3/29/2018

História do Brasil: As fronteiras (Ensaio), de Rocha Pombo



As fronteiras




Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)


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1 - Desde princípio facilmente podiam prever-se as complicações que sobreviriam entre súditos de Portugal e de Espanha em toda a América do Sul, partilhada exclusivamente entre as duas Coroas da Península. Nem era só a enorme extensão de território, cujo domínio disputavam as duas monarquias, o que tinha de tornar penoso o encontro de dois povos, que, embora irmãos pelo sangue, tão separados andavam por ideias de preeminência e preconceitos nacionais: era principalmente a dificuldade de estabelecer e demarcar limites entre conquistas que os tratados não tinham força de regular. Por mais que se pretendesse fixar diplomaticamente os contérminos dos dois domínios, na prática nada valeram os convênios, antes que os próprios colonos tivessem, de uma e de outra parte, feito a sua obra de ocupação.

O que, portanto, se vai dar no continente, desde que se instala a administração até os fins do período colonial, explica-se como consequência da situação em que se viram aqui espanhóis e portugueses, incitados a fazer, cada um por si, o mais que pudessem no empenho de ampliar o respectivo patrimônio.

Andaram, por isso, em toda parte, como concorrentes um diante do outro, adiantando-se, investindo-se, pondo-se em guerra quase contínua durante perto de três séculos.

Naturalmente, deviam ocorrer no Sul os primeiros conflitos, pois é por esta parte que penetram no interior os pioneiros da conquista na América oriental.

Distraídos com o Peru, pouco estenderam, a princípio, a sua ação para o Norte, os espanhóis que entraram pelo Prata; de modo que mais tarde, quando se aperceberam da desídia, e intentaram salvar ao menos uma grande porção da bacia platina, de direito pertencente à Espanha, já se viram na contingência de enfrentar os paulistas, que em todo o interior os haviam precedido.




2 - Desde os primeiros tempos disputavam os portugueses, como limite sul, a parte oriental da bacia do Prata. Depois que celebrou (1668) a paz com a Espanha, cuidou Portugal de garantir o que julgava direito seu, mandando fundar (em 1680) a Nova Colônia do Santíssimo Sacramento, à margem esquerda do estuário.

Protestou contra isso o governo de Buenos Aires, D. José de Garro, e intimou os portugueses a retirar-se dali. E como D. Manuel Lobo (Governador da Repartição do Sul), que fora fundar a Colônia, a nada atendesse, investiram a praça os espanhóis e a tomaram.

Prepara-se Portugal para a guerra, e a Espanha acede em restituir-lhe a Colônia (1681) provisoriamente, até um concerto definitivo. Em 1701 (pelo tratado de 18 de junho) foi a restituição confirmada, e reconhecido o direito da Coroa portuguesa à margem setentrional do Prata.

Durante mais de vinte anos estiveram os portugueses na posse de Sacramento, e deram-lhe grande impulso como núcleo de povoamento e de força.

Mas, logo depois do último tratado sobrevêm nova tormenta com a sucessão de Espanha: os espanhóis acodem a sitiar a praça; e ao cabo de muitas lutas, evacuam-na os portugueses.

Ao liquidar-se, porém, a Guerra da Sucessão, pelo tratado de Utrecht (6 de fevereiro de 1715) é outra vez a Colônia do Sacramento restituída a Portugal; e agora com a cláusula expressa de que, "quaisquer que fossem os títulos de domínio que a Espanha pudesse apresentar sobre as terras da Banda Oriental do Uruguai, considerar-se-iam nulos e sem efeito, para se respeitarem como pertencentes à Coroa portuguesa as ditas terras". Reocupou a Colônia o governo português (1716).

Passados outros quase vinte anos de posse, é a praça atacada por D. Miguel de Salcedo (em 1735): durou agora o cerco perto de dois anos de refregas contínuas em terra e no mar.

E só se suspendem armas quando (em 1737) resolvem as duas cortes tratar da paz, ordenando logo que cessassem as hostilidades na América.

3 - Dir-se-ia que os contendores estavam fatigados; e que, não querendo perder aquele ensejo das boas relações em que estavam agora as cortes de Lisboa e de Madrid, ambos se dispunham a encerrar de uma vez aquele tão longo período de contendas insolúveis. Tanto mais que para isso poderiam servir-se ainda dos bons ofícios da Inglaterra, da Holanda, e principalmente na França.

Mesmo sacrificando cada uma das partes alguma coisa, era preciso resolver semelhante questão. E como ela terá de afetar diretamente as populações da América, interessadas na forma do acordo, qualquer que venha esta a ser, tratam as duas cortes de tudo fazer muito em segredo e com muita cautela: sem que, no entanto, nenhuma delas renuncie ao desejo de aproveitar-se, cada vez com mais finura, uma da cordialidade da outra. Pelo Contrário, estão muito suspeitosas, prevenidas e alertas, vigiando-se mutuamente, inquirindo-se, sondando-se, não só por desconfiança, como pelo empenho, em que ambas estão, de tirar cada uma o melhor partido da sua astúcia.

Nos termos do convênio de 1737, nomearam-se os representantes dos dois soberanos, cada qual com os seus indispensáveis auxiliares. Da embaixada portuguesa fez parte, entre outros conselheiros, o notável Alexandre de Gusmão, filho de Santos, e a quem se deve, em grande parte, a conclusão do tratado nas condições em que foi feito.

Entraram os espanhóis em negociações, animados de salvar agora sobre a conquista portuguesa, o que eles julgavam direito seu. Para sustentar a posse da margem setentrional do Prata, invocavam os representantes da Espanha o tratado de Tordesilhas. Se vingasse essa pretensão, teriam as fronteiras do domínio espanhol de afastar-se tanto para o oriente que viriam a abranger quase toda a conquista portuguesa no interior.

Mas a esse intento rebateram os delegados de D. João V, fazendo ver que a ratificar-se aquele tratado, já esquecido, aliás, por muitos atos, também os limites de Portugal na Ásia haveriam de alcançar as Molucas e até as Filipinas...

Bastou isto para desiludir os espanhóis. Assentou-se então, preliminarmente, em declarar sem efeito, não só o tratado de 1494, como os demais tratados, convenções e acordos que até ali se haviam celebrado, e adotar como regra, para a fixação dos limites entre os dois domínios, a conquista e ocupação efetiva.

4 - Daí por diante tudo foi fácil. A fronteira que se convencionou começava junto à ponta de Castilhos Grandes, na atual costa uruguaia, e daí seguia mais ou menos a linha divisória que a tradição já havia estabelecido.

As alterações fundamentais consistiram principalmente, no Sul, na cessão, que Portugal fazia à Espanha, da Colônia do Sacramento e "todo o território ao norte do Prata até o ponto onde agora se acordava que principiaria a divisa, com todos os estabelecimentos que ali se achassem, renunciando todos os direitos à navegação daquele rio".

Como compensação, cedia a Espanha a Portugal, além de outras terras de que estava de posse até às cabeceiras do Ibicuí, todos os estabelecimentos que os espanhóis tivessem formado no ângulo entre a margem setentrional do mesmo Ibicuí e a oriental do rio Uruguai (Missões Orientais).

No Norte, continuaria a fronteira pelo Guaporé, seguindo depois pelo Mamoré até entrar no Madeira, e por este "até meio caminho entre o Mamoré e o Amazonas"; e desse ponto, por uma reta leste-oeste, até encontrar o Javari.

É esta a linha média do Madeira, que o tratado de 1867 deslocara para a foz do Beni, e que veio a ser motivo da questão que teve o Brasil, no início do século atual, com a Bolívia. Como se sabe, proveio o litígio de entenderem uns que, em vez de considerar-se, segundo opinião de outros, como paralela ao equador a linha deslocada (até encontrar ou a nascente principal, ou o meridiano da nascente do Javari) de entenderem os primeiros, dizemos, que essa linha leste-oeste passaria, nos termos do referido tratado de 1867, a ser oblíqua para ir encontrar a nascente do Javari onde ela estivesse.

A não ser nesses pontos, fixava o tratado de Madrid (13 de janeiro de como linha de fronteira, a que já era conhecida e respeitada entre os colonos.




5 - Menos fácil que o ajuste foi a execução do tratado.

No mesmo ano em que este se assinara, falecia D. João V (a 31 de julho de 1750), subindo ao trono D. José I. Entrega este o governo do reino a Sebastião José de Carvalho e Melo, depois Conde de Oeiras, e por último Marquês de Pombal.

Começou este entrando em novos acordos com a corte de Madrid para regular a execução do tratado, "e o modo de dissipar quaisquer dúvidas e esclarecer a inteligência das suas disposições".

Nomeiam as duas cortes os respectivos comissários, que devem fazer em conjunto a demarcação. Foram duas as comissões mistas: uma que devia entrar pelo Norte e outra pelo Sul devendo ir encontrar-se em Mato Grosso.

Foi nomeado para a do Norte: pela Espanha, D. José de Iturriaga; e pela coroa portuguesa, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que governava então o Pará. Para a comissão do Sul nomeou a corte de Madrid o Marquês de Valdelírios; e a de Lisboa, Gomes Freire de Andrada, que havia uns vinte anos governava a Repartição do Sul.

É agora que se vai ver como era difícil e penoso mudar, só pela força, de uma para outra soberania, aqueles territórios sobre cuja troca compensativa se haviam fundado todas as combinações.

O território cedido a Portugal, a oriente do rio Uruguai, estava (como observa Southey) ocupado por muitas reduções florescentes, onde viviam cerca de 30.000 índios, já de longos anos afeitos ao regime instituído pelos jesuítas, intermediários entre a selvajaria e a civilização; a maior parte de tais criaturas, como seus pais e avós, numa servidão disfarçada e suave, sentindo-se mais felizes do que na antiga vida das florestas.

Todos estes índios, com mulheres e filhos, levando as suas criações e o mais que possuíam, tinham de emigrar agora para o deserto, e "não fugindo à escravidão ou ao ferro inimigo, mas obedecendo a uma das mais tirânicas ordens jamais emanadas do poder insensível".

Atribuiu-se o imenso clamor, e por fim o levantamento geral dos índios, aos padres da Companhia; mas a verdade é que não houve alma que ficasse impassível ante o que se pretendia fazer ali no Sul.

Dignos de execração seriam os jesuítas se não clamassem agora. E eles clamaram na sua aflição como sempre faziam, pedindo, suplicando, fazendo sentir aos reis a desumanidade daquela violência.



6 - Desde muito antes da celebração do tratado, quando se entrara a discutir-lhe as bases, andavam as Missões em grande alarma. E assim que se teve notícia do que se estipulara quanto aos territórios que se permutavam, começaram a levantar-se clamores por toda aquela fronteira, e tanto da parte dos jesuítas e dos espanhóis, como da parte dos portugueses. Enquanto estes bramavam contra a cessão da Colônia do Sacramento, que tanto sacrifício e tanto sangue havia custado, iam os espanhóis protestando contra a entrega das Missões.

Os comissários das duas cortes foram, em setembro (1752), encontrar-se nas imediações de Castilhos Grandes, e pelos fins de outubro começaram os trabalhos de demarcação, assentando por ali o primeiro marco.

Até o Ibicuí nada houve de anormal, a não ser o sussurro que lavra por todas aquelas paragens, e que aumenta à medida que a comissão se aproxima do território oriental do Uruguai, e que devia mudar de domínio.

No lugar chamado Santa Tecla, aparecem os primeiros índios em atitude hostil, impedindo o passo aos comissários. Os chefes da comissão estavam ausentes. Gomes Freire, ao ter notícia do que se passava, ordenou à sua partida que se recolhesse à Colônia. Reúnem-se, no entanto, em conferência com o Governador de Buenos Aires os dois altos comissários, e resolvem "fazer evacuar pela força" a parte das Missões cedidas à Coroa portuguesa.

Começam agora os portugueses a desconfiar da sinceridade dos espanhóis. O Marquês de Valdelírios vai franco até às deliberações que impunha o caso: quando se trata, porém, de executar, encontra ele sempre algum pretexto para ir protelando ação decisiva. Resolvera-se em maio (1753) fazer pela guerra o que não se conseguia "por meios pacíficos"; e, no entanto, por mais que se esforçasse Gomes Freire, só quase ano e meio depois (em setembro de 1754) é que começaram a mover-se as forças de Valdelírios, e "isso mesmo tão lentamente, e tão sem desejo de entrar em campanha, que os portugueses podiam considerar-se abandonados numa causa que devia correr principalmente sob a responsabilidade da Espanha". À vista disso, interrompe o comissário português a sua marcha. Espera-se por novas ordens das respectivas cortes.

7 - Passa-se mais de um ano de indecisão; até que as ordens que vêm, tanto de Lisboa como de Madrid, são pela guerra formal.

Põem-se então em marcha os dois exércitos (uns 3.000 homens em globo); entram no território das Missões, e vão varrendo massas e massas de índios insurgidos. Estes, quando não podem, fogem incendiando as aldeias. Os índios que fugiam com suas famílias metiam-se nos sertões; e por ali, como se volvessem logo aos velhos instintos, faziam ouvir, ainda estrondoso, o seu grande clamor contra a calamidade que os assalta.

Nada se adiantara, portanto, com a ocupação das aldeias incendiadas ou desertas: o bárbaro, no seu refúgio, tornava-se mais tremendo.

Isso mesmo fez Gomes Freire sentir aos espanhóis, declarando-lhes que, pela sua parte, retardaria a entrega da Colônia até que eles, pela sua, pudessem entregar-lhe o território das Missões inteiramente pacificado.

O que se passa daqui por diante parece indicar que os jesuítas não tinham perdido o seu tempo na Europa; e também que na corte de Madrid renasciam esperanças de alcançar tudo que se queria, reconquistando a Colônia do Sacramento "sem prejuízo do território cedido".

O governador então de Buenos Aires, D. Pedro Cevallos, chama a si toda a questão, e vai, com Valdelírios, a São Francisco de Borja entender-se diretamente com os maiorais dos Sete Povos das Missões.

Quando se esperava que Cevalhos ia arredar todo embaraço ao que se intenta, limita-se ele a colher, da própria boca dos caciques, as mais irrecusáveis provas de que a resistência dos índios se fazia contra o conselho e o esforço dos jesuítas.

Naturalmente viram nisso os portugueses mais uma razão para as desconfianças que já nutriam.

Separam-se, afinal, e retiram-se dali os comissários sem nada haver efetuado.


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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
http://memoria.bn.br

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