Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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O que, portanto, se vai dar no
continente, desde que se instala a administração até os fins do período
colonial, explica-se como consequência da situação em que se viram aqui
espanhóis e portugueses, incitados a fazer, cada um por si, o mais que pudessem
no empenho de ampliar o respectivo patrimônio.
Andaram, por isso, em toda
parte, como concorrentes um diante do outro, adiantando-se, investindo-se,
pondo-se em guerra quase contínua durante perto de três séculos.
Naturalmente, deviam ocorrer
no Sul os primeiros conflitos, pois é por esta parte que penetram no interior
os pioneiros da conquista na América oriental.
Distraídos com o Peru, pouco
estenderam, a princípio, a sua ação para o Norte, os espanhóis que entraram
pelo Prata; de modo que mais tarde, quando se aperceberam da desídia, e
intentaram salvar ao menos uma grande porção da bacia platina, de direito
pertencente à Espanha, já se viram na contingência de enfrentar os paulistas,
que em todo o interior os haviam precedido.
2 - Desde os primeiros tempos
disputavam os portugueses, como limite sul, a parte oriental da bacia do Prata.
Depois que celebrou (1668) a paz com a Espanha, cuidou Portugal de garantir o
que julgava direito seu, mandando fundar (em 1680) a Nova Colônia do Santíssimo
Sacramento, à margem esquerda do estuário.
Protestou contra isso o
governo de Buenos Aires, D. José de Garro, e intimou os portugueses a
retirar-se dali. E como D. Manuel Lobo (Governador da Repartição do Sul), que fora
fundar a Colônia, a nada atendesse, investiram a praça os espanhóis e a
tomaram.
Prepara-se Portugal para a
guerra, e a Espanha acede em restituir-lhe a Colônia (1681) provisoriamente,
até um concerto definitivo. Em 1701 (pelo tratado de 18 de junho) foi a
restituição confirmada, e reconhecido o direito da Coroa portuguesa à margem
setentrional do Prata.
Durante mais de vinte anos
estiveram os portugueses na posse de Sacramento, e deram-lhe grande impulso
como núcleo de povoamento e de força.
Mas, logo depois do último
tratado sobrevêm nova tormenta com a sucessão de Espanha: os espanhóis acodem a
sitiar a praça; e ao cabo de muitas lutas, evacuam-na os portugueses.
Ao liquidar-se, porém, a
Guerra da Sucessão, pelo tratado de Utrecht (6 de fevereiro de 1715) é outra
vez a Colônia do Sacramento restituída a Portugal; e agora com a cláusula
expressa de que, "quaisquer que fossem os títulos de domínio que a Espanha
pudesse apresentar sobre as terras da Banda Oriental do Uruguai,
considerar-se-iam nulos e sem efeito, para se respeitarem como pertencentes à
Coroa portuguesa as ditas terras". Reocupou a Colônia o governo português
(1716).
Passados outros quase vinte
anos de posse, é a praça atacada por D. Miguel de Salcedo (em 1735): durou
agora o cerco perto de dois anos de refregas contínuas em terra e no mar.
E só se suspendem armas quando
(em 1737) resolvem as duas cortes tratar da paz, ordenando logo que cessassem
as hostilidades na América.
3 - Dir-se-ia que os
contendores estavam fatigados; e que, não querendo perder aquele ensejo das
boas relações em que estavam agora as cortes de Lisboa e de Madrid, ambos se
dispunham a encerrar de uma vez aquele tão longo período de contendas
insolúveis. Tanto mais que para isso poderiam servir-se ainda dos bons ofícios
da Inglaterra, da Holanda, e principalmente na França.
Mesmo sacrificando cada uma
das partes alguma coisa, era preciso resolver semelhante questão. E como ela
terá de afetar diretamente as populações da América, interessadas na forma do
acordo, qualquer que venha esta a ser, tratam as duas cortes de tudo fazer
muito em segredo e com muita cautela: sem que, no entanto, nenhuma delas
renuncie ao desejo de aproveitar-se, cada vez com mais finura, uma da
cordialidade da outra. Pelo Contrário, estão muito suspeitosas, prevenidas e
alertas, vigiando-se mutuamente, inquirindo-se, sondando-se, não só por desconfiança,
como pelo empenho, em que ambas estão, de tirar cada uma o melhor partido da
sua astúcia.
Nos termos do convênio de
1737, nomearam-se os representantes dos dois soberanos, cada qual com os seus
indispensáveis auxiliares. Da embaixada portuguesa fez parte, entre outros
conselheiros, o notável Alexandre de Gusmão, filho de Santos, e a quem se deve,
em grande parte, a conclusão do tratado nas condições em que foi feito.
Entraram os espanhóis em
negociações, animados de salvar agora sobre a conquista portuguesa, o que eles
julgavam direito seu. Para sustentar a posse da margem setentrional do Prata,
invocavam os representantes da Espanha o tratado de Tordesilhas. Se vingasse
essa pretensão, teriam as fronteiras do domínio espanhol de afastar-se tanto
para o oriente que viriam a abranger quase toda a conquista portuguesa no
interior.
Mas a esse intento rebateram
os delegados de D. João V, fazendo ver que a ratificar-se aquele tratado, já
esquecido, aliás, por muitos atos, também os limites de Portugal na Ásia
haveriam de alcançar as Molucas e até as Filipinas...
Bastou isto para desiludir os
espanhóis. Assentou-se então, preliminarmente, em declarar sem efeito, não só o
tratado de 1494, como os demais tratados, convenções e acordos que até ali se haviam
celebrado, e adotar como regra, para a fixação dos limites entre os dois
domínios, a conquista e ocupação efetiva.
4 - Daí por diante tudo foi
fácil. A fronteira que se convencionou começava junto à ponta de Castilhos
Grandes, na atual costa uruguaia, e daí seguia mais ou menos a linha divisória
que a tradição já havia estabelecido.
As alterações fundamentais
consistiram principalmente, no Sul, na cessão, que Portugal fazia à Espanha, da
Colônia do Sacramento e "todo o território ao norte do Prata até o ponto
onde agora se acordava que principiaria a divisa, com todos os estabelecimentos
que ali se achassem, renunciando todos os direitos à navegação daquele
rio".
Como compensação, cedia a
Espanha a Portugal, além de outras terras de que estava de posse até às
cabeceiras do Ibicuí, todos os estabelecimentos que os espanhóis tivessem
formado no ângulo entre a margem setentrional do mesmo Ibicuí e a oriental do rio
Uruguai (Missões Orientais).
No Norte, continuaria a
fronteira pelo Guaporé, seguindo depois pelo Mamoré até entrar no Madeira, e
por este "até meio caminho entre o Mamoré e o Amazonas"; e desse
ponto, por uma reta leste-oeste, até encontrar o Javari.
É esta a linha média do
Madeira, que o tratado de 1867 deslocara para a foz do Beni, e que veio a ser
motivo da questão que teve o Brasil, no início do século atual, com a Bolívia.
Como se sabe, proveio o litígio de entenderem uns que, em vez de considerar-se,
segundo opinião de outros, como paralela ao equador a linha deslocada (até
encontrar ou a nascente principal, ou o meridiano da nascente do Javari) de
entenderem os primeiros, dizemos, que essa linha leste-oeste passaria, nos
termos do referido tratado de 1867, a ser oblíqua para ir encontrar a nascente
do Javari onde ela estivesse.
A não ser nesses pontos,
fixava o tratado de Madrid (13 de janeiro de como linha de fronteira, a que já
era conhecida e respeitada entre os colonos.
5 - Menos fácil que o ajuste
foi a execução do tratado.
No mesmo ano em que este se
assinara, falecia D. João V (a 31 de julho de 1750), subindo ao trono D. José
I. Entrega este o governo do reino a Sebastião José de Carvalho e Melo, depois
Conde de Oeiras, e por último Marquês de Pombal.
Começou este entrando em novos
acordos com a corte de Madrid para regular a execução do tratado, "e o
modo de dissipar quaisquer dúvidas e esclarecer a inteligência das suas
disposições".
Nomeiam as duas cortes os
respectivos comissários, que devem fazer em conjunto a demarcação. Foram duas
as comissões mistas: uma que devia entrar pelo Norte e outra pelo Sul devendo
ir encontrar-se em Mato Grosso.
Foi nomeado para a do Norte:
pela Espanha, D. José de Iturriaga; e pela coroa portuguesa, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, que governava então o Pará. Para a comissão do Sul nomeou
a corte de Madrid o Marquês de Valdelírios; e a de Lisboa, Gomes Freire de
Andrada, que havia uns vinte anos governava a Repartição do Sul.
É agora que se vai ver como
era difícil e penoso mudar, só pela força, de uma para outra soberania, aqueles
territórios sobre cuja troca compensativa se haviam fundado todas as
combinações.
O território cedido a
Portugal, a oriente do rio Uruguai, estava (como observa Southey) ocupado por
muitas reduções florescentes, onde
viviam cerca de 30.000 índios, já de longos anos afeitos ao regime instituído
pelos jesuítas, intermediários entre a selvajaria e a civilização; a maior
parte de tais criaturas, como seus pais e avós, numa servidão disfarçada e
suave, sentindo-se mais felizes do que na antiga vida das florestas.
Todos estes índios, com
mulheres e filhos, levando as suas criações e o mais que possuíam, tinham de
emigrar agora para o deserto, e "não fugindo à escravidão ou ao ferro
inimigo, mas obedecendo a uma das mais tirânicas ordens jamais emanadas do
poder insensível".
Atribuiu-se o imenso clamor, e
por fim o levantamento geral dos índios, aos padres da Companhia; mas a verdade
é que não houve alma que ficasse impassível ante o que se pretendia fazer ali
no Sul.
Dignos de execração seriam os
jesuítas se não clamassem agora. E eles clamaram na sua aflição como sempre
faziam, pedindo, suplicando, fazendo sentir aos reis a desumanidade daquela
violência.
6 - Desde muito antes da
celebração do tratado, quando se entrara a discutir-lhe as bases, andavam as
Missões em grande alarma. E assim que se teve notícia do que se estipulara
quanto aos territórios que se permutavam, começaram a levantar-se clamores por
toda aquela fronteira, e tanto da parte dos jesuítas e dos espanhóis, como da
parte dos portugueses. Enquanto estes bramavam contra a cessão da Colônia do
Sacramento, que tanto sacrifício e tanto sangue havia custado, iam os espanhóis
protestando contra a entrega das Missões.
Os comissários das duas cortes
foram, em setembro (1752), encontrar-se nas imediações de Castilhos Grandes, e
pelos fins de outubro começaram os trabalhos de demarcação, assentando por ali
o primeiro marco.
Até o Ibicuí nada houve de
anormal, a não ser o sussurro que lavra por todas aquelas paragens, e que
aumenta à medida que a comissão se aproxima do território oriental do Uruguai,
e que devia mudar de domínio.
No lugar chamado Santa Tecla,
aparecem os primeiros índios em atitude hostil, impedindo o passo aos
comissários. Os chefes da comissão estavam ausentes. Gomes Freire, ao ter
notícia do que se passava, ordenou à sua partida que se recolhesse à Colônia.
Reúnem-se, no entanto, em conferência com o Governador de Buenos Aires os dois
altos comissários, e resolvem "fazer evacuar pela força" a parte das
Missões cedidas à Coroa portuguesa.
Começam agora os portugueses a
desconfiar da sinceridade dos espanhóis. O Marquês de Valdelírios vai franco
até às deliberações que impunha o caso: quando se trata, porém, de executar,
encontra ele sempre algum pretexto para ir protelando ação decisiva. Resolvera-se
em maio (1753) fazer pela guerra o que não se conseguia "por meios
pacíficos"; e, no entanto, por mais que se esforçasse Gomes Freire, só
quase ano e meio depois (em setembro de 1754) é que começaram a mover-se as
forças de Valdelírios, e "isso mesmo tão lentamente, e tão sem desejo de
entrar em campanha, que os portugueses podiam considerar-se abandonados numa causa
que devia correr principalmente sob a responsabilidade da Espanha". À
vista disso, interrompe o comissário português a sua marcha. Espera-se por
novas ordens das respectivas cortes.
7 - Passa-se mais de um ano de
indecisão; até que as ordens que vêm, tanto de Lisboa como de Madrid, são pela
guerra formal.
Põem-se então em marcha os
dois exércitos (uns 3.000 homens em globo); entram no território das Missões, e
vão varrendo massas e massas de índios insurgidos. Estes, quando não podem,
fogem incendiando as aldeias. Os índios que fugiam com suas famílias metiam-se
nos sertões; e por ali, como se volvessem logo aos velhos instintos, faziam
ouvir, ainda estrondoso, o seu grande clamor contra a calamidade que os
assalta.
Nada se adiantara, portanto,
com a ocupação das aldeias incendiadas ou desertas: o bárbaro, no seu refúgio,
tornava-se mais tremendo.
Isso mesmo fez Gomes Freire
sentir aos espanhóis, declarando-lhes que, pela sua parte, retardaria a entrega
da Colônia até que eles, pela sua, pudessem entregar-lhe o território das
Missões inteiramente pacificado.
O que se passa daqui por
diante parece indicar que os jesuítas não tinham perdido o seu tempo na Europa;
e também que na corte de Madrid renasciam esperanças de alcançar tudo que se
queria, reconquistando a Colônia do Sacramento "sem prejuízo do território
cedido".
O governador então de Buenos
Aires, D. Pedro Cevallos, chama a si toda a questão, e vai, com Valdelírios, a
São Francisco de Borja entender-se diretamente com os maiorais dos Sete Povos
das Missões.
Quando se esperava que
Cevalhos ia arredar todo embaraço ao que se intenta, limita-se ele a colher, da
própria boca dos caciques, as mais irrecusáveis provas de que a resistência dos
índios se fazia contra o conselho e o esforço dos jesuítas.
Naturalmente viram nisso os
portugueses mais uma razão para as desconfianças que já nutriam.
Separam-se, afinal, e
retiram-se dali os comissários sem nada haver efetuado.
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