu império.
Já naqueles tempos havia um
tráfego regular entre os portos e os campos de serra acima. Lá no planalto, em toda
a bacia do alto Tietê, imperava Tibiriçá, a quem Ramalho se aliara.
É nessas condições que vai
Martim Afonso encontrar a terra.
Devido ao mau tempo, só pela
tarde de 22 de janeiro entrou a esquadrilha no canal a sudoeste da ilha de São
Vicente.
Fez o capitão-mor desembarcar
a gente na praia ao sul, à direita de quem entra no esteiro.
Ali se deu começo
imediatamente à povoação, construindo-se as primeiras casas, um fortim, uma
capela, e o mais necessário. Levantou-se outro fortim e atalaia na ponta de
Santo Amaro, junto à barra da Bertioga. É por ali que havia perigo de assaltos.
E desde então vai-se mudando a atitude dos tamoios. Compreenderam os chefes de
Ubatuba que os hóspedes de Morpion (São
Vicente) não haviam chegado ali só para traficar. E começaram logo a dar sinais
de intuitos hostis.
Felizmente a chegada de
Ramalho, com seu sogro Tibiriçá, vem a tempo de conjurar no momento esses
riscos.
4 - Fez Martim Afonso demarcar
a área da vila em datas iguais, que foram distribuídas aos colonos. Fora da
vila, aterras da ilha eram de serventia comum; isto é, cada um ficava na
posse provisória dos prazos que lavrasse. O benefício constituiria título para
a propriedade definitiva. As próprias sesmarias seriam concedidas sob a
condição de simples usufruto durante a vida dos concessionários. Só depois é
que se modificou este regime.
Começou-se logo na ilha a
cultivar alguns produtos, principalmente a cana-de-açúcar, que se importara da
Madeira, e que, segundo alguns autores, já era conhecida em São Vicente antes
de Martim Afonso.
Para animar os lavradores, fez
o capitão-mor construir, no meio da ilha, para que a todos aproveitasse, um
pequeno engenho, movido a água, e com
uma capela e habitações para os operários. Este engenho chamou-se primeiro — do
Governador, e mais tarde — São Jorge
dos Erasmos, do nome de uma família alemã que o adquirira.
Tendo a lavoura de cana tomado
grande incremento, fundaram-se outros engenhos, tanto na ilha de São Vicente
como na de Santo Amaro, e no continente vizinho.
De sorte que dentro de alguns
anos já se exportavam dali açúcar e aguardente para outras capitanias e até
para o reino.
Outras culturas de valor
tornaram-se logo as do trigo e da vinha. Um século depois dizia ainda o padre
Simão de Vasconcelos que São Vicente era "o celeiro de todo o
Brasil".
O desenvolvimento das lavouras
tão rápido se fez que se sentiu logo a necessidade de cuidar da exportação,
pois a massa de produtos não demorou a exceder às exigências do consumo local.
Para isso organizou o próprio
capitão-mor uma empresa mercantil, na qual se associaram os senhores de engenhos. Esta empresa tornou-se
intermediária dos colonos, encarregando-se de exportar-lhes os produtos e de vender-lhes
os artigos europeus de que precisavam.
Começara, pois, Martim Afonso
pela parte fundamental da sua tarefa.
Ao mesmo tempo, ia organizando
a ordem política e civil na colônia, como era possível naquelas condições.
Nomeou juízes do povo, escrivães, meirinhos, almotaceis, e outros oficiais
públicos. Fez construir uma igreja melhor na sede da vida, investindo a Gonçalo
Monteiro do cargo de pároco da freguesia.
Durante os primeiros meses
encaminhou-se com tanta fortuna aquela obra que muitos colonos pensaram logo em
mandar vir as respectivas famílias, convencidos de que tinham achado no novo
mundo um verdadeiro conforto de terra da Promissão.
5 - A vila de São Vicente
floresceu, pode-se dizer, desde os seus primeiros dias. Ali se concentrou todo
o movimento econômico da ilha e redondeza, assim o comércio com os índios de
Itanhaém, de Cananeia e de Piratininga. Armazenavam-se ali os gêneros do país
destinados a exportação, e recebiam-se em grandes depósitos as mercadorias da
Europa mais usuais na colônia e entre os índios.
Não se tem notícia positiva de
que, depois de Martim Afonso, chegasse ao porto algum navio do reino antes de
João de Sousa, ou mesmo algum traficante dos que já conheciam aquela parte da
costa. É, no entanto, perfeitamente admissível a hipótese de que a baía
continuou a ser frequentada; sem o que não se explicaria aquele monopólio do
comércio externo, e muito menos a criação (que também se atribui a Martim
Afonso) da alfândega, no outro lado do canal, em ponto mais ou menos fronteiro à
vila.
Postas em ordem as coisas ali
no litoral, pôde enfim o capitão-mor aceder às instâncias, com que lhe pedia
João Ramalho de visitar o planalto, onde parece que já havia sinais de
complicações com os indígenas.
Seguido de grande comitiva, e
guiado pelo próprio Ramalho, saiu de São Vicente Martim Afonso (pelos fins de
1532) e foi, no porto de Santa Cruz, tomar o caminho da serra.
Foi no campo muito bem
recebido pelos índios. Examinou com muito interesse aquelas paragens, admirando-lhes
a incomparável beleza e magnificência.
Colheu dos próprios selvagens toda
sorte de informações, e pôde julgar, pelo que viu, quanto eram fundadas as
queixas de Ramalho e de Tibiriçá, contra os especuladores que andavam já
infestando a terra. Tanto portugueses como espanhóis invadiam desordenadamente
aqueles campos, a traficar pelas aldeias; e imagine-se como seriam feitos os
negócios.
Provavelmente, esta visita a
Piratininga acentuou no ânimo de Martim Afonso a relutância com que se andava
reduzindo àquela inglória tarefa de colonizar terra em tais condições, quando
os seus sonhos eram outros. Viu mais de perto a vida do íncola, a sua grande
penúria e a sua grande miséria moral. Pôs em confronto aquele país tão rico e
tão belo com toda aquela tristeza; e quem sabe se pelo seu espírito não passou
a previsão dos dias que tinham de vir para as duas raças que ali se iam
encontrar.
O que é certo é que, se ainda
não estava, agora se desiludiu de uma vez da sua função na América.
6 - De volta, em São Vicente,
tomou logo medidas excepcionais, por menos acertadas que fossem, relativamente
àquela forma de tráfico, que era sempre a causa de todas as desavenças e
complicações com os índios. Prescreveu que "nem a resgatar com eles
pudessem ir brancos ao campo sem sua
licença, ou dos capitães seus locotenentes, a qual se daria com muita
circunspeção, e unicamente a sujeitos bem morigerados".
Esta providencia conteve,
quanto era possível, a ganância dos adventícios. A ordem no planalto foi confiada
exclusivamente a João Ramalho, como capitão-mor
do campo.
Mas estava-se vendo como esta
medida não poderia vigorar por muito tempo.
Em 1544, a mulher e
procuradora do donatário, cedendo a instantes solicitações dos especuladores,
revogou por um alvará a proibição decretada pelo marido em 1532.
Havemos de ver adiante que consequências
teve esse alvará, aliás o expediente mais natural em semelhante caso.
Um dos motivos que atuaram no
espírito de Martim Afonso para não permanecer no Brasil foi sem dúvida a
certeza de que nada aqui poderia construir com a gente que trouxera e no estado
em que se achava o país. Do pessoal da colônia uma pequena parte apenas era
formada de homens laboriosos. Foram estes os que se estabeleceram logo na ilha,
e cuidaram afanosamente da vida, como se andasse à espera daquele aceno da
fortuna.
Mas a maioria da gente
compunha-se de degredados e fidalgos, tanto uns como outros jogando a sorte. Os
primeiros tiveram de ficar na terra.
Os fidalgos, quando viram como
também por aqui lhes andava a sorte esquiva, ou pelo menos mais difícil do que
supunham, foram-se, a maior parte, de volta para o reino.
Decerto que não eram homens
para estas alturas.
7 - Preparava-se o capitão-mor
para deixar o Brasil, quando chegou de Lisboa, João de Sousa, aquele capitão
que de Pernambuco para lá fora expedido.
Trouxe João de Sousa carta do
rei para Martim Afonso. Mostrava-se D. João II muito satisfeito com o seu
preposto; e dizia-lhe que, visto como nada lá se sabia do que tivesse
acontecido na exploração da costa para o Sul de Pernambuco até o rio da Prata,
nem do que se houvesse feito "no assento da terra", tudo deixava ao
critério e resolução dele, Martim Afonso, mesmo a sua permanência no Brasil.
Dava-lhe ainda notícia de que
se havia deliberado adotar um processo mais prático de colonização, confiando a
terra, em prazos regulares, a empresas
que se incumbissem de povoá-la; e que, conquanto desejasse ouvir primeiro o parecer
dele, capitão-mor, tomara logo, todavia, por motivos poderosos, a resolução de
fazer imediatamente as primeiras doações, devendo ser as melhores para ele
(Martim Afonso) e para seu irmão Pero Lopes.
Vinha, pois, esta carta de D.
João encontrar-se com o propósito em que já estava o capitão-mor.
Fez este então carregar de
grande quantidade de produtos do país os navios disponíveis; pôs em ordem todos
os negócios da colônia; constituiu seu locotenente ao vigário Gonçalo Monteiro;
e na monção de 1533 deixava São Vicente.
A glória de Martim Afonso na
América está no fato de ter sido a sua obra em São Vicente o lineamento
histórico da colonização e da conquista.
Tem realmente para nós a mais
alta significação aquele trabalho de lançar, com o primeiro núcleo oficial de
europeus, o vasto problema do povoamento.
A data, portanto, de 22 de
janeiro de 1532 assinala-se por um fato que tem para a nacionalidade futura uma
importância capital: vale como um novo testemunho que o povo dos descobrimentos
dava de si para a outra tarefa que o destino agora lhe impunha, em troca
daquela munificência com que lhe galardoara o heroísmo das grandes gerações.
Aquele dia, em que a primeira
legião ali assentou as suas tendas, na ilha de São Vicente, encima para nós a
página com que se abre decisivamente a história da terra.
É o que representa aquela
expedição, e o que faz de Martim Afonso a figura que primeiro se inscreve em
nossos anais de povo. Teve ele a fortuna de ser o diretor daquela ação inicial
da raça, exatamente na única porção do seu patrimônio onde veio ela a fazer
efetivo e integral o seu desdobramento histórico.
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